Acautele-se o leitor que decida abrir Facfulness, o livro onde Hans Rosling condensou a sua experiência de uma vida como médico, investigador, professor e reputado conferencista de Saúde Internacional, com a colaboração do filho Ola e da nora Anna, que se encarregaram mais especificamente da análise de dados, dos gráficos e das explicações visuais! Acautele-se, porque é real o risco de as mais de trezentas páginas despertarem sentimentos e impressões diversos, eventualmente contrários, e até mesmo, em alguns casos e pelo menos num primeiro momento, desconfortáveis.
Pela capa e contracapa, ficamos a saber que é uma obra recomendada por publicações científicas, como Nature, ou de Economia, como The Financial Times (que a selecionou para uma lista de 15 candidatos ao título de Business Book of the Year 2018); pelo ex-presidente Barack Obama; por Melinda Gates e por Bill Gates (que no seu Twitter o classificou como “um dos mais importantes livros que já li” e o ofereceu a todos os alunos universitários estadunidenses finalistas em 2018). Tamanhos e tão consonantes elogios (vítima de cancro de pâncreas, em fevereiro de 2017, portanto na reta final da sua redação, Hans não conheceu o sucesso do livro) costumam fazer-me torcer o nariz… e este caso seguiu a regra; contudo, a progressão da leitura fez-me perceber os motivos das recomendações. Estou convencido de que o leitor que, como eu, fica por princípio de pé atrás em relação a bestsellers concluirá que valeu bem a pena o tempo despendido na leitura do livro da família Rosling, por razões múltiplas, algumas das quais poderá encontrar neste texto.
Tive a segunda sensação (de desconforto) logo nas primeiras páginas, na Introdução: um teste (um teste-choque, foi como o senti) com treze perguntas, a lembrar o teste diagnóstico dos alunos das escolas, veja-se só!, fez-me consciencializar quão ignorante sou e quão fraco é o meu “conhecimento acerca do mundo”. Reconheçamos que um teste diagnóstico com nota bem negativa não é propriamente o começo mais animador.
Três considerações suavizaram o choque. Primeiro, associei este autêntico quebra-cabeças ao método socrático, àquela conhecida técnica que o filósofo ateniense usava para levar o interlocutor a reconhecer a própria ignorância, como primeiro passo para a busca da verdade. Consolou-me a ideia de que o princípio da verdadeira sabedoria está em reconhecer a própria ignorância.
As outras duas considerações, oferece-as Rosling, para nos “reconfortar”. Por um lado, a promessa de que, com as ferramentas apresentadas nas páginas restantes, o desempenho melhorará significativamente e mudará completamente a nossa forma de pensar para sempre. Por outro — mal comum, mal menor! —, perguntada sobre temas como a percentagem da população mundial que vive na pobreza extrema ou a percentagem de crianças hoje vacinadas ou a percentagem de mulheres que concluiu a escolaridade, no formato daqueles concursos televisivos muito em moda onde são dadas três hipóteses para escolher a correta, “a maioria das pessoas sai-se extremamente mal” (p. 16) e o resumo pode fazer-se em duas palavras: “ignorância maciça” (p. 18).
Responderam ao teste-inquérito 12.000 pessoas de 14 países e milhares de assistentes de diversas conferências, sempre com resultados consistentemente desastrosos; apenas uns escassos 10% obtiveram classificação superior às que teriam chimpanzés que escolhessem respostas ao acaso (uma das várias notas bem-humoradas!), só uma pessoa teve onze respostas corretas e ninguém acertou todas as doze primeiras. As escolhas apontam todas numa direção: o mundo está cada vez pior, mais violento, os ricos cada vez mais ricos e os pobres, mais pobres… Pior é que grupos constituídos por estudantes universitários, cientistas famosos, políticos que tomam decisões que afetam a nossa vida, prémios Nobel, jornalistas, ativistas e investigadores médicos não conseguiram melhores resultados que o público em geral. Acautele-se, pois, o leitor!
O passo seguinte é a procura da causa de ignorância tão generalizada e sistemática. Tudo indica que não é a estupidez ou a má intenção que estão em jogo. Também não são unicamente (nem talvez sobretudo) os “conhecimentos” obsoletos, desatualizados: mesmo na posse de informação mais recente, não desaparece a tendência para representações falsas. Há outro fator explicativo: a má interpretação dos dados, sob influência de uma stressante e enganosa conceção do mundo, excessivamente dramática, reproduzida e fomentada pelos meios de comunicação, que privilegiam o negativo e o dramatizado. Uma visão errada do mundo produz inferências sistematicamente erradas, levando-nos a acreditar que a situação atual é bem pior do que na realidade é, em quase todos os domínios. Todavia, a explicação última e mais profunda tem que ver com a “forma como o nosso cérebro funciona” (p. 23): frequentemente tiramos conclusões rápidas, sem pensarmos muito, sob efeito de instintos que foram úteis, mesmo indispensáveis, à sobrevivência dos nossos antepassados, mas que hoje nos cegam o olhar.
Pelas breves citações anteriores, adivinha-se que o nosso percurso ainda não avançou para lá das primeiras páginas de Factfulness; assim é, de facto, mas a demora está justificada: na introdução apresenta-se o itinerário do que se segue, e apresenta-se de um modo motivador. O conteúdo grosso do livro são onze capítulos (mais introdução, notas, extensas fontes bibliográficas e webgráficas, índice remissivo…); dez são dedicados à análise de outros tantos instintos, um por capítulo (os tais instintos que nos enevoam o olhar e nos levam a pensar de forma catastrófica) e à contraposição de formas de ultrapassar os estragos que nos podem provocar. Instintos como o de medo (capítulo 4) ou de destino (capítulo 7) ou de urgência (capítulo 10) foram essenciais para a preservação da espécie humana (e continuam a ser, em sociedades de pobreza extrema), “ajudaram outrora os nossos antepassados a sobreviver” (p. 115); no entanto, em sociedades contemporâneas onde rendimentos mais elevados proporcionam melhoradas condições de vida e de defesa e eliminam a maioria dos perigos, eles podem facilmente tramar-nos a vida, a pessoal e a profissional, ou os negócios das empresas. São a causa de “conceções megaerradas” do mundo, impedimentos para pensar e ver com clareza, origem de stresse desnecessário e de más decisões. “O pensamento crítico é sempre difícil, mas é quase impossível quando estamos assustados” (p. 113).
Aqui chegado, atenuou-se uma outra sensação, que não se pode dizer positiva e me invadira desde o título e se agudizara entretanto: a de estar perante mais um dos muitos livros de autoajuda que inundam os escaparates e as estantes das livrarias. O termo factfulness sugere um empréstimo de mindfulness; não é que eu tenha a ponta do que quer que seja contra mindfulness ou autoajuda, mas não me inspira grande confiança a confiança, que reputo exagerada, em torno dos dois conceitos e das práticas que nos propõem como cura mágica para as nossas infinitas maleitas.
Não houvesse outras fronteiras para separar estes campos da ideia de factfulness e esta bastaria: o que Rosling propõe persegue, sem dúvida, objetivos como a paz mental, é certamente uma terapia com efeito reconfortante, uma pílula da felicidade (p. 61), mas uma pílula de tipo novo, uma terapia dos dados. A sua proposta central é que o foco da atenção se desvie, das nossas sensações ou experiências ou emoções, para os factos: que ver o mundo como realmente é seja a bandeira do combate contra a devastadora ignorância global.
Teremos chegado ao motivo essencial por que esta é uma obra recomendada e recomendável, o seu mérito principal — e ao benefício intelectual, enorme, que nos pode oferecer. As referências de cada página de Factfulness são dados económicos e sociais da história da humanidade produzidos por grandes organismos internacionais, de acesso universal, e cientificamente tratados, com referências a webs especializadas — tudo explicita e objetivamente referido no livro e, com mais amplitude, no sítio da fundação Gapminder, um “fact tank” criado pelos coautores. Tratamento guiado pelo princípio de olhar “para os números, mas não apenas para os números”: “[o] mundo não pode ser compreendido sem números”, mas “não pode ser compreendido só com números” (p. 200), os números “têm os seus limites” e as hipóteses surgem “frequentemente por conversar, ouvir e observar pessoas” (p. 199). O convite recorrente dos autores é que seja este o método de análise do mundo em que vivemos e de projeção deste no futuro, seja pelo puro prazer de uma visão correta seja para efeitos práticos como a implementação de negócios.
Não nos engane, pois, o estilo! Factfulness tem ares de autobiografia, tem: Hans Rosling evoca, amiúde, experiências e situações por que passou, ao longo da sua atividade profissional nos mais diversos países de vários continentes: para ilustrar um instinto, o definir, identificar formas de ele se manifestar e situações em que ele se manifesta; para denunciar as consequências nocivas na nossa visão (errada) do mundo e no modo de agirmos, com o mundo e com os outros… O texto é leve, escrito numa linguagem e estilo de fácil compreensão (incluindo os inúmeros gráficos e tabelas que servem de excelentes ilustrações), também por leigos e não apenas por especialistas. E, no entanto, nenhuma destas características sacrifica, ou belisca minimamente, o rigor das análises ou das conclusões nem desfoca a sua finalidade última: levar-nos a ser humildes e curiosos, a “aprender como o mundo realmente é” (p. 260).
Mais do que fornecer montanhas de dados e estatísticas, o objetivo último dos autores é proporcionar algumas ferramentas práticas para pensar de modo simples e correto, melhorando a nossa visão global do mundo. Não se requerem conhecimentos especializados em Lógica para aceitar que o nosso raciocínio facilmente é deformado por esquemas mentais como o instinto de fosso (capítulo 1): crescemos a desenvolver, com os filmes de índios e cobois, a preto branco sem policromia, ou com os bons e os maus das telenovelas, o pensamento binário e a dividir maniqueistamente as pessoas em más e boas — e o mundo, em países desenvolvidos e em vias de desenvolvimento, uma classificação que já não é útil; ou o instinto de negatividade (capítulo 2), que insta a que sintamos em vez de pensar, a uma recordação equivocada do passado, a notar mais o mau que o bom, a não distinguir mau de melhor e, por essa via, à megaconceção errada de que o mundo está cada vez pior; ou o instinto de generalização (capítulo 6) precipitada, com conclusões baseadas em poucos exemplos, ou mesmo num único.
Cada capítulo conclui com algumas regras empíricas da factualidade, para utilização na vida quotidiana. É muito provável que, mudando a nossa visão do mundo, as lições de Factfulness tenham o efeito não secundário de melhorar em conforto o modo de nos orientarmos na vida. Subtraindo-nos stresse e desesperança ao dia-a-dia. Focando-nos a energia em atividades construtivas, com menos “intuições sem substância”, conscientes de que “as boas notícias não são notícias” e de que “o mundo parece mais assustador do que é”. Colocando-nos de sobreaviso em relação aos relatos seletivos dos jornalistas ou aos clamores exagerados de ativistas e lobistas, num mundo onde as fake news assumem importância crescente. Desenvolvendo o pensamento crítico e a desconfiança de ideias simples e de soluções simples, como vacina contra os populismos, contra o instinto de perspetiva única. Prevendo os riscos com que devemos preocupar-nos: que “um novo tipo malévolo de gripe seja a ameaça mais perigosa para a saúde global” e a necessidade de uma OMS “saudável e forte para coordenar uma resposta global” (p. 243) são avisos de Hans, anteriores à sua comprovação pela Covid19… Preocupando-nos, sim, mas com as coisas certas.
“Quando possuímos uma visão do mundo baseada em factos, vemos que o mundo não é tau mau como parece — e conseguimos ver o que temos de fazer para continuarmos a torná-lo melhor” (p. 260). É a perceção negativa da evolução do mundo que pode levar ao desânimo: a impossibilidade de combater situações como a pobreza ou a escassa vacinação justificaria a passividade; ao contrário, nem pessimista nem otimista, Hans defende o “possibilismo”: “Eu sou um ‘possibilista’ muito sério”, “alguém que nem espera sem razão, nem receia sem razão, alguém que resiste constantemente à visão do mundo excessivamente dramática. Como possibilista, vejo todo este progresso e ele enche-me de convicção e de esperança de que um futuro progresso seja possível” (p. 78-79).
O livro abre com uma dedicatória enigmática: “para a corajosa mulher descalça, de quem desconheço o nome, mas cujos argumentos racionais evitaram que eu fosse cortado às postas por um bando de homens zangados de catana na mão”. O enigma desfaz-se, quase duzentas e cinquenta páginas depois, no capítulo décimo primeiro. O capítulo é simultaneamente uma síntese das lições na,teriores e a sua conclusão, com caráter prático, como o título A Factualidade na prática anuncia; abre com a história dessa mulher descalça, uma história que é ao mesmo tempo mais uma exemplificação da ideia de que a fidelidade aos factos, para além das vantagens já enunciadas, pode salvar vidas, como salvou a do autor.
Segundo a respetiva ficha de catalogação da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), Factfulness é um livro de Economia (subclasse 33 da Classificação Decimal Universal), arrumação conforme à das livrarias onde o encontrei; de Sociologia (subclasse 316 da CDU); de Saúde Pública / Políticas de Saúde (subclasses 613 e 614)… Palpita-me que estas opções têm em conta o conteúdo mais constitutivo do livro; contudo, se nos concentrarmos nas suas ideias estruturantes, nos seus objetivos principais, surge uma outra classificação, também adotada na referida ficha da BNP: 001, a subclasse da ciência e conhecimento em geral, da organização do trabalho intelectual, da metodologia da investigação, sintetizaria eu. Seguindo este último caminho, revela-se-nos um interesse mais abrangente, para além das anteriores áreas especializadas, e aponta-se para novos interesses intelectuais e, consequentemente, para um público ainda mais vasto: como já sugeri, numa era baralhada por fake news, pós-verdades, parangonas catastrofistas, negacionismos, inteligências emocionais, instantâneas representações ideologicamente fundadas — face a isso e a outras variações, Rosling afirma a urgência do espírito crítico (crítico das autoridades indignas desse título; dos hábitos e crenças enraizados; do circo mediático de demagogos políticos, associativos ou comentadores), do conhecimento, da verdade, da humildade intelectual; e facilita-nos instrumentos para conseguirmos pensar com lógica, rigor e clareza, numa palavra, factualmente (tal como é entendido em Factfulness).
Assim, Factfulness abrange um leque de leitores significativamente mais amplo do que se concluiria a partir de uma catalogação genérica. Retomando o significado da oferta de Bill Gates, com que abrimos este texto, é agora caso para perguntar: estaremos perante uma obra digna (obrigatória) de ser lida em todas as escolas secundárias, ou universitárias, por razões académicas, profissionais e pessoais? De que é aconselhável ao maior número de pessoas, a quem quer que tenha vontade de uma vida intelectualmente séria, pessoal e coletivamente digna — disso penso que não há dúvida. Em síntese, uma obra de utilidade pública.