No campo da ética existem duas opiniões conhecidas que, apesar de tentativas específicas, ainda ninguém conseguiu ligar: uma diz respeito ao fosso que existe entre o que é de facto e o que deve ser (facto e valor), e a outra (no âmbito do valor) entre forma moral e conteúdo moral. Parecem ser infrutíferas as tentativas de derivar o dever do ser ou o conteúdo moral da forma moral.
Uma vez determinada, a diferença entre os conceitos de facto e valor parece não poder ser ultrapassada. Poderemos então evitar esta divisão provando que essa mesma determinação da definição ou delineamento do universo de factos pressupõe ou traz consigo certos valores? Permitam-me referir algumas das possibilidades.
Tal perspectiva parece ser a seguinte. Os epistemológos discutem o modo como poderemos distinguir a realidade da ilusão ou de um sonho. Hume defendia que as impressões tinham mais força e eram mais vívidas do que ideias, sonhos ou ilusões; contudo, este critério anda a par com a ideia da grande força e vivacidade de algumas experiências com drogas. Alguns escritores distinguiram o objectivo do subjectivo em termos de consenso: o objectivo é o que outros também reconheceriam ou com o qual concordariam. A única maneira de chegar a este consenso (de conjunto) é deixar O ser o processo psicológico cognitivo profundo através do qual organizamos o mundo; este opera em algo X indiferenciado, dando lugar a um universo de factos estruturados, delineados e diferenciados F. A ideia é a de que a própria operação O implicada no processo de determinação de factos a partir de algo indiferenciado X, de tal modo que O(X) = F, pode também operar no sentido de produzir valores V. É difícil perceber sobre que coisa isolada (não o mesmo que F) este mesmo processo O poderia operar por formar a criar valores; mais plausível é a ideia de que os valores são estruturados como resultado da interacção da operação O. Os factos são a primeira fase na estruturação do X incipiente, enquanto que os valores são a fase seguinte:
O(X) = F
O(F) = V.
Ou talvez esta segunda fase do processo opere não apenas em F, mas em ambos F e X, de tal modo que:
O(X,F) = V [I]
Porém na ausência de percepção mínima sobre o processo cognitivo profundo de O, nada mais podemos fazer do que assinalar esta terceira possibilidade estrutural; tal como as outras duas acima listadas, ela recusa aceitar de forma garantida os factos como não sendo problemáticos, e por isso mesmo procura um caminho à volta ou abaixo da distinção facto-valor a qual, uma vez estabelecido, permanece para nos inquietar.
Todavia uma outra possibilidade teórica aceita estas diferentes opiniões como problemas reais e vastos; tenta explicar por que persistem, talvez esperando que a sua explicação, sendo os factores que os explicam apresentados, possa ela mesma introduzir dados adicionais que nos ajudem neste processo. É um teste à nossa capacidade de análise do universo ético para que compreendamos não apenas que existem estes abismos (se é que existem) mas também porquê. (De igual modo, queremos entender por que é que o conteúdo moral vasto não pode resultar da forma da moralidade.)
Podemos perguntar por que é que um dever ou asserção ética E não pode resultar da totalidade I ou de asserções reais sobre o que é. Ao encontrar o factor explicativo correcto S, podemos questionar se é suficiente quando conjugado com os factos (anteriores) I no sentido de produzir a afirmação ética E, de modo que E seja resultado de I&S. Caso contrário, podemos procurar explicar a razão pela qual isso não acontece, encontrando o factor explicativo S,1 e perguntarmo-nos se acrescentando esse factor neste momento nos permitirá chegar à asserção ética E, sendo que E deriva de I&S&S1. Poderemos repetir este processo até que mais nenhum factor explicativo seja apresentado, verificar se a combinação de todos eles com o I factual é suficiente para produzir uma asserção ética E, e se caso ainda não se verifique, podemos questionar qual seria o factor mínimo, cujo acrescento seria suficiente para a derivação da asserção ética E. Tomando a sério o fosso existente entre o ser e o dever, e explicando-o, podemos ter esperança em ligar esta separação ou pelo menos reduzi-la.
A explicação de por que não podemos fazer derivar dever de ser encontrará uma diferença significativa entre ambos a qual essa derivação não torna óbvia. A explicação encontrará alguma propriedade contida no que é mas não no que deve ser e a qual está preservada sob a derivação, ou alguma propriedade que apenas se encontra no dever e não no ser e cuja ausência é preservada sob a derivação. Mesmo a partir do momento em que conhecemos uma propriedade específica P, é difícil perceber de que modo somos beneficiados na derivação de um dever simplesmente acrescentando a premissa: qualquer afirmação ser I tem propriedade P enquanto que uma afirmação E não, e tudo o que derivar de algo com P também terá P. Deste modo, se algum benefício houver, resultará da explicação de por que o que é tem P e o que deve ser não tem (ou o contrário).
Poderíamos iniciar a nossa busca do requisito explicativo da propriedade P considerando outros casos onde um tipo de asserção não pode derivar de outra.
Nenhum destes casos esclarece a relação entre o dever e o ser. E discussões sobre a “emergência” do dever em relação ao ser nada explicam sem que o modo como essa emergência se dá seja especificado. Ou a explicação correcta reside em qualquer outra analogia, ou o fosso entre o ser e o dever é muito sui generis, em nada comparável a outros hiatos derivativos. (Será cada um dos outros esclarecido pelo resto?) Ou poder-se-á considerar que não é necessária qualquer explicação sobre por que é que esse hiato existe; pelo contrário, a conjectura de que a derivação poderá ter lugar, que a ética pode não ser um universo autónomo, é enganadora.
A discussão à volta do que é e o que deve ser ou facto e valor aparece quando se tomam a sério as verdades éticas. Supondo que existem verdades éticas objectivas, podemos averiguar a razão porque uma em particular encerra verdade em si mesma. A explicação pode demonstrar que esta verdade ética específica é um indício de uma verdade ética mais profunda ou mais geral, ou que (dados vários pressupostos factuais) se enquadra dentro de tal verdade. E uma vez mais podemos inquirir sobre a razão dessa verdade mais profunda e geral. Repetindo o processo, parece que acabaremos por chegar a (uma ou a um número de) verdades éticas fundamentais as quais, enquanto explicamos tudo o resto, parecem elas próprias extinguir qualquer explicação ética. Mais nenhuma verdade ética as explica. Deste modo ou são elas factos brutos que se sustentam sem qualquer explicação, ou então deve existir alguma explicação sobre as verdades éticas fundamentais em termos de verdades não-éticas. Se uma explicação envolver derivação, dedutiva ou de outro tipo, sobre o que está a ser explicado a partir do que motiva a explicação, então este último tipo de explicação pressupõe que um dever possa derivar de um ser. É necessário ter em conta que esta questão ou problema não depende da tentativa de justificar ou convencer alguém sobre uma qualquer asserção ética. A tarefa não consiste em promover a concordância sobre a verdade ética, mas sim de perceber por que encerra verdade. No caso das verdades éticas fundamentais, a questão reside no facto de tentarmos perceber qual o tipo de explicação que poderia existir. Se estas verdades éticas fundamentais não puderem ser explicadas através de verdades não-éticas – e não fazemos ideia sobre como tal explicação poderia resultar — então o universo ético passaria a ser autónomo.
Este corpo autónomo de verdades éticas seria ordenado e estruturado através da relação explicativa E, “é uma correcta explicação de”. As possibilidades de estruturação deste universo ético autónomo (através de relação explicativa) são aquelas, já anteriormente sugeridas e analisadas no capítulo 2, que incidem sobre como o universo de todas as verdades poderia ser estruturado. A relação explicativa assimétrica e transitiva “é uma correcta explicação de” vai permitir que num universo autónomo, seja de todas as verdades seja apenas (um universo autónomo) de verdades éticas, a seguinte estrutura seja possível: (a) um dos vários elos explicativos volta infinitamente ao ponto de origem, sendo que cada verdade será explicada por uma outra mais profunda; ou (b) um elo explicativo termina com uma verdade que é um facto bruto — nada o explica; ou (c) um elo explicativo termina com uma verdade fundamental que se pressupõe ela própria através da teoria da quantificação; a verdade genérica é um indício de si própria.
Ao recordar as estruturas possíveis subjacentes à explicação de todas as verdades, tal como foi referido no Capítulo 2, tornamo-nos mais receptivos às circunstâncias específicas das verdades éticas. Podemos desprezar a ideia de verdades éticas que não oferecem explicação acrescida — verdades brutas — até avaliarmos se podemos ou não evitar a possibilidade estrutural no universo de todas as verdades. Resultarão algumas leis gerais não-éticas que são factos brutos, sem qualquer explicação acrescida? Então se essas ocorrerem, por que não incluir também as verdades éticas?
Se a ética é um universo autónomo, não deveríamos ficar surpreendidos quando encontramos uma verdade ética geral sem qualquer explicação. Mais ainda, poderíamos esperar encontrar que fosse tão profunda que fosse um pressuposto de si mesma e explicasse a si própria. Um dos objectivos da filosofia é pôr a descoberto e delinear tais verdades fundamentais. É preciso lembrar que o pressuposto não é prova ou condição suficiente de verdade. (“Todo o princípio contendo sete palavras é verdadeiro” pressupõe-se, mas é falso). Contudo, se um princípio explicativo suficientemente profundo for verdadeiro, então (pensamos) também pode constituir a explicação de si mesmo através do pressuposto.
Um princípio fundamental da moralidade poderia ser pressuposto e revelaria muitas outras verdades morais (sendo que os factos ocupariam uma posição subsidiária enquanto premissas de menor importância). O princípio fundamental da moralidade, se é que existe, seria um princípio fundamental que se desdobraria em pressuposições revelando todas as outras verdades morais.[II]
Um princípio fundamental de moralidade apresentar-se-ia do seguinte modo.
P: Devemos seguir princípios com característica F.
Poderá formar um pressuposto se P ele próprio incluir F. Ou talvez o princípio seja
P: Devemos ter comportamentos com característica F, onde o princípio P seguinte seja ele próprio uma acção com característica F.
O princípio de consentimento por unanimidade numa situação de escolha pode ser analisado na perspectiva do princípio fundamental da moralidade que tem a capacidade de pressuposição.
U: Seja qual for o princípio com que todos concordem unanimemente (ou com o qual concordariam) tendo em conta condições C (o véu da ignorância, conhecimento absoluto, ou o que quer que seja) ele deve ser seguido.
Se de acordo com essas condições C, todos concordassem com o princípio U, resulta (e pode ser deduzido) deste facto juntamente com o princípio U, que este deve ser seguido. Convém notar que um princípio não resulta ele próprio num facto trivial, ou que um princípio de processo é ele próprio o resultado desse mesmo processo. O princípio de que seja o que for que qualquer maioria num grupo de pessoas concorde deve ser seguido poderia ele próprio ser rejeitado por uma maioria naquele mesmo grupo de pessoas, quer eles optem por legislação que limite a vontade da maioria quer por um ditador que esteja acima de qualquer controle.
Outro exemplo que pode ser analisado na perspectiva do princípio fundamental da moralidade diz respeito ao acto de cooperação em situações relacionadas com prisioneiros, assim designado após o exemplo usado por A. W. Tucker quando os determinou pela primeira vez. A polícia apresenta duas alternativas a dois suspeitos capturados: se um deles confessar e o outro não, o primeiro terá uma sentença de 2 anos enquanto o último de 12; se nenhum confessar, serão ambos condenados a 4 anos de prisão; se ambos confessarem, serão ambos sentenciados a 10 anos. Cada prisioneiro tem o seguinte raciocínio: “Vale mais confessar seja o que for que o outro decidir: supondo que ele confesse, se eu não confessar apanho 12 anos enquanto que se eu confessar apanho 10, o que é melhor. Logo analisando todos os casos é bem melhor confessar”. Uma vez que ambos desenvolvem o mesmo tipo de raciocínio, ambos confessam, e logo ambos são sentenciados a 10 anos de prisão; enquanto que se nenhum tivesse confessado, apenas passariam 4 anos na prisão. Por esta lógica seria bem melhor se nenhum tivesse confessado. Embora tivessem consciência deste facto na altura de decidir o que fazer, apesar de tudo, cada um percebeu que estaria em melhores circunstâncias confessando fosse o que fosse o que o outro decidisse, e por isso ambos confessaram.
Uma acção que oferece melhores condições a alguém, resultado daquilo que outro possa eventualmente fazer, tal como qualquer outra acção que lhe é dirigida é designada pelos teóricos como uma acção dominante (fraca); enquanto que uma acção sobre a qual um certo tipo de comportamento é determinante é considerada acção dominada. Tudo parece indicar que quando uma acção dominante tem lugar numa situação de relação interpessoal deveria ser desempenhada por alguém racional. Porém a situação de dilema dos prisioneiros é de tal forma estruturada que ambos são mais prejudicados se adoptarem uma acção dominante do que se ambos tivessem desempenhado a dominada.
A discussão à volta deste contexto (alargada a mais de duas pessoas) e suas ramificações constituem neste momento uma vasta literatura. Muitos tentaram explicar como determinadas instituições funcionam de forma a evitar ou transformar estas situações de dilema de prisioneiros. Ainda assim, por vezes estas situações aparecem, e os autores verificam que, em muitos casos, é exigido aos participantes que desempenhem a acção dominante cooperativa, ou vêem esta acção como algo que eles devem fazer. (Refiro-me a “muitas” situações de dilema de prisioneiros — e não a “todas”, uma vez que nem sempre é adequado ou correcto desempenhar este tipo de acções em que se recorre à cooperação de testemunhas entre os criminosos. Deste modo, seja qual for o princípio moral mais adequado, necessita de ser circunscrito a algumas subclasses S de situações de dilema de prisioneiros.)
Neste sentido poderíamos considerar o princípio PD: Numa situação de dilema de prisioneiros generalizada de tipo S, um indivíduo deve desempenhar uma acção dominada de cooperação. PD é um princípio ético que se aplica a escolhas em situações estruturadas específicas, onde o seu motor de comando difere dos princípios racionais de interesse pessoal. Nesta linha de ideias, temos um princípio moral proposto, mas não pressuposição.
Consideremos agora a escolha entre princípios morais que incluem PD e princípios racionais de interesse pessoal RSI. Supondo que se todos seguem princípios morais que incluem PD, todos estão bem melhor do que se seguissem princípios de tipo RSI. (Os princípios morais também podem incluir directivas no sentido de se seguirem interesses pessoais excepto se estes entrarem em conflito com PD ou com outro princípio moral qualquer.) Todavia cada pessoa está bem melhor seguindo RSI, seja qual for a opção dos outros. Se os outros procurarem o mesmo, ela terá tendência a promover muito mais os seus próprios interesses seguindo o princípio RSI do que a moralidade com PD; por outro lado se os outros adoptam PD, este indivíduo satisfará melhor os seus interesses seguindo RSI mais do que moralidade com PD. Desta forma, RSI tem um papel dominante nos princípios da moralidade, M. Perante esta conjuntura, a escolha que todos enfrentam entre moralidade com PD e RSI está ela própria estruturada como uma situação generalizada de dilema de prisioneiros (o que considero ser um requisito de tipo S).
O princípio da moralidade PD refere que nesta situação de escolha, tal como noutras estruturadas de forma semelhante, devemos decidirmo-nos por uma opção de cooperação dominada, nomeadamente, quando seguimos uma moralidade que inclui PD. Não fizemos derivar PD de PD de forma trivial pela via de cálculo de proposição, antes derivamo-lo de ele próprio como um exemplo através da teoria da quantificação (e considerações adicionais). PD pressupõe ele próprio. Supondo que PD é um princípio de moralidade profundo, a razão por que devemos segui-lo é a de que seguindo-o estamos envolvidos numa acção dominada em situação generalizada de dilema de prisioneiro (de tipo S). É correcto seguir PD não só porque fazendo-o estamos a seguir um princípio moral correcto, mas também porque PD se enquadra dentro de um princípio moral correcto. A profunda análise da razão por que devemos seguir PD, envolve o próprio PD.
Obviamente, isto não quer dizer que esta teoria prove que PD é correcto ou o justifique. Princípios morais incorrectos também têm a capacidade de formarem pressuposições, e podemos considerar que em situação de escolha prévia, a aplicação de RSI implica a escolha do próprio RSI. O qual também se pressupõe. Sempre que RSI e PD entrem em conflito, não podem ambos estar correctos; naturalmente, a pressuposição não é suficiente para determinar a sua correcção. Pelo contrário, a ideia é a de que atendendo ao facto de que um princípio moral é correcto e suficientemente profundo, ao pressupor-se tem capacidade explicativa. Se o universo da moralidade é, até um certo ponto, autónomo, e não assenta num facto moral bruto, podíamos esperar que existisse algum princípio moral fundamental que explicasse muitos outros princípios específicos ao mesmo tempo que era pressuposto.
Desde os tempos em que Glaucon desafiou Sócrates, os filósofos morais tentaram provar que é do nosso inteiro interesse pessoal agir moralmente. Para que esta tentativa fosse bem-sucedida deveria mostrar, dentro da matriz de escolha, quais as opções que seguem a moralidade PD, quais as que seguem RSI, as que estão relacionadas com os caprichos de momento, e outras tais, sendo que se alguém fizesse uma escolha aplicando RSI, seria levado a seguir o princípio da moralidade. Mais do que (além de) ser capaz de derivar de outros conceitos, o RSI serve para pressupor a moralidade. (Ao contrário, Mandeville defende que a moralidade pressupõe o RSI.) Se ao seguir a moralidade entrássemos em conflito com os nossos interesses pessoais, haveria uma certa incoerência e instabilidade ao nível do RSI — começando com RSI, seríamos levados a rejeitá-lo. RSI desvalorizar-se-ia. Não está claro até que ponto a moralidade poderia ser apoiada no caso da linha de pensamento que lhe conferiu esse estatuto ser depois rejeitada como sendo inadequada. Embora RSI, enquanto opositor da moralidade, pudesse ser rejeitado uma vez que se desvaloriza, poderia ocorrer a possibilidade (trazida à discussão por Mandeville) de que essa mesma desvalorização também acontecer com a moralidade. No entanto, as tentativas da filosofia tradicional em fazer derivar moralidade de RSI não colocavam a hipótese de substituir RSI por moralidade. Pelo contrário, a sua tarefa seguia a linha de Platão: demonstrar a harmonia entre a moralidade e RSI, demonstrar que seguindo (qualquer) uma delas, bem entendido, melhor servimos os propósitos da outra.
Vimos como alguns princípios morais discutidos por alguns filósofos foram vistos como pressupostos; na secção anterior, vimos como os princípios de resposta aos valores e à realidade se podem pressupor. Porém mesmo que possamos exibir tais pressuposições no caso de princípios profundos que consideramos aceitáveis, por exemplo, um princípio de resposta a valores ou à realidade, não me parece que deste modo possamos chegar a uma explicação adequada sobre o universo das verdades morais. Uma vez que existem princípios éticos que se podem pressupor e são alternativos e até mesmo conflituosos, tais como PD e IRS, isso será um facto contingente do qual dependemos no universo. Poderá, então, existir um princípio que se pressuponha como rejeição da realidade, e deste modo estaríamos a segui-lo ao desrespeitá-lo? Todavia, usando ingenuidade suficiente podemos criar um outro princípio de pressuposição adequado como uma alternativa a qualquer tipo de reacção. Para ter a certeza, haveria uma explicação pela qual aquele princípio, que de facto existe no nosso universo, contém, nomeadamente, a explicação do que permite a pressuposição. Porém embora exista no nosso universo, e não apenas como um facto bruto, se a sua única base é a pressuposição, então não necessita pertencer a outro universo possível. (Se um princípio que pode ser pressuposto permanece em vez de outro, apenas pelo facto de que possui a virtude da permanência, este facto constituiria outro motivo análogo de reflexão.)
Não me parece que, apesar de tudo, desta forma a moralidade seja contingente. Poderia existir um universo destinado à procura de valores do eu, contudo não existiriam condições ou pressões morais sobre como devessem ser tratados, ao passo que existiriam condições sobre como outra coisa qualquer (dissociada deles) deveria ser tratada. Não poderia existir um universo no qual pudesse ser possível matar ou torturar pessoas sem qualquer razão de peso. As verdades morais não existem apenas para serem adoptadas no universo. Elas permanecem no universo — qualquer universo que possua a procura de valores do eu. Deste modo elas são muito mais verdades necessárias do que contingentes. No entanto a explicação pressuposta de verdades éticas fundamentais, uma vez retirada a sua qualidade de facto bruto, não elimina o facto de elas serem contingentes; nesta linha de pensamento, outras verdades poderiam permanecer no seu lugar. (Lembremo-nos das questões relacionadas com a posição teológica que defende que as verdades éticas são escolhidas e criadas por Deus, sendo que no caso de Deus ter escolhido de modo diferente, o que poderia ter acontecido, então poderiam resultar verdades éticas diferentes e até mesmo opostas.
Se princípios morais fundamentais podem eventualmente não ser contingentes, o que poderia ser a base dessa não contingência? Infelizmente não possuímos uma compreensão adequada de outras necessidades aparentes que não se devem somente ao significado dos conceitos envolvidos, especialmente nos casos da matemática (teoria de números e combinações) e da lógica. (Além disso, desde o trabalho de W.V. Quine, perdemos confiança nas explicações, pensando-se anteriormente serem livres de questões problemáticas, de necessidades criadas apenas por relações de significado analíticas.) Embora não seja possível traçar considerações sobre uma teoria da necessidade, reconhecida como sendo adequada em qualquer lado, poderemos confortarmo-nos com a ideia de que o estatuto das verdades éticas, geralmente mal interpretado, poderia resultar como não sendo pior do que o das verdades matemáticas.
A questão de Kant na obra Crítica da Razão Pura consistia no seguinte: como são possíveis as verdades à partida sintéticas (de geometria e aritmética, “qualquer acontecimento tem uma causa”, e assim por diante)? A observação pode apenas dizer-nos que algo é o caso, não que deve ser o caso; mais se acrescenta, as afirmações não são verdades verbais que devem permanecer atendendo ao que os conceitos que a constituem significam. A explicação de Kant, se quisermos ser directos, é a de que estruturamos o mundo para que as asserções que fazemos sejam verdadeiras. Estruturamos o mundo ao desenvolvermos experiências com ele, ou então fá-lo a nossa estrutura cognitiva; qualquer mundo que pudéssemos experimentar transportaria consigo indícios desse processo de estruturação. (Comparemos esta situação com aquela em que os mapas resultam de um processo de projecção usado.) Assim, todos os mundos (dos quais temos conhecimento experimental) devem evidenciar características indicadoras, para que as asserções que representam estas características não só sejam verdadeiras mas também devam ser verdadeiras. [III]
Não é nossa prioridade avaliar aqui se Kant está correcto no argumento que apresenta na sua primeira Crítica, se de facto existem aquelas verdades sintéticas a que se referia, ou se a explicação que Kant oferece de facto as fundamenta. O que nos importa é se uma teoria deste tipo, que podemos designar por estruturação de Kant, poderia servir de fundamentação para as verdades de teor ético. Poderiam as verdades éticas permanecer como resultado ou efeito secundário de um qualquer processo no que respeita ao modo como organizamos o mundo de forma cognitiva, ou à relação que estabelecemos entre nós próprios e o mundo? Poderiam as verdades éticas possuir um estatuto semelhante à que Kant atribui a verdades de síntese necessárias na sua primeira Critica? Não pretendo declarar que a própria teoria ética de Kant pertence a este tipo, ao desenvolver o género de programa que apresenta nessa obra; Contudo, seria surpreendente não existir qualquer forma de interpretação esclarecedora sobre o que escreveu acerca de ética, delineando uma estruturação pessoal.
Como resultado deste programa obteríamos verdades éticas objectivas ou subjectivas? Nenhuma das denominações seria adequada ao seu estatuto; uma vez que as verdades não teriam validade independente de tudo o resto sobre nós, também não dependeriam de nada pessoal, nada como uma preferência que variaria de pessoa para pessoa. As verdades da ética seriam tão sólidas como Kant julgava que as verdades de Euclídes sobre geometria e as de Newton subjacentes à mecânica o eram — e este é de facto um estatuto sólido. Esta análise também serviria de argumento para a ideia de que, na nossa opinião, há algo mais subjectivo em ética do que em outras verdades (objectivas) — isto no caso de uma explicação de estruturação das verdades tal como Kant previu ser construída para a ética e não para outras verdades (ao contrário da análise de Kant na sua primeira Crítica).
De modo a fundamentar a ética de forma credível, é necessário que a estrutura que a põe em evidência seja inevitável, e também algo do qual não escolhêssemos fugir, mesmo que pudéssemos. Uma das coisas à qual não desejaríamos escapar com certeza é a de sermos um eu. Se o processo de nos estruturarmos como eus implicasse a ética, então esta estaria profundamente enraizada e fundamentada. (Fitche faz uma tentativa para discernir esta teoria na obra O Sistema da Ética.) Deste modo, as verdades éticas só poderiam ser evitadas caso não constituíssem uma entidade; uma pessoa egoísta teria a capacidade de evitar as verdades éticas simplesmente desistindo da coisa cujos interesses ele pretende evidenciar como supremos, si mesmo. (É de notar de que se trata da existência de verdades e não de motivação.)
Se o que acarreta a ética é o sermos um eu, estruturando-nos a nós mesmos como seres reflexivos, então isso poderia explicar por que razão a ética nos circunscreve à primeira pessoa. Uma restrição ética secundária diz-me que não é suposto eu ter um comportamento qualquer, é suposto, sim, que o acto seja minimizado mesmo que ele resulte da minha participação nele. Se o que explica ou fundamenta a ética é o facto de nos estruturarmos enquanto entidades, isso poderia explicar o facto de o “eu” e o “meu” figurarem como termos de referência dentro dos princípios morais fundamentais. Numa área mais limitada, um termo de referência pode ser utilizado sem estar sujeito a uma forma restrita lateral. Entre uma restrição lateral e uma perspectiva impessoal com potencial direccionada para a consecução de objectivos encontra-se uma perspectiva de referência maximizada (ou minimizada): Dê menos importância ao facto de eu ter tido o comportamento A. Se o facto de eu o ter feito desta vez evitar que o faça de futuro (evitando a necessidade de o fazer ou evitando sucumbir à tentação de o fazer), então a atribuição de menor importância a esse facto iria permitir a sua realização enquanto que uma perspectiva que impõe restrições não o permitiria, mesmo tendo conhecimento que dessa forma eu acabaria por violar essa restrição mais tarde ou de forma mais frequente. (Esta perspectiva de referência minimizada deve ser explorada de forma mais aprofundada e completa.) A ética não só nos diz como tratar seres que reflectem de forma consciente e não só é dirigida a tais seres, dando indicações de como se devem comportar; a ética é, nesta perspectiva de estruturação de Kant, baseada na consciência reflectiva. Deste modo não é surpreendente que os princípios éticos contenham obrigatoriamente termos de referência reflexivos, quer no âmbito das restrições quer no âmbito de princípios que me induzem a reduzir a importância do meu comportamento A. A referência reflexiva é o sinal indicador da existência de ética.
Esta abordagem de estruturação segundo Kant não teria qualquer hipótese de sucesso se o eu fosse uma entidade primitiva, uma raiz metafísica sem quaisquer componentes ou partes, e não o resultado de um processo de estruturação, unificação e organização. Devem existir “partes móveis” suficientes numa interacção complexa para que a ética possa emergir desse processo. No primeiro capítulo vimos que o eu não é uma raiz, que o eu estrutura e sintetiza a si mesmo de modo a maximizar o nível de unidade orgânica que se encontra à volta da produção intencional de auto-reflexão sobre a evidência. Nem as fronteiras do eu nem as dimensões ao longo das quais ele se projecta têm origem na metafísica; elas aparecem e são seleccionadas no processo de auto-síntese.
Passaremos agora a apresentar áreas onde a ética pode ter origem quando se dá o processo da estruturação do eu — as partes móveis que fazem parte do ser eu.
A questão da existência de outros modos mentais de estruturar o mundo tem sido um problema difícil para os epistemológos: partindo do princípio que apenas temos os movimentos corporais e os sons produzidos por de uma pessoa, como poderemos ter a certeza que ali de facto existe uma outra pessoa com a sua própria subjectividade, uma vez que não temos experiência directa dessa subjectividade? Se qualquer premissa ética ou de valor entrasse no passo que é dado da evidência de comportamento para outra mente, então estaria claro porque devemos tratar os outros indivíduos de certa maneira. Nesta base, esta mesma condição de dever (ou outra que dela seja consequência) entraria no nosso reconhecimento (justificado) do outro como um indivíduo com marcas de personalidade próprias. É verdade que devemos tratar os outros de certa maneira, porque esse dever decorre do nosso reconhecimento dos outros como indivíduos. [IV] Há que notar a diferença entre um dever que tem lugar numa quarta fase, e a fase anterior. Se ocorrer numa fase anterior, então a estruturação do eu (do nosso próprio eu) conduz ao seguinte raciocínio: Se existisse um outro eu, deveria ser tratado de certa maneira. Se o dever aparece pela primeira vez na quarta fase, então estruturar uma outra pessoa como sendo um eu leva-nos a pensar: trata-o de certa forma.
A característica que utiliza a força ética é o “ser-se um eu que busca o valor”, sendo que até aqui lidámos com a estruturação feita por “um eu”. Seria bem melhor se a mesma característica estivesse relacionada com ambos os fins; porém introduzir um “ser-se aquele que busca o valor” num fim de estruturação poderia interferir com a condição de que essa estruturação se devia basear em algo tão profundo que ninguém escolheria existir sem ele. (Por outro lado, poderia esta simetria reduzir o modo como uma estruturação que Kant faz da ética depende da pessoa que estrutura? Se a característica C que leva a cabo essa estruturação também interfere com a de outras C que existem no mundo a qual exerce a força motora, e as de outros C também operam a mesma estruturação, então mesmo sem a consciência de si, teria lugar uma estruturação que conduzisse à ética?)
A perspectiva de estruturação de Kant é sedutora em muitos aspectos, mas seria necessário preencher algumas lacunas. Seria necessário demonstrar exactamente como é que a estruturação funciona de modo a introduzir a ideia de dever ou valor. Não vou prosseguir mais com estes pormenores por três razões, sendo que a primeira é que não vejo como exactamente se pode fazer derivar a ética deste processo. A segunda preocupação relacionada com a referida estruturação de Kant em que a ética resulta da estruturação de si, é que faz parecer a força ética que parte do outro muito pequena, e da minha parte parece apenas um impulso. Esta explicação de como e por que razão uma característica, pertencente a um eu que busca valor, comanda o respeito e a assertividade concentra-se não no portador da característica, no que ele é, mas mais naquele que o vê (e que também é portador da característica). Este tipo de consideração parece melhor adequada à teoria do impulso, ou em todo o caso insuficientemente independente do agente para ser um impulso nele. Creio que esta crítica também pode ser aplicada à teoria ética de Kant na qual a lei moral parece provir da minha natureza racional e me faz exigências. Embora esta exigência diga respeito a outra pessoa, podendo mesmo ser descrita como a exigência que ele faz, numa segunda fase, ela não provém dele nas suas fundações. A perspectiva de Kant faz surgir de mim a lei moral que diz respeito ao outro de tal modo que não reconhece de forma adequada a profundidade da força moral do outro. Não quero dizer que a força moral seja tão profunda que não possa oferecer alguma explicação, mas a explicação da força moral utilizada pelo outro não me deve colocar a um nível superior a este.(Recordemos a discussão, na parte anterior, sobre a paridade da força e impulso moral.)
A terceira preocupação diz respeito ao facto desta estruturação de Kant não se enquadrar bem no nosso desejo de procurar e identificar outros valores que existam de forma independente. Se estes valores forem, ao invés, colocados por nós próprios, como um efeito secundário da estruturação de Kant, então por que deveríamos persegui-los, seguir-lhes a pista, ou de outro modo, atribuir-lhes valor V? (O acto de perseguir valores introduzido pela estruturação de Kant não parece um acto em equilíbrio.) Porém, talvez esta construção satisfaça melhor aqueles que pensam que perseguir exteriormente determinados valores objectivos não é um acto suficientemente autónomo; embora ainda não lhe confira a autonomia atribuída pela perspectiva de Kant na qual ao seguirmos a lei moral estamos a legislar o nosso próprio comportamento. (Mas recordemos a discussão no Capítulo 4 sobre se a fundamentação que Kant desenvolve sobre a lei moral presente na nossa essência inevitável não destrói a autonomia que ele procura.) Entre não querermos dedicarmo-nos a perseguir algo que nós próprios criámos, e tomando algo que vem do exterior como um limite à autonomia e dignidade, não existe muito espaço de manobra. Devemos tentar escapulirmo-nos deste dilema.
Algumas linhas de pensamento tentam basear a ética ou o valor em fundamentos religiosos: o bem ou o que se pode valorar ou o que é moralmente exigido é o que Deus aprova, ou quer que façamos, ou ordena. Todas estas perspectivas enfrentam primeiro a questão apresentada por Sócrates no diálogo de Platão Eutífron: Será alguma coisa boa porque Deus a aprova, ou aprová-la-á Deus porque é boa?
Se a base para a aprovação divina de uma coisa é o seu carácter de bondade (o qual não deriva nem é sinónimo de aprovação divina), se Deus aprova essa coisa em virtude da sua bondade, então existe uma noção independente ou padrão de bondade na qual o juízo de Deus se enquadra, mais do que cria. Neste caso, a atitude de Deus em relação a algo não seria a base da sua qualidade moral ou de valor; a verdade fundamental sobre a bondade, valor e ética não seria teológica. Por outro lado, se algo é bom porque Deus o aprova, se se torna bom em virtude de ser aprovado por Deus, então o valor e a ética terão base divina. Porém surgirá a questão de por que o aprova Deus — não, por hipótese, porque é bom — e a de se Deus poderia ter aprovado outra coisa qualquer, a situação oposta, e caso o tivesse feito, se isso teria sido considerado bom, em lugar disto. (John Calvin defendeu que a predestinação não era injusta, com base em que a justiça não existe como um padrão independente de Deus, mas sim criada e definida pelos actos de Deus.) A última alternativa, de que o bem poderia ter sido diferente e sê-lo-ia se Deus tivesse escolhido e decidido de modo diferente, o que poderia bem ter acontecido, é deveras de mau gosto. Poderíamos até imaginar a questão de Platão transformada numa com a qual Deus se preocupa. Imaginemos Deus a ter que enfrentar um dilema semelhante ao que fechou a secção anterior. Serão os próprios actos de Deus e a sua própria existência valoráveis; caso o sejam, decorre isto de um padrão externo independente dele (e por isso Deus sente-se coagido a ele?), ou de um padrão que ele próprio cria ou legisla — nesse caso está Deus satisfeito ao juntar-se a um clube que ele próprio fundou, para o qual ele formulou as condições para se ser sócio?
Haverá outra alternativa para uma ética baseada em teologia; Haverá algum modo que possibilite a Deus fazer o seu bolo e poder desfrutar dele também? Consideremos algumas possibilidades. Primeiro, poderíamos considerar que embora não existam quaisquer padrões pré existentes de bondade ou valor, a aprovação divina não é arbitrária. Ele aprova algo atendendo à característica C que essa coisa possui; o facto de algo ter C, esse algo ele próprio, são bons em resultado dessa aprovação. O elo entre facto e valor passa pela ideia de aprovação divina. “Poderia Deus discordar de C, ou aprovar a sua ausência, e nesse caso, seria C mau, ou pelo menos falharia em ser bom?” Não está claro quão voluntárias são as aprovações de Deus. Uma perspectiva teológica poderia sustentar que Deus não poderia consentir de outro modo (mas não a pela razão que Deus é necessariamente bom, e por isso deve apenas consentir o bem, uma vez que temos em consideração que a característica C não é um bem pré existente), e que um tecido desta natureza com característica C só poderia levar à aprovação — talvez pelo facto de devermos aprovar coisas no sentido em que se assemelham a ele. Outra ideia defenderia que Deus podia aprovar de outro modo, mas que não o faria, outra vez por causa do tecido da sua natureza com característica C que consente. O que precisamos é de uma explicação do consentimento ou aprovação de Deus, não baseada na já existente bondade no objecto, que a torna não arbitrária. (E um teólogo poderia defender que tal explicação existe, sem ser capaz de especificar qual.) Deste modo, algo bloqueia o passo para a ideia de que “Deus poderia ter ordenado ou consentido a matança de pessoas para comer os seus corações e cérebros, e se o tivesse feito, isso seria correcto, bom e de valor”. Como resposta podemos dizer que o não consentimento de Deus nesta situação não é arbitrário e ele não daria a sua aprovação. Além disso, se Deus tivesse que o aprovar, então, num mundo possível mais próximo no qual ele de facto o aprova, a explicação não-arbitrária da sua desaprovação é desconsiderada. Todavia as leis ou princípios gerais subjacentes à real desaprovação continuam a ser verdadeiros nestes mundos que se encontram próximos, então outra coisa qualquer tem que ser diferente aí — o comportamento ou estado teriam um carácter diferente, para alterar a desaprovação de Deus de acordo com os princípios que regulam a sua resposta não-arbitrária. (Ou então, nesse mundo mais próximo onde Deus o consente, os princípios que regulam a sua aprovação teriam mudado; então podemos ultrapassar a questão de se, nesse caso, essa coisa diferente seria boa.)
Parece que, neste sentido um teísta pode continuar a manter uma base teológica para a ética e os valores, mesmo face aos argumentos explosivos da questão de Eutífron; pode manter que algo é bom porque Deus ainda o aprova, atendendo ao facto de que o que Deus aprova tem uma explicação não-arbitrária, é preciso evitar os conjuntivos indesejáveis. [V] Contudo, enquanto que esta perspectiva coloca os valores no nosso mundo, baseados na aprovação divina, coloca Deus numa situação desprovida de valor, incapaz de se ver a si mesmo e a sua existência como tendo valor. Depois, tal como outros, ele poderia ver o valor como dependente da sua aprovação, e dessa forma ver-se como algo com valor. Mas isto não lhe dirá mais do que ele consente sobre si mesmo, que ele é o tipo de coisa que ele tende a aprovar com segurança. Não poderá mesmo ver o seu consentimento ou aprovação como aspectos valoráveis independentes. Haverá algum modo de a perspectiva teológica atribuir algum grau de independência ao valor, de modo a colocar o valor dentro da existência de Deus, e não o deixar apenas como uma mera consequência derivativa da sua aprovação?
Deus poderia escolher que existam valores, que se criem valores. Verá Deus a existência de valores como sendo algo melhor, mais valorável? Ainda não, porque ainda não existem valores. Mas será melhor que existam, de acordo com os que então já o são. Desta feita Deus cria valores, segundo os quais a existência desses mesmos valores tem ela própria valor, o seu acto de criar valores é valorável, a sua subsequente adesão a esses valores é sujeita a uma apreciação de valor, a sua existência é valorável, e assim por diante. Os valores criados validam a sua própria criação; eles atribuem valor ao facto de Deus os criar. Os valores não resultam da mera aprovação divina; ele escolhe criar valores, criá-los como valores.
Poderia Deus ter criado coisas diferentes como valores, se ele tivesse optado de modo diferente, seriam os valores diferentes? Vimos como uma perspectiva teológica o defendeu, dada a sua natureza, Deus não escolheria de modo diferente. Há outra ideia a considerar: a natureza do valor limita aquilo que pode ser criado como valor. Na primeira parte deste Capítulo, listámos várias condições, constituintes da natureza do valor, num projecto que visava unicamente especificar o valor. Só algo que satisfizesse essas condições poderia ser valor; se apenas uma dessas coisas o fizer, por exemplo, o grau de unidade orgânica, então só isso pode constituir valor. (Todavia, reforçamos a ideia que permaneceria a outra questão de por que constitui isso um valor, de por que existe valor de qualquer modo.) Se supusermos que o valor é assim especificado de forma única (embora as suas várias combinações não o sejam — recordemos a secção sobre pluralismo), então embora Deus possa decidir sobre a existência (ou não) de valor, não podia escolher que outra coisa qualquer fosse valor. A existência de valor é com ele, mas o carácter do valor é independente, e não está sujeito ao seu controle ou escolha.
Na relação de Deus com o valor (no seu ponto de vista) a sua autonomia é preservada, uma vez que é de sua vontade que exista valor, porém também há um padrão independente de valor de acordo com o qual a sua existência e escolhas são valoráveis, um padrão que não é simplesmente determinado pelas suas preferências ou aprovação. Embora ele seja o fundador do clube, as condições de associação não são por ele determinadas.
Estas reflexões não pretendem ser um contributo para a teologia, mas sim sugerir e assinalar uma possibilidade análoga sobre a nossa relação com os valores. Neste caso parecem existir as seguintes possibilidades. (1) Não existem quaisquer valores ou verdadeiros estados de dever (asserções que emitem juízos de valor) (e não poderão existir?), esta posição foi designada por niilismo. (2) Os valores existem de facto; eles existem e possuem um carácter independente das nossas escolhas e atitudes. Esta ficou conhecida por realismo ou platonismo. (3) Os valores existem, mas a sua existência e carácter são ambos de certo modo dependentes de nós, das nossas escolhas, atitudes, compromissos, estruturas, ou o que for. Podemos chamar a esta perspectiva idealismo filosófico ou criacionismo. Embora estas três possibilidades tenham sido bastante discutidas em várias obras, existem outras duas que vale a pena especificar. (4) Os valores existem independentemente de nós próprios, mas de forma incipiente. Escolhemos ou determinamos (dentro de limites?) o seu carácter preciso; esculpimo-los e delineamo-los. Chamaremos a esta modo formacionismo ou romantismo. (5) Escolhemos ou determinamos que existam valores, que eles existem, mas o seu carácter é independente de nós. A este ponto de vista poderíamos chamar realizacionismo. (Variantes das posições 3 — 5 poderiam considerar que a existência ou o carácter dos valores deriva de nós e das nossas actividades, mas não depende das nossas escolhas voluntárias, antes resultam do que temos que fazer, de alguma necessidade das nossas naturezas.)
A quinta perspectiva oferece uma reconciliação entre autonomia e padrão externo (enquanto que a quarta não apresenta qualquer padrão externo ao qual devêssemos aderir ou tentar alcançar). Sendo que a existência de valor está dependente de nós, o valor e o mundo impregnado dele e iluminado com ele torna-se-nos menos estranho; porque o conteúdo do valor é independente de nós, possuímos um padrão externo para nos alinharmos em função dele e o seguirmos.
Será esta visão do valor — enquanto algo cuja existência é dependente de nós, mas cujo carácter é independente — coerente? (Deixemos de lado o facto de os pais muitas vezes verem esta descrição — existência dependente mas carácter independente — como apropriada à condição dos seus filhos.) Uma corrente dentro da filosofia da matemática defende que nós criamos ou construímos entidades matemáticas, a progressão dos números naturais, ou seja o que for, mas os factos relacionados com estas entidades criadas, a relação entre eles e assim por diante, existem independentemente de nós. Criamos entidades matemáticas e depois descobrimos as verdades que sobre elas se sustentam se forma independente. De forma semelhante, Karl Popper defendeu que existe um universo criado pelo homem (“o terceiro mundo”) constituído por entidades abstractas, problemas intelectuais e fóruns de discussão actuais, a partir do qual as verdades se sustentam autonomamente, independentes de nós. Os problemas que resultam da tentativa de fornecer uma interpretação realista na área da mecânica quântica não produziram uma arena activa de perspectivas sobre acontecimentos ou estados cuja existência é dependente de nós (ou no que respeita a comportamentos de observação) mas cujo carácter é independente de nós. Durante o século XX apareceram outras áreas de conhecimento que deram relevo à resposta a um determinado assunto: em psico-análise, o critério de validação de uma teoria é a aceitação do analisado (irrevogável, subjectivo) (enquadrar-se-á isto melhor na quarta possibilidade?); é comum dizer-se em literatura que as reacções e leituras do leitor (ou do crítico) dão vida à obra, mesmo se a obra for sobre o próprio processo de leitura; também se pensa que a pintura moderna seja de igual modo reflexiva. A minha questão não é a de que o mesmo tipo de abordagem deve ser considerada verdadeira em cada uma das áreas, na matemática, na física, nas artes, ou até que de facto comporta verdade em cada uma delas; todavia, o facto da última abordagem (realizacionismo) ter sido proposta de forma séria em tantas áreas é razão para acreditar que, pelo menos, é uma abordagem coerente, e por isso mesmo uma possível forma de estruturar a teoria do valor.
O declínio da abordagem realista sobre o valor, que teve a sua base e apoio institucional de maior importância ao nível da igreja, esteve em grande evidência nas diagnoses do período moderno. A terceira, quarta e quintas possibilidades, concebendo-se o romantismo em sentido abrangente, representam uma resposta intelectual: manter a viabilidade de algum tipo de valores. Porém, estas posições não se materializaram em instituições influentes de grande alcance. (Continuam a existir realistas que desacreditam o que vêem como um afastamento da verdade.) Uma segunda resposta ao declínio do realismo, apresentada por aqueles que não compreendem como é que o vazio daí resultante poderia ser preenchido pela nossa própria actividade (criativa), foi (tal como em Kafka, Beckett, e os existencialistas) uma certa ansiedade, uma consciência de perda, mas também a recusa de serem transportados de um estado de angústia para um de contentamento (ilusório). Algumas vezes os que defendem esta posição fazem da sua angústia autêntica uma virtude de modo a que isso constitua o derradeiro valor a existir, contudo esta tentação de cairmos em aspectos do romantismo não se oporá ao escrutínio. Uma terceira abordagem, geralmente descrita como um efeito posterior ao declínio do realismo mais do que uma resposta a ele, defende que não existem verdades válidas, apenas preferências pessoais, esta perspectiva não considera que alguma coisa esteja em falta ou ausente, não vê razão para angústias. É a que prevalece e domina entre o grupo de cientistas sociais; a sua base cultural é o resultado das ciências naturais (desprovidas de valor) e as capacidades de uma civilização tecnológica e industrial. A tecnologia é um meio (instrumento) “neutro”. Embora teoricamente a ascensão do que Max Weber designou por objectivo de racionalidade deixe lugar para que os valores possam ser inseridos como fins em direcção aos quais se tem como objectivo definir os meios, tais valores não têm objectivos práticos — desejos arbitrários são suficientes. Ao contrário do gato chestshire em “Alice no País das Maravilhas” de Lewis Carroll, que tem a capacidade de desaparecer deixando apenas o sorriso, este desaparecimento de valores nem mesmo a sua ausência (notável) deixou para trás. [VI]
Os proponentes desta última posição podem apenas seguir os seus “meros” desejos; não podem acreditar que devem agir daquela maneira, ou que é melhor agir de determinada maneira. De modo semelhante, acreditam ser verdade que não existem valores objectivos, mas não (escolhem) acreditam no que é verdadeiro porque devem ou porque é melhor — simplesmente o preferem, ou fazem-no como uma forma de satisfazer as suas preferências. Algumas frases feitas terão diferentes interpretações consoante o ponto de vista em que são analisadas. Para o criador de valores, “faz o que gostas de fazer”, significa encontrar satisfação pessoal na actividade valorável de exprimirmos a nossa própria individualidade e também construir uma combinação singular de valores, enquanto que para aquele que propõe esta última perspectiva isso significa que não há razão nenhuma para não fazermos exactamente o que nos dá prazer, uma vez que não existem valores alguns.
O meu objectivo aqui não é o de seguir o comentário cultural, mas sim enunciar e delinear a quinta posição sobre os valores: escolhemos que existam valores, mas não o seu carácter. [VII] Em que é que consiste a escolha de uma pessoa para que haja valores? Poucas pessoas dizem “deixemos que haja valores!” E de que modo o dize-lo torna verdade que haja valor? A escolha de que haja valor é feita quando se valorizam coisas, quando se valorizam coisas como sendo importantes.
Talvez só durante este século tenha esta escolha sido feita em plena consciência de que constituía uma escolha, porém a própria escolha não é exclusiva desta época, tal como podemos verificar através dos fenómenos de depressão mental, encontrados em todos os períodos históricos e culturas, onde uma pessoa simplesmente (mas não só) deixa de atribuir valor às coisas. Uma pessoa deprimida não só escolhe deixar de ser afectada pelas condições exteriores — ela escolhe também o mundo que lhe corresponda e seja desprovido de valor. No caso de depressões mentais, o fosso entre facto e valor é psicologicamente real. Podem essas teorias filosóficas que tentam cobrir, suster ou ultrapassar este fosso dar testemunho de valor de uma pessoa que sofre logicamente de depressão grave, fazendo derivar uma conclusão de valor a partir das premissas que ela aceita? Não será ir longe de mais se especularmos que todas essas teorias propostas até agora poderão falhar neste ponto. Embora o objectivo da filosofia não seja conceber algo ou alguém, a experiência de estados mentais poderia constituir um teste adequado para o pressuposto de que não existe qualquer cisão deste tipo.
Verá a pessoa que faz a escolha para a existência de valor o mundo numa perspectiva meramente valorável, assumindo uma perspectiva valorável do mundo? Devemos compará-la às figuras da gestalt que podem ser vistas de duas maneiras, a mulher idosa e a jovem rapariga, ao pato-coelho, ao vaso e às duas caras, ao cubo de Necker? Poderíamos ser levados a pensar que a pessoa que escolhe que existam valores acrescenta algo, que ela interpreta o mundo enquanto que a pessoa que admite não existirem valores apenas descreve o que existe de facto. No que respeita às figuras da teoria gestalt, todos concordam que existem linhas e pontos de tinta; podemos olhá-las simplesmente como isso mesmo (e desta forma podemos vê-la de três maneiras). Todavia, esta não é a perspectiva da pessoa que nega a existência de valor, uma vez que acrescenta aos factos consensuais (sobre a unidade orgânica, por exemplo) a expressão de que “não existe valor”. Assim, de forma a continuar a analogia, a sua interpretação é uma das mais aceites correspondendo à da mulher idosa e da jovem rapariga, e não uma minimalista correspondendo a “linhas ou pontos de tinta”.
Neste sentido existem apenas duas igualmente plausíveis interpretações, uma apoiando a existência de valor enquanto que a outra o rejeita, sendo que ambas são igualmente verdadeiras? A perspectiva que nega a existência de valor não pode exigir igual aceitação, uma vez que não reconhece qualquer noção de aceitabilidade na base da qual poderia ser considerada igual; contudo, poderia afirmar-se como “não sendo pior”, significando desse modo que não existe nenhuma noção de “pior” de acordo com a qual seria qualificada numa posição inferior. Nesse caso nenhuma destas interpretações perspectiva a outra como ocupando uma posição inferior à sua, e assim à sua própria maneira, (na melhor das hipóteses) faz sentido. Por outro lado, aparece a perspectiva segundo a qual o valor tem a capacidade de se colocar numa posição melhor do que a perspectiva que o nega. A perspectiva que nega a existência de valor alega ser verdade, mas não pode alegar que é melhor que seja verdade, ou que é melhor acreditar na verdade. Embora aqueles que negam o valor por vezes vejam a sua própria teimosia em não ceder (àquilo que consideram ser) a ilusão do valor como um acto valorável ele próprio, esta satisfação não é legitimamente válida para eles.
Deixando de lado tais considerações dialécticas, será que nós, que escolhemos que existam valores, vemos a nossa avaliação do mundo e a nossa procura de valores apenas enquanto uma perspectiva, um ponto de vista entre muitos outros? Caso contrário, julgamos ser verdade que exista valor, e é esta uma verdade que existe independentemente de tudo o resto, uma verdade à qual a nossa escolha para que haja valor parece corresponder, ou será ela criada ou trazida à existência pela tal escolha para que haja valor?
Ao valorizarmos as coisas, escolhemos ver o mundo como valorável, optamos para que haja valor. Ao atribuirmos valor às coisas, também o podemos fazer em relação à existência de valor, e quando avaliamos o próprio valor. A nossa escolha para que haja valor é ela própria considerada valorável de forma retrospectiva e retroactiva, de acordo com os resultados da escolha; o valor não só é escolhido mas é também exemplificado no próprio acto de escolha. Todavia, falar de valor como existindo de forma retrospectiva e retroactiva poderá adulterar a situação. Uma vez que a escolha para que o valor exista poderia ser aplicada não (só) em retrospectiva mas, nessa altura, de modo reflexivo. A capacidade de reflexão ou referência, referência “do interior”, lembramos o conteúdo do primeiro capítulo, envolve uma referência que tem em consideração a propriedade conferida no acto de referência, a referência a algo que possui essa propriedade (dada) que foi desse modo conferida. Podemos dizer que o objecto é referido como um resultado da referência reflexiva. De igual modo, a escolha para que exista valor é reflexiva quando escolhe que ele exista em virtude de uma propriedade conferida pelo próprio acto de escolha; a escolha para que haja valor resulta do próprio acto de escolha para que ele exista. No capítulo anterior analisámos como uma escolha que não é provocada podia ser livre e planeada; envolvendo uma avaliação reflexiva das razões ou do valor. Aqui vemos como a escolha para a existência de valor pode ser incluída nessa estrutura. A escolha para que haja valor e a escolha de seguir valor são ambas pressupostas sob a escolha de valor V; e esta escolha pode ser um exemplo da linha de conduta quando se segue e valoriza o valor, uma linha de conduta que é causada de forma reflexiva e pressupõe essa mesma escolha.
Pode, deste modo, a escolha de que haja valor ser infundada (no sentido de se estabelecer uma teoria), ao invés de invocar um sentido de acordo com o qual uma referência reflexiva tem lugar, ou de invocar regras constitutivas de acordo com as quais actos ilocutórios e performativos poderiam ter lugar? Mesmo que o valor pudesse estar presente como resultado da escolha de que haja valor, podemos conferir um valor a algo em virtude de tal concessão reflexiva, a qual o concede apenas como algo que é concedido (de forma reflectida)? Estará esse valor de facto presente nesse processo?
Consideremos o caso de placebos, substâncias químicas inertes e inofensivas usadas para efeitos terapêuticos. Damos um medicamento a uma pessoa dizendo-lhe que isso o ajudará na sua doença ou dor; ele acredita no que lhe é dito, e desse modo é ajudado na cura. Todavia, esta cura funciona com base na sua crença no efeito do medicamento, e não apenas através da acção bioquímica da substância no seu organismo; se lhe for administrada a mesma substância química, sem que ela tenha consciência que está a ser ajudada, então não receberá qualquer benefício. Será verdade que a substância presente naquele placebo pode ajudar o paciente, no caso de ele acreditar nos seus efeitos na hora de o tomar?
Como funciona este benefício? Recentemente descobriu-se que as endorfinas, substâncias que servem para aliviar a dor semelhantes à morfina, são naturalmente produzidas no organismo, e há provas de que um placebo exerce influência na produção de endorfinas. [VIII] Suponhamos que quando uma pessoa acredita que está a receber um alívio para a dor ou outra ajuda, este facto estimula a produção de endorfinas ou outros agentes com potencial de cura, reforçando deste modo o seu alívio.
Consideremos o caso de alguém que conhece estes resultados científicos sobre o modo de actuação dos placebos; quando esta pessoa estiver com dores ser-lhe-á administrado um placebo e esse facto é transmitido ao paciente. Será a sua dor diminuída? Esta é uma questão empírica (para a qual, na minha perspectiva, há evidência de que a resposta é afirmativa). Ao lhe ser administrado o placebo, esta pessoa bem informada poderia perguntar, sabendo que um lhe vai ser dado: os placebos dão resultado em casos como este? Se esta substância funciona apenas no caso em que pessoa acredita que isso poderá (ou poderia?) ser possível, então ela também poderá querer saber se essa mesma substância funciona no seu caso em particular. (E poderia ela então perguntar se também funciona no caso de alguém que sabe que lhe foi dado um placebo, e que, na altura, tomou conhecimento se funcionaria ou não? E assim por diante.) Suponhamos — sem nos esquecermos de que se trata de uma questão empírica — que funciona neste caso, para aqueles que acreditam que poderá (ou pode) funcionar. (Talvez não tenha funcionado inicialmente, mas as pessoas foram informadas que, neste caso, funciona, que existem dados baseados em experiências que demonstram a sua eficácia, e assim, uma vez que acreditam no que lhes é transmitido, o placebo é de facto eficaz.) A suposição de que o placebo actua de forma eficaz seria infundada; resultaria da crença de que tais placebos são benéficos. Neste caso são produzidas endorfinas em virtude de uma crença reflexiva: a crença em que esta própria crença produzirá endorfinas. (Consideremos como uma descrição de conhecimento tal qual foi apresentada no Capítulo 3 deveria lidar com a questão no sentido de verificar se esta pessoa sabe ou não que está a ser ajudada pelo placebo.)
Até agora temos evitado a questão ontológica sobre a existência ou não do valor. Analisámos o que seria o valor se existisse valor (nomeadamente, unidade orgânica), como nos poderíamos posicionar face a esse valor e face às características valoráveis de outros, e de que modo poderíamos procurar e seguir valores. Sugerimos que poderiam ser listadas condições sobre o valor que o especificariam de forma singular, excluindo todas as dimensões excepto a dimensão do valor intrínseco. Todavia, em nenhuma parte deste trabalho demonstrámos, provámos, ou argumentámos que essa mesma dimensão elegível é o valor ou explicámos por que é um elemento suficiente para constituir valor. (Embora as condições pudessem explicar por que é que o valor, se ele existe, é essa mesma dimensão e não outra qualquer.) A nossa discussão anterior, para usar o termo dos fenomenólogos, colocou entre parêntesis a questão ontológica sobre a existência do valor; a nossa teoria descreveu como seria viver num universo onde existisse valor, onde existissem verdades éticas. (Mas uma descrição completa de tal universo não constituiria condições suficientes para a existência de valor?)
Suponhamos que somos suficientemente desafortunados para viver num universo, idêntico a este, mas sem valor. As condições necessárias constitutivas de valor são satisfeitas, e algumas coisas possuem um grau elevado de unidade orgânica, a qual, (suponhamos) seria considerado valor se é que alguma coisa pode ser, porém nesse universo não existe qualquer forma de valor. (Seria isso “um infortúnio” porque essa situação é pior? Seria esse juízo de valor feito de acordo com um padrão de valor que é sustentável como verdadeiro neste universo descrito, ou apenas num outro qualquer?) Mesmo assim, porquê estar sujeito à contingência de viver num universo sem valores? Não poderíamos nós abandonar a tempo o que nos é prejudicial, e escolher viver como se o nosso universo de facto tivesse valores, não estando deste modo bem pior do que se o valor existisse — mesmo quando isso é avaliado pelo padrão de valor do outro mundo que contém de facto valores? Deste modo, parece que a existência de valor não é necessária, apenas necessitamos um modo coerente para constituir ou formar valor. Precisamos apenas que o valor seja possível. Assim nada que pudesse existir noutro universo faltaria no nosso; sendo que nós aqui poderíamos localizar, adoptar, e seguir o valor que aí existisse, transformando-o em realidade aqui. Neste mundo poderíamos tornar reais as unidades, as interpretações, entre outras, que se podem valorar no outro mundo. É desnecessário, tal como E.E. Cummings sugere, deslocarmo-nos até ao “inferno vizinho”; podemos trazer o seu valor até aqui.
Estas reflexões poderiam sugerir que a existência de valor reside na sua possibilidade, se o valor existe num outro qualquer mundo possível, então de forma a servir qualquer propósito teórico ou prático, também existe neste. Não é suficiente para que o valor tenha um papel na minha vida que eu saiba como ele seria? Todavia que diferença existe entre o aqui e o lá; que mais é considerado verdadeiro lá em virtude do qual a existência de valor é possível? (Terá aí o valor lugar no seguimento de certos factos, tais como o da unidade orgânica, e aqui não?) Mas no caso de não existir qualquer diferença, então por que isto não é evidência de que o valor não existe lá também (uma vez que em ambos os lugares não existirão condições suficientes para a existência de valor), e deste modo mostra que o valor é impossível?
Sabemos o que poderia constituir valor; apenas temos que lhe dar forma, o valorizar, procurá-lo e segui-lo, perfilando as nossas vidas de acordo com ele. Apenas temos que optar pela existência do valor. Para que o valor faça parte do nosso universo apenas precisamos de optar de forma reflexiva para que ele exista, precisamos da nossa imputação reflexiva face à existência de valor.
A escolha fundamental que nos é aberta sobre a existência ou não de valor não é ditada ou caracterizada como melhor por um qualquer padrão de valor pré-existente. Usando um termo de Kierkegaard, é um salto; mas a partir do momento que se dá o salto, ou melhor, nesse (ou em resultado desse) próprio salto, chegamos à conclusão de que essa é a melhor escolha.[IX] O valor não é algo estranho a nós, não algo completamente exterior, uma vez que nós (não só o temos mas) escolhemos que haja valor. Todavia, é fornecido um padrão externo, visto que, de igual modo, o carácter do valor não depende de nós. A separação fundamental reside entre aqueles que fazem ou a escolha pela existência dos valores e os que optam pelo contrário, quer escolhendo pela ausência de valor quer não admitindo a situação de escolha.
Se alguns não fazem a escolha da existência de valor, então podemos admitir que existem valores para nós e para eles não? De acordo com o discurso da mecânica quântica, poderá uma pessoa viver numa posição ou dimensão superior entre um mundo com valor e outro desprovido dele, através da sua escolha (de que exista ou não valor) reduzindo a onda tumultuosa do mundo em que habita? Porém, não vivemos todos no mesmo mundo? Uma prova de que isso é verdade, e que foi anteriormente discutida, é a motivação pela cobiça daqueles que buscam o mal e que não ficam satisfeitos mesmo quando atingem uma existência com algum valor. Perante esta perspectiva, a escolha de uma pessoa pela existência de valor afecta as restantes de forma que também estas vivem num mundo com valor, sejam quais forem as suas opções. Contudo, talvez estejamos a ir longe de mais. Talvez cada um de nós tenha que escolher que exista valor, se tal é possível, para o outro. Se alguém optar pela não existência de valor isso não destrói ou enfraquece a nossa relação com o valor – nós que optámos pela sua existência.
Está claro que é melhor seguir a pista de ou procurar valores do que regularmos a nossa conduta, quer queiramos ou não, através de valores correctos com consequências punitivas; a primeira ligação com o valor é mais consistente em termos orgânicos e por isso mais valorável do que a segunda, a qual tem menor qualidade valorável. Pode, no entanto, alguém que opta pela existência de valor impor de forma legitima um castigo, no sentido de estabelecer a relação com o valor, sobre alguém que não faz a mesma escolha? A escolha da existência de valor também implica, se essa for a natureza do valor, que se veja esta relação punitiva como valorável.
Na secção anterior sobre a estruturação de Kant, considerámos se a separação entre facto e valor poderia de algum modo ser eliminada como resultado do acto de estruturação ou síntese que o eu faz de si mesmo, e verificámos que isso não envolveria a totalidade da característica moral essencial — sendo essa entidade uma que busca valor. As nossas presentes reflexões poderiam ser incluídas nesse assunto. Se o acto de estruturação de si enquanto uma entidade que procura valor envolve, como um componente da auto-síntese, a escolha reflexiva pela existência de valor, então de facto o valor poderia surgir da estruturação de Kant. (Este modo de estruturação não está sujeito à objecção feita à anterior — de que diminui o significado da força moral — uma vez que esta estruturação não faz com que o valor de outra pessoa esteja dependente ou resulte de si mesma, excepto a ponto de envolver o desejo de si mesmo em seguir e procurar valor.) Tal estruturação poderia não constituir parte de um argumento que pudesse convencer alguém (ele compromete-se a acreditar) que existe valor, no entanto, uma vez que isso depende da sua busca, da sua saga na procura de valor, enquanto ingrediente essencial de si assim estruturado, mais do que do seu abandono da busca. É preciso notar que o nosso desejo em oferecer uma prova filosófica de uma teoria ética, um argumento irrevogável que forçasse alguém a acreditar nessa conclusão, queira essa pessoa acreditar ou não, choca com o desejo de autonomia em ética.
O ponto de vista que apresentámos concede-nos autonomia: a escolha da existência do valor é pautada por padrões de valor pré-existentes. Ao mesmo tempo proporciona um padrão externo a seguir ou a adoptar: o carácter e perfil do valor, assim escolhido, não está sujeito a escolha de modo semelhante. Para os sociologistas a liberdade de escolha no seio das religiões é um factor plausível para a secularização — uma pessoa não vê a sua opção religiosa como compulsiva, assim o seu próprio acto de escolha é incompatível com religiões que determinam que se esteja obrigado à sua essência. A escolha que aqui analisamos não se enquadra dentro dos valores, mas entre a existência ou não de valor. Tal opção pela existência de valor, que é vista como correcta após ter sido feita, não é, penso eu, incompatível com o sentir da necessidade de valor para se apresentar uma pretensão externa. Apesar de tudo a autonomia é preservada pelo facto de existir esta opção pela existência de valor.
Por que pertence a autonomia ao valor? (Se é do valor, então só pode ser conseguida através de uma escolha que envolva valor.) De acordo com a ideia de que o valor é uma unidade orgânica, podemos verificar que o acto de aceitar o valor de forma autónoma, optando pela existência de valor, determina uma ligação mais forte entre a pessoa e o valor, e dessa forma uma ligação mais valorável, do que uma relação sem autonomia. (Todavia algo sobre o valor, a sua existência ou natureza, tem que ser externo se quisermos obter valor ao estabelecermos uma relação com ele; além disso, a ligação com um factor externo possibilita a unificação de uma grande diversidade e por isso é mais valorável.) Pode aquele que escolhe a existência de valor imaginar-se desse modo a poder dar origem ao valor?
Esta introdução da escolha da existência do valor também fornece uma corrente interna no âmbito da teoria do valor, a partir da qual o valor terá uma relação (talvez sinuosa) com as motivações da pessoa. A grande preocupação acerca dos pontos de vista morais que tomam a intuição como postulado num universo de factos morais pré-existentes completamente independentes — que poderíamos ser aborrecidos por estes factos ou tornarmo-nos indiferentes a eles — é evitada deste modo. Há uma percepção geralmente aceite de que a ética é de certo modo mais subjectiva do que outros factos, tendo não só a ver com as nossas escolhas e reacções, mas estando ligada a elas de forma muito estreita. Tal ligação é a que une a existência de valor com a escolha (reflexiva) de que ele exista. (Poderia existir uma teoria epistemológica que faz uso da escolha de modo semelhante, “deixemos que haja factos”?) Embora o carácter do valor assim escolhido não dependa de nós, há espaço para a criatividade moral (tal qual foi discutida na secção sobre pluralismo) quando tomamos em consideração e avaliamos diferentes valores, quando formamos uma existência que inclui uma nova e original unidade orgânica constituída por uma diversidade de valores. Além disso, se as condições não se concentrarem numa dimensão única do valor intrínseco, mas deixar várias possibilidade de fora, então haverá lugar para uma escolha de entre (os diversos pesos ou avaliações) das poucas dimensões possíveis e viáveis.[X]
De que modo, então, pode descrever-se a relação entre facto e valor? Factos específicos F não implicam valor ou estados de valor V. É necessária uma premissa adicional, nomeadamente: a de que existe valor. Esta é a premissa adicional mais fraca possível (com alguma qualidade moral) de valor. No entanto serve o nosso objectivo, atendendo ao resto do aparato crítico deste capítulo, quando pretendemos estabelecer o modo como um valor específico pode resultar de factos específicos. Esta premissa simples é a demanda (quantificada de modo existencial) de que haja algum valor verdadeiro ou estado de valor. (Se a premissa de que existem alguns juízos de valor verdadeiros fosse valorável, então, pelo menos, existiria um além dela.) Isto está a uma grande distância de fazer passar valores específicos clandestinamente para a derivação.
Deveríamos esperar uma relação mais próxima do que esta entre facto e valor? De acordo com a ideia de que o valor é uma unidade orgânica, os factos podem ser valoráveis tornando presente e realizando a estrutura ou configuração da unidade orgânica que é o valor; podem ser modelos do valor. Porém, a nossa questão aqui é sobre a ligação entre, por exemplo, a ideia de que “o facto F tem um grau de unidade orgânica d”e a ideia de que “F tem valor V”. Podemos concluir que a unidade orgânica constitui valor apenas na suposição de que existe valor; e esta suposição é suficiente. Se as condições necessárias ao valor intrínseco especificam a dimensão do “grau de unidade orgânica” enquanto um candidato singular à existência de valor, então ao acrescentarmos uma asserção adicional de que existe (uma dimensão de) valor estamos a criar condições suficientes para a presença de valor na unidade orgânica. De que modo esta premissa adicional, a asserção de que existe valor, está relacionada com os factos? A nossa teoria advoga que a pessoa imputa de modo reflexivo essa asserção aos factos. (Não seria melhor que os factos imputassem a existência de valor a si mesmos, em vez de ser a pessoa a fazê-lo? Todavia não é essa pessoa, e esse seu acto, parte dos factos?)
Atendendo à escolha da existência de valor, evidenciada no plano de fundo da premissa que o valor existe, de que modo se relaciona o valor com o facto? Serão, então, alguns factos, os que possuem unidade orgânica, idênticos ao(s) valor(es)? Devo dizer: a relação reside na unidade orgânica — os valores estão ligados de modo orgânico a (alguns) factos. (Que mais poderíamos esperar?) A escolha da existência de valor comporta (alguns) factos na relação orgânica com o valor, sendo que eles são unificados mas não identificados.
Quão impermeável poderá ser esta relação de unificação orgânica? Poderíamos continuar a especular. A identidade é um modo específico de unidade muito forte, e talvez a razão pela qual os factos não são idênticos ao valor (mesmo dando forma à existência de valor) seja a de que estes factos, aqueles com os quais lidamos, não são eles próprios suficientemente unificados de forma orgânica para que possam ser considerados idênticos ao valor. Partamos do princípio de que F é um facto, um facto valorável, com um grau de unidade orgânica d. Talvez a (unidade orgânica da) relação deste facto F com o valor não possa ela própria constituir um grau mais firme do que d. O grau de unidade orgânica do facto impõe um limite ao modo como pode estabelecer uma relação estreita com o valor. (Uma vez que coisas que têm valor de facto realizam e tornam presentes as estruturas abstractas que são os valores, segue-se que estas relações não são as mais estreitas possíveis.) O valor da relação de um facto específico com um valor depende, então, da capacidade valorável desse facto. A relação exacta de factos organicamente unificados (ou situações factuais) com o valor depende do quão unificados são os factos. No limite, idêntico ao valor está tudo o que for unificado num grau o mais elevado possível — supondo que a identidade é o factor mais forte nessa relação, de modo a que a unidade orgânica pudesse assentar nela para conseguir valor.
Terá havido algum problema na relação entre factos e valores porque os nossos factos ainda não foram suficientemente unificados a nível orgânico, não ocorreu uma unificação suficientemente forte a partir de uma diversidade consideravelmente vasta? Caso seja verdade, não é surpreendente que alguns autores (por exemplo, os teóricos do “ajustamento” moral), em vez de se referirem a identidade, caíram na tentação de usar terminologia imprecisa sobre unidade orgânica para descrever a relação entre facto e valor, com raiz no mundo das artes ou da psicologia de gestalt.
Na nossa discussão anterior sobre o valor que o eu tem em si, insistimos que o eu não intenta tão somente ter algo que é valorável (um corpo ou mente valoráveis, ou seja o que for), mas deseja ele próprio ser valorável. E indagámos se isto seria necessário, uma vez que mesmo quando a consciência de si mesmo é ela própria valorável, não será ainda o valor algo que a consciência de si mesmo possui — uma outra possessão? Parecia que mais nada satisfaria a consciência de si mesmo do que o valor, ser idêntico ao valor, não apenas possui-lo ou concretizá-lo.
Porém, as consciências de nós mesmos, finitas e limitadas, não são suficientemente unificadas de modo orgânico para que possam ser idênticas ao valor, podem apenas instanciar ou ter valor. No entanto, as perspectivas teológicas que referem a maior unidade orgânica possível (Deus, o Ein Sof sem limites, Satchitananda), vêem-na como sendo idêntica ao valor. Encontramo-nos agora numa posição que nos permite perceber esta ideia. O seu grau de unidade orgânica é tão grande (infinito — existem aqui normas de infinidade?) que a relação com o valor é idêntica. É valor. Podemos entender também por que o místico apresenta as sua experiência com esta grande unidade orgânica não apenas como uma experiência valorável mas como uma experiência do (que é) valor.
Mesmo assim, podemos indagar se o místico, mesmo que a sua experiência seja uma experiência de algo, de facto teve a experiência da grande unidade orgânica possível. Talvez seja apenas uma unidade orgânica parcial, tão além do que geralmente encontramos como parecendo um todo, porém ainda apenas uma parte, competindo com outras partes iguais ou mesmo superiores. Talvez não exista qualquer unidade orgânica perfeita, sendo que até mesmo num nível mais alto ( se tal existir) há um esforço para atingir uma ainda maior unidade orgânica, para conter uma ainda maior diversidade, um valor ainda mais elevado. O que sabemos nós de facto acerca disso? Teorias alternativas, que postulam níveis abaixo ou acima de níveis reversíveis, são compatíveis com experiências e revelações místicas.
Todavia, de acordo com a ideia da teoria do valor não parece ser importante que exista uma unidade orgânica mais perfeita, ou que os místicos tenham experiências com a existência de algo que, a um nível invisível, seja o modo como a conhecem (mais do que ter a experiência do que é parcialmente uma expressão a sua própria aspiração, ou da aspiração desse algo.) Sendo que, seja qual for o caso, sabemos o que o valor é, e podemos transformarmo-nos com base nesse conhecimento, mesmo quando nada ainda é idêntico ao valor.
Qual seria o resultado de uma interacção num terceiro estádio? Poderá O(X;F;V) igualar o Ein Sof ilimitado e místico, U, enquanto que uma interacção adicional não trará nada de novo, sendo que O(X;F;V;U)=U? E se fizer sentido que O possa ser auto-reflexivo e aplicável, o que traz O?
Os comentadores da primeira formulação de Kant sobre o imperativo categórico, que “incidem sobretudo na máxima através da qual podemos ao mesmo tempo desejar que ele se torne uma lei universal”, não explicam o significado da expressão “através do qual podemos ao mesmo tempo”. Poderíamos interpretar Kant como querendo dizer que um princípio moral fundamental deve produzir um exemplo de si mesmo, que se deve pressupor?
Não devemos menosprezar formulações imperfeitas presentes nas posições filosóficas, até mesmo aquela mais rudimentar sobre Kant e os óculos de sol. Estes pontos de vista aparecem no pensamento criativo dos seus autores não totalmente elaboradas, mas como ideias intuitivas que parecem promissoras e oferecer algum tipo de discernimento. A elaboração de pormenores e ressalvas serve para mostrar que (ou provar se) a ideia intuitiva pode levar a cabo a tarefa para a qual foi criada. Porém o apelo da posição resultante como grande parte da sua influência posterior na filosofia, bem como grande parte da sua influência cultural em áreas fora da filosofia, dever-se-ão a essas ideias intuitivas mais simples — o ponto fulcral dessa perspectiva. Uma perspectiva esclarecedora e superficial da história da filosofia poderia ser escrita (ou ensinada), apresentando as questões filosóficas com que um filósofo se depara e as ideias intuitivas, à medida que lhe ocorrem, e que ele aceitou esclarecer de forma a evitar estas questões. De preferência, tal história — opondo-se à raiz do pensamento histórico actual — iluminaria as profundezas subjacentes à aparência de tais elaborações.
Não pretendo diminuir a importância da criação ou do conhecimento de tais elaborações. Só desse modo podemos pensar que uma ideia pode ter uma função específica. (E que, também, por detrás de muitas elaborações há um conjunto de ideias intuitivas que é necessário ter em conta.) Cada parte é importante — ideia intuitiva e desenvolvimento elaborado — mas cada uma não é mais do que apenas uma parte.
A premissa de valor não precisa de estar relacionada especificamente com os indivíduos; por exemplo, poderia constituir o comando que perspectiva e estrutura o mundo de forma a conseguir maior valor. Uma vez que a relação mente-corpo teria mais valor do que apenas corpos que encetam comportamentos, atribuiríamos mentes a corpos receptivos; contudo isto não conduziria ao panpsiquismo, uma vez que ao atribuir capacidades mentais e sentimentos a objectos que ostensivamente não possuem estas características não resultaria numa “psicologia” directamente relacionada com o seu comportamento. Consultar The Claim of Reason (Oxford University Press, 1979), Part IV, de Stanley Cavell para obter uma outra perspectiva sobre como o problema de outras mentes e a ética podem estar intimamente relacionados.
A classificação do mundo de acordo com o princípio da unidade orgânica pode estar relacionada com o valor de duas formas: valor é um dos estádios da unidade orgânica, e classificamo-la de modo a maximizar o valor; classificamos para maximizar a unidade orgânica e sendo isto, o telos da nossa actividade, é especificado como valorável. Tal perspectiva poderia ainda afirmar que o objectivo da razão teórica é tal classificação unificadora, encontrando, entre outros, ligações e elos dedutivos, enquanto que a razão prática procura agir de acordo com razões, e ter motivos que liguem os seus comportamentos a factos; assim a unidade orgânica é aquela à qual a razão (seja de que tipo for) aspira, através do seu telos. (Comparar com Kant em Crítica da faculdade de Julgar.)
Parece plausível pensar que ao classificarmos o mundo, e delineando-o de modo a maximizar a sua unidade orgânica, isso demarca entidades ao longo do tempo de acordo com o esquema continuador mais próximo; e que este esquema permite uma diversidade mais vasta a ser firmemente unificada de forma racional.
Eutífron acredita em muitos deuses, e Sócrates leva-o a reconsiderar a sua perspectiva sobre “o que é aprovado por todos os deuses”. Os agnósticos que mantêm que o mundo foi criado por uma outra divindade diferente de um deus pertencente a um universo mais circundante, se desejassem apresentar uma base teológica para a ética, teriam que decidir qual a aprovação divina usada para estabelecer o padrão ético.
A listagem das cinco possibilidades sobre o modo como nos relacionamos com o valor, bem como as respostas subsequentes ao declínio do realismo, rejeita um caminho de influência intelectual frequentemente tomado: a idealização de uma classificação segundo três tipos de carácter, através dos quais as pessoas podiam indagar sobre a qual das classificações eles ou os seus companheiros podiam pertencer, de acordo com a qual os seus amigos se podiam categorizar, de acordo com a qual podiam perceber as diferentes interacções sociais, e jogar jogos de salão. Deste modo temos a classificação Freudiana do oral, anal e genital; a de Sheldon que apresenta as categorias de mesomórfico, endomórfico e ectomórfico; aquela que é direccionada para o próprio, a direccionada para o outro e a autónoma de Riesman, Glazer e Denny, a A Consciência I,II, e III do Reich. As classificações em dicotomias (como introvertido, extrovertido) têm menor interesse, enquanto que as quadráticas são aparentemente muito complicadas para que as pessoas se lembrem delas, é por isso que não existe nenhuma sagrada Quadriologia.
Faço isto, embora os meus instintos metafilosóficos me digam que os impasses filosóficos, tal como aquele acerca do valor, devam ser analisados através do enunciar de novas e inesperadas perspectivas que negam alguma suposição comum a todas as perspectivas anteriores, mais do que tentar ressuscitar uma variante de uma delas. Sejam quais forem as suas virtudes, a teoria sem sucesso não beneficiaria se a conduzíssemos para mais uma derrota (desta vez ridícula). (Aqueles que de facto conhecem o passado estão condenados a repeti-lo, de forma pedante.) Quando uma posição X sucumbe a dificuldades de ordem Y, qualquer posição convenientemente considerada como “neo-X” correrá esse risco, depois de algum tempo, com a possibilidade. 942, de sucumbir a neo-Y, se não também ao velho Y.
Quando administramos a alguém uma substância inibidora de endorfinas juntamente com, ou como, um placebo essa pessoa não acusa redução de dor. Porém, esta experiência está aberta à seguinte interpretação. Os placebos poderiam funcionar como um factor X que reduz as dores, diferente das endorfinas, no sentido em que o alívio de dor de uma pessoa ao receber um placebo é o produto de X e das endorfinas que o organismo produz naturalmente. O inibidor de endorfina faz desaparecer a última situação descrita, deixando o paciente apenas com X, e desse modo com um menor alívio da dor, embora o placebo não actue através das endorfinas.
Talvez fosse útil considerar que forma a nossa discussão sobre a escolha reflexiva da existência de valor pode esclarecer a noção obscura de “verdade subjectiva” proposta por Kierkegaard. (Consultar a obra Concluding Unscientific Postscript, Princeton University Press, Princeton, 1944, Part II, cap. 2.) Contudo, ele manifesta o desejo de aplicar esse conceito à crença religiosa, à fé num Deus que tem poder de agir e produzir efeitos nas pessoas e no mundo e que o voltará a fazer. É difícil ver até que ponto o acto de alguém, até mesmo um acto reflexivo, poderia comportar esta ideia. Por outro lado, o valor é inerte; não possui qualquer poder de causalidade e pode apenas ser actuante através daqueles que têm dele uma percepção e o seguem. Assim é mais plausível entender a existência de valor como algo ligado à nossa escolha da existência de valor, do que entender a existência de um Deus cuja acção é visível ligada ao culto que fazemos de tal entidade. A perspectiva religiosa análoga à nossa sobre o valor teria que passar por uma teologia que promove a santidade do acto de adorar um ser passivo perfeito.
Nietzsche apelou a uma “reavaliação dos valores”, o que implica um conflito com valores anteriores ( o que ele chama “vivissecar o peito das próprias virtudes do seu tempo, na obra Beyond Good and Evil,212) e a criação de valores novos. Contudo, Nietzsche não reivindicou fazer a última; a tarefa de legislar sobre novos valores estaria a cabo dos futuros filósofos a quem ele chamou contramestres. Nietzsche dá-nos algumas das suas características, em observações dispersas. Seriam orgulhosos, jubilosos, decididos a triunfar sobre (excederem, aperfeiçoarem a) si mesmos, mestres de si mesmos, sólidos, vigorosos, nobres, apaixonados, poderosos, corajosos, venerando-se a si mesmos, menosprezando um tipo de vida serena, cheia de facilidades e conforto, moldando-se numa nova pessoa. A tarefa dos outros, sustenta Nietzsche, é ajudar à existência destes contramestres, criar condições que permitam a sua existência — apenas as suas vidas têm valor. ( “ o objectivo da humanidade não deve estar no fim mas apenas no valor elevado dos seus espécimes." Second Untimely Meditation,19.) Não está claro se Nietzsche acredita ou não que estes grandes indivíduos conferem valor aos restantes indivíduos, por vezes fala como se o valor transbordasse dos primeiros para os últimos (Will to Power,713,877), por vezes fala destes quase como pertencendo a uma espécie diferente ( sendo que nenhum valor se perde na tentativa da ligar os dois universos).
Qual o propósito de toda esta pujança, ousadia, e outras coisas mais, que o contramestre possui? O que fará ele com isso? Não será grande ajuda, ou muito interessante ouvir que ele tem o poder de se reinventar como algo sólido, ousado e cheio de força. Talvez Nietzsche pense que o ser que exibe estas qualidades, trabalhando no âmbito de um material inexorável e de desafios que incluem essa própria vida, possam ser valoráveis seja qual for o seu objectivo — suficientemente valorável para incluir e ter maior importância do que o acto de tirar partido, magoar ou destruir os outros. (Consultar Beyond Good and Evil, 265,259; Genealogy of Morals, I,13.) Todavia, considero que Nietzsche acredita que estes contramestres procurarão valores específicos; os valores correctos, ou em todo o caso os novos valores serão aqueles que eles procuram e seguem. Essa será a sua “determinação”. Nietzsche crê deveras nas suas qualidades as quais ele enumera de forma valorável, mais importante do que isso, na sua perspectiva, estas pessoas são uma espécie de “observadores ideais”. Os objectivos que eles escolhem seguir, seja o que for em que isso se torne, serão fixados como os que são valoráveis, pelo menos quando seguirem a sua linha de conduta). Deste modo, a perspectiva de Nietzsche é simplesmente uma provocação que não nos conduz numa direcção específica. ( A ausência de determinados valores especificados na análise de Nietzsche também foi objecto de considerações por parte de Phillipa Foot em “The Brave Immoralist”, New York Review of Books, vol.27,1 Maio, 1980,pp.35-37.)
Tanto quanto sabemos ou nos é dito, todas estas pessoas optarão por se tornarem mais delicadas, gentis e atenciosas com os outros, respeitadoras dos seus direitos, menos orgulhosas, e assim por diante. Nietzsche dá-nos um processo (de atracção mista) em relação aos novos valores, sem qualquer indicação sobre o resultado disso mesmo, e por isso não há qualquer garantia que esses valores sejam de facto novos. Comparemos a posição de filósofos políticos (seguidores de Leo Strauss?) que vêem a mais elevada astúcia política representada na máxima de que o mais sábio deverá escolher — não há qualquer razão no sentido de instituir a lei dos mais sábios, se eles, em toda a sua sagacidade, restabelecem o estado em que as coisas se encontravam (eleições democráticas, separação de poderes, entre outros), e em consequência disso apresentam demissão.
Embora as condições do valor intrínseco pudessem não seleccionar uma só dimensão, e por isso deixar uma margem para a escolha, são bastante restritas, e nem toda a opinião que defende a sua originalidade com muita pompa e circunstância resultará muito diferente, quando forem suprimidas as suas características claramente inadequadas.