No termo “globalização”, mais do que na designação anterior de “internacionalização”, está implícita a ideia de que estamos a ultrapassar a era do estabelecimento de laços entre os países e começamos a contemplar algo para lá do conceito existente de Estado-nação. Mas esta alteração precisa de encontrar eco em todos os níveis do pensamento, em especial na reflexão sobre a ética.
É nestes termos que Peter Singer, o filósofo que se tornou conhecido pela defesa de posições controversas em assuntos como o aborto, a eutanásia e os direitos dos animais, apresenta a premissa fundamental de Um Só Mundo. Este livro, que é inteiramente dedicado aos desafios éticos colocados pela globalização, baseia-se num conjunto de conferências proferidas na Universidade de Yale em Novembro de 2000, tendo sido revisto após o 11 de Setembro.
Singer inscreve-se nitidamente na esquerda política, mas não podia estar mais longe do estafado discurso antiglobalização. A erosão das fronteiras nacionais não se lhe apresenta como um mal: o que importa, pensa Singer, não é tentar travar o processo da globalização, mas enfrentá-lo de maneira a promover imparcialmente o bem-estar dos habitantes do planeta. Depois de um curto capítulo introdutório, o livro desenvolve esta proposta examinando com bastante profundidade quatro questões principais: o impacto da actividade humana na atmosfera, a regulação do comércio mundial, os limites da soberania nacional e a ajuda internacional aos países mais pobres. Singer sugere que, se queremos reagir adequadamente aos desafios da globalização, temos de recusar a perspectiva centrada no interesse nacional que George W. Bush exprimiu nesta declaração emblemática: “Nada faremos que prejudique a nossa economia porque primeiro está o mais importante, que são as pessoas que vivem na América”.
No capítulo 2, “Uma Só Atmosfera”, Singer discute os problemas ecológicos colocados pelas emissões de carbono. O aspecto mais interessante desta discussão é a proposta de introduzir um “comércio de emissões”. Cada país teria direito a um certo nível de emissões determinado pelo seu número de habitantes e, como muitos países não precisariam de usar toda a quota, poderiam vender parte dela às nações mais ricas e industrializadas.
O capítulo 3, “Uma Só Economia”, consiste quase exclusivamente numa avaliação da política de comércio livre protagonizada pela Organização Mundial do Comércio (OMC). Esta avaliação desenvolve-se a partir de quatro acusações de que a OMC tem sido alvo: as acusações de enfraquecer a soberania nacional, de não ser democrática, de deixar as pessoas mais pobres numa situação ainda pior e de colocar as preocupações económicas acima das preocupações como o ambiente, o bem-estar dos animais e os direitos humanos. Singer, em vez de se precipitar para uma condenação sumária da OMC, discute cada uma destas acusações de uma forma escrupulosamente cuidada, mostrando-nos como esta organização, embora precise de reformas urgentes, pode desempenhar um papel positivo na globalização.
O capítulo 4, “Uma Só Lei”, defende a necessidade dos tribunais internacionais e o reforço da autoridade das Nações Unidas. No capítulo 5, “Uma Só Comunidade”, Singer regressa a um tema que lhe é caro desde que, nos anos 70, escreveu um artigo seminal a favor da obrigação ética de ajudar aqueles que vivem numa situação de pobreza absoluta. Entre os dados interessantes que nos são apresentados, vale a pena apontar os que se referem ao papel dos Estados Unidos na ajuda internacional: embora os cidadãos norte-americanos acreditem que cerca de 20 por cento do orçamento federal é destinado à ajuda externa, e pensem também que este valor deveria ser reduzido para 10 por cento, a verdade é que a fatia que os EUA reservam para o auxílio é inferior a 1 por cento.
Entre os livros de Singer, este é um dos menos filosóficos, pois a natureza das questões abordadas não podia deixar de exigir uma enorme atenção aos dados empíricos. Mas um dos seus aspectos mais fortes é precisamente a riqueza e a pertinência da informação factual. Além disso, podemos contar não só com a prosa límpida e serena a que Singer já nos habituou, mas também com uma notável lucidez conceptual que se revela na discussão de perspectivas filosóficas de autores como John Rawls e Michael Walzer. Fátima St. Aubyn, que já traduziu Libertação Animal (Via Optima), proporciona-nos novamente uma boa tradução de Singer neste Um Só Mundo.