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Crítica
25 de Julho de 2010   Ética

A quem fazer o bem?

Faustino Vaz

Quem não pode fazer, não pode ser obrigado a fazer. Por isso, não pode ser obrigado a ajudar toda e qualquer pessoa desfavorecida. Todavia, é obrigado a ajudar algumas. Quais é obrigado a ajudar? A resposta razoável não é que a moralidade deve deixar isso ao seu critério? (Brad Hooker)

Beauchamp e Childress afirmam que o princípio da beneficência apoia um conjunto de obrigações morais. Uma delas, a segunda de uma lista, é a de “impedir que os outros sofram dano” (2009: 199). A justificação adequada para estas obrigações de beneficência baseia-se naquilo a que se poderia chamar “modelo da reciprocidade”. A esse respeito, escrevem:

Várias justificações podem ser propostas para as obrigações gerais e específicas de beneficência. Uma delas, particularmente adequada à ética biomédica, é a que se baseia em considerações de reciprocidade. (Beauchamp e Childress, 2009: 205)

Pouco depois, a ideia é desenvolvida desta forma:

A reciprocidade é uma característica predominante da vida social, ainda que não tão predominante que possamos reduzir toda a vida moral a obrigações de reciprocidade. Todavia, muitas obrigações de beneficência para com a sociedade (enquanto distintas daquelas que se dirigem a indivíduos identificados) derivam tipicamente de alguma forma de reciprocidade. (Beauchamp e Childress, 2009: 205)

Quanto às obrigações de beneficência para com indivíduos identificados, Beauchamp e Childress dizem:

Obrigações de beneficência específica, por contraste, derivam tipicamente de relações morais especiais entre pessoas, frequentemente através de papéis institucionais e de acordos contratuais. (Beauchamp e Childress, 2009: 206)

Estas relações morais especiais incluem a relação médico-paciente:

Quando um paciente contrata os serviços de um médico, este assume uma obrigação específica de tratamento beneficente, que não estaria presente sem essa relação. (Beauchamp e Childress, 2009: 206)

Neste ensaio será defendida uma justificação diferente para as obrigações de beneficência geral e específica. Sem essa justificação alternativa, a regra de “impedir que os outros sofram dano” deixa de ter um apoio sólido. Uma justificação baseada em relações de reciprocidade, como se verá, não permite inferir a regra de beneficência referida.

Num primeiro momento, serão expostas as dificuldades que o modelo da reciprocidade enfrenta perante casos de beneficência que envolvem relações especiais. Daí resultará que as obrigações específicas de impedir o dano requerem uma justificação baseada no que se poderia chamar “modelo da vulnerabilidade”. O segundo momento terá uma estrutura semelhante ao primeiro. A única diferença relevante é que o palco não será ocupado por relações especiais — serão antes discutidos casos de beneficência geral. Como no primeiro momento, pretende-se mostrar que o modelo da vulnerabilidade apoia de maneira mais segura as obrigações gerais de impedir o dano. Num terceiro momento, serão extraídas as implicações centrais do modelo da vulnerabilidade. Entre elas, a que respeita à natureza do princípio da protecção dos vulneráveis, princípio obviamente importante quando se trata de impedir que os outros sofram dano. A estrutura geral deste ensaio define-se pelo debate entre o modelo da reciprocidade e o modelo da vulnerabilidade. É nesse debate que reside a sua dramatis personae.

Obrigações específicas de beneficência: reciprocidade ou vulnerabilidade?

Uma relação de reciprocidade é geralmente entendida como uma relação especial. Dizer que as obrigações específicas de beneficência se apoiam em relações de reciprocidade equivale a dizer que dependem de relações especiais. Contratos, promessas e papéis institucionais são exemplos destas relações. A reciprocidade que determinam consiste em dar e receber: um médico, por exemplo, daria ao paciente alguma coisa que ele receberia; e este daria igualmente ao médico alguma coisa que ele receberia. Outro aspecto relevante da reciprocidade é que se escolhe dar e receber. Deste modo, o compromisso que duas pessoas assumem resulta de uma escolha. Mas as escolhas não têm apenas um papel causal. Aceitar que as obrigações específicas de fazer o bem são justificadas por relações de reciprocidade implica também que as escolhas têm força normativa.

Mas será que as coisas se passam assim? Será que fazer o bem a indivíduos identificados se justifica a partir de relações de reciprocidade? É duvidoso que assim seja. Não são poucos os casos que permitem desenvolver uma justificação diferente. Alguns desses casos e a argumentação que sustentam serão agora sujeitos a debate.1

Há casos de beneficência específica que são contra-exemplos bastante evidentes ao modelo da reciprocidade. Um deles é este: quando alguém fica seriamente ferido e a única pessoa que pode prestar assistência é um desconhecido que por acaso se encontra no local do acidente, a obrigação de chamar uma ambulância, ou a legitimidade da pessoa ferida em solicitá-la, não dependem de qualquer consentimento da parte do desconhecido. Se não dependem, como parece claro, a obrigação de chamar a ambulância não pode apoiar-se numa relação de reciprocidade. Neste caso, não há sequer lugar para a escolha de qualquer tipo de relação. Fazer o bem é assim um dever justificado pela vulnerabilidade da pessoa ferida.

Outro contra-exemplo ocorre em situações de negociação. Há casos em que a capacidade negocial das partes é muito desigual. É o que acontece quando uma das partes depende da outra para o seu sustento e a outra apenas quer da parte vulnerável um luxo ou uma simples extravagância. Ainda que a parte forte tenha alguma vantagem na relação de reciprocidade, o seu poder é grande. Todavia, a sua obrigação perante a parte vulnerável não é, obviamente, retirar todos os ganhos possíveis dessa relação de reciprocidade. Fazer o bem consiste antes em proteger a outra parte da sua vulnerabilidade. Caso a força normativa desse dever se apoiasse numa relação de reciprocidade previamente escolhida, seria permissível a exploração daquele que tem menos capacidade negocial. Mas isto não é plausível. Logo, é a vulnerabilidade de uma das partes que determina o bem que deve ser atendido.

Um caso semelhante sucede quando um desastre natural isola uma comunidade e a deixa dependente de um único supermercado. Não parece plausível que o comerciante retire todos os ganhos possíveis através de uma estratégia de especulação. Mas esse juízo não pode ser justificado por considerações de reciprocidade. Apenas considerações de vulnerabilidade determinam que o comerciante proteja a comunidade dessa especulação. Perante contra-exemplos deste tipo, uma defesa do modelo da reciprocidade consiste em restringir a sua aplicação a casos em que as partes têm uma capacidade negocial idêntica. Os casos apresentados deixariam assim de ser incómodos. Todavia, uma restrição dessas condenaria à irrelevância o modelo em questão. As mais fortes obrigações específicas de beneficência — “aquilo que mais precisa de ser explicado” — exigiriam, como de facto exigem, uma outra justificação. Esse papel normativo é assegurado pelo modelo da vulnerabilidade. Com este modelo, “a força moral dessas mesmas responsabilidades especiais pode ser prontamente explicada”.

Há também casos reais que comprovam a influência do modelo da vulnerabilidade no sistema legal. Um deles é o seguinte. O sofrimento dos doentes com cancro em fase terminal deixa-os numa grande dependência, em particular quando é agudo. O desespero pode levá-los a aceitar medicamentos duvidosos, e até a pagar por eles quantias absurdas. Aplicado a situações destas, o modelo da reciprocidade tem consequências repugnantes. Estando os doentes dispostos a renunciar a alguns dos seus direitos, entre eles o direito a medicamentos seguros e eficazes, a indústria farmacêutica não teria a responsabilidade de assegurar drogas realmente seguras e eficazes. Num caso ocorrido nos Estados Unidos, em 1979, um tribunal afirmou mesmo que a inevitabilidade da morte, seja qual for a medicação, priva estes doentes de “padrões realistas” na avaliação da segurança e eficácia das drogas. Mas o Supremo Tribunal rejeitou esta conclusão. Ainda que isso não seja claramente expresso, é a vulnerabilidade destes doentes que justifica essa rejeição — é porque “qualquer coisa pode ser feita a doentes terminais que estes merecem protecção especial”. Logo, é a vulnerabilidade destes doentes que determina certas obrigações específicas de beneficência.

Outro caso real de jurisprudência a favor do modelo da vulnerabilidade é o de uma família dependente de assistência pública. O programa de assistência implicava que a família fosse visitada e entrevistada. Mas a mãe recusou essa visita, alegando que constituía uma devassa dos seus direitos proibida pela Quarta Emenda à constituição. A decisão do tribunal, todavia, contrariou esta pretensão. O argumento principal a favor dessa decisão apoiou-se na necessidade de proteger a criança que vivia com a mãe. O ponto focal das considerações do tribunal residiu assim na vulnerabilidade da criança, e não nos direitos da mãe. A vulnerabilidade da criança suplantou os direitos da mãe, o que tem ainda mais relevância quando se sabe que os direitos são a “carta de trunfo” nas sociedades liberais. Um resultado destes seria menos provável caso fosse adoptado o modelo da reciprocidade. Uma vez que, neste modelo, o locus último do valor são as escolhas individuais, dificilmente a vulnerabilidade da criança teria a mesma relevância.

A ética da medicina parece justificar-se a partir de uma relação de reciprocidade entre médico e paciente. O médico recebe honorários e o paciente o seu serviço. Esta relação, a que ambos voluntariamente se submetem, resulta de uma escolha individual. Isto implica que, caso queiram, podem negociar as condições dessa relação de reciprocidade. Todavia, algumas destas condições, que regras de ética médica prescrevem, são independentes de uma negociação entre as partes. Esta independência de, pelo menos, parte da ética médica indica que é necessária outra justificação moral do exercício da medicina. O modelo da reciprocidade enfrenta mais problemas quando se tenta explicar a ética da medicina a partir dele. Outra das suas implicações seria que “o médico é livre de escolher quem serve”. Mas esta implicação é inconsistente com a regra que obriga o médico a “responder a qualquer pedido de assistência numa emergência”. Esta obrigação do médico não pode apoiar-se em considerações de reciprocidade, como também não podem outros constrangimentos a que está sujeito. Por exemplo, o de não ter a liberdade de se desvincular de um paciente sem que ele esteja fora de perigo, ou sem que um serviço alternativo tenha sido posto à sua disposição.

Estas limitações da liberdade do médico sugerem que há uma relação de desigualdade entre médico e paciente, relação que é intrínseca ao exercício da profissão médica. De um lado, o poder do médico; do outro, a dependência do paciente perante esse poder. Ora, é a vulnerabilidade do paciente em relação ao médico que determina certas obrigações da parte deste para o bem do paciente. Estas obrigações, como se viu, diminuem o poder do médico porque o paciente é especialmente vulnerável a esse poder. Nada disto ocorreria se os pacientes não tivessem de ser protegidos em áreas vitais dos seus interesses (Williams, 1981: 55).

Uma maneira de defender o modelo da reciprocidade consiste em mudar parcialmente os seus protagonistas. No caso da ética médica, a relação de reciprocidade não se estabeleceria agora entre médico e paciente, mas entre médico e sociedade. Escolhido o exercício da medicina, o médico estaria sujeito a um conjunto de obrigações profissionais. Dado que a sociedade atribui aos médicos certos privilégios, estas obrigações seriam “o preço exigido”. Mas este argumento não é bom: um médico não deixa de ter uma ética justificada a partir da vulnerabilidade do paciente apenas porque não se dá o caso de uma sociedade fazer essa exigência. Aqueles que precisam de assistência são necessariamente vulneráveis em relação a quem tem certas competências profissionais.

Os casos debatidos mostram que fazer o bem a indivíduos identificados não se apoia em considerações de reciprocidade. É verdadeiro que certas obrigações de beneficência são geradas por relações de reciprocidade voluntariamente assumidas. Mas gerar obrigações indica apenas um papel causal. Fica por justificar o mais importante: a natureza dessas obrigações. É esta a virtude do modelo da vulnerabilidade. Há assim boas razões para afirmar que a força normativa das obrigações específicas de beneficência deriva da vulnerabilidade dos seres humanos envolvidos.

Obrigações gerais de beneficência: reciprocidade ou vulnerabilidade?

Ao contrário das obrigações específicas, as obrigações gerais de beneficência não se dirigem a indivíduos identificados, mas a grupos, sociedades, povos, continentes, gerações e até a parcelas significativas do mundo (mundo subdesenvolvido, terceiro mundo). Por serem casos particularmente importantes da obrigação geral de impedir o dano, serão sujeitas a análise a obrigação de ajuda internacional e a obrigação de proteger as gerações futuras. Admite-se, à partida, que estas obrigações estão justificadas; mas isso não basta: subsiste o problema de saber que justificação têm. Serão de novo pesadas duas alternativas: uma justificação que recorre a considerações de reciprocidade, e que é defendida por Beauchamp e Childress; e outra que recorre a considerações de vulnerabilidade.

Uma sociedade pode ser entendida como um empreendimento cooperativo que assegura vantagens mútuas. Este tipo de cooperação ocorre também entre sociedades. Quando isso acontece de maneira intensa e duradoura, diz-se por vezes que se formou uma comunidade alargada. As sociedades envolvidas escolhem dar e receber alguma coisa em troca. É desta reciprocidade que a obrigação de ajuda internacional retiraria a sua força normativa. Se uma sociedade transfere dinheiro para outra, essa ajuda inclui-se numa relação de reciprocidade que as duas voluntariamente assumiram. E não apenas essa ajuda, mas também todas aquelas em que são transferidos outros tipos de bens, como recursos humanos, conhecimento ou formas de organização. É esta a descrição básica do modelo da reciprocidade para a obrigação de ajuda internacional.

Uma das consequências prontamente detectadas deste modelo é que ele deixa algumas sociedades muito pobres entregues a si mesmas, transformando a sua condição actual de pobreza extrema num destino irremovível. Esta consequência tem ainda a sua variação paroquial, uma vez que todas as pessoas muito pobres, de cada sociedade particular, ficariam também entregues a si mesmas. Num caso e noutro, a razão é a mesma: nem as pessoas nem as sociedades muito pobres têm qualquer vantagem para oferecer às outras. Perante esta consequência, uma defesa do modelo da reciprocidade consiste em lembrar que a indigência dessas sociedades resulta precisamente de não terem desenvolvido relações de reciprocidade com os países mais ricos. O que sucedeu foi que as sociedades muito pobres, directa ou indirectamente, forneceram meios de prosperidade a sociedades hoje mais ricas sem qualquer contrapartida razoável. Deram imenso e pouco receberam, se é que, de facto, receberam o que quer que seja de valioso.

As sociedades muito pobres não escolheram uma relação deste tipo; e, se a não escolheram, não a assumiram voluntariamente. Logo, o que ocorreu foi uma negação do modelo da reciprocidade, que é assim a origem de injustiças históricas. Segue-se que a reparação dessas injustiças exige que esse mesmo modelo seja agora aplicado. O que as sociedades muito pobres não receberam, ou não recebem, terá de ser restituído. Esta é a maneira de se estabelecer o que, à partida, deveria ter ocorrido — uma relação de genuína reciprocidade. Isto mostra que a obrigação de ajudar outras sociedades, segundo os defensores do modelo da reciprocidade, não exclui as sociedades muito pobres. Mas esta resposta não é sólida. Na verdade, a obrigação de restituir, impedindo assim o dano, não pode apoiar-se com segurança na condição contrafactual de que as sociedades muito pobres estariam hoje numa situação diferente caso não tivessem sofrido qualquer interferência. Provar que estariam é, sem dúvida, uma tarefa particularmente difícil. Por outro lado, a obrigação de restituir não implica a obrigação sistemática de os mais ricos ajudarem os mais pobres. Felizmente, nem todas as sociedades muito pobres foram vítimas de injustiças históricas; e, felizmente, nem todas as sociedades ricas têm de reparar essas injustiças. Logo, caso se pretenda justificar a obrigação sistemática de ajudar sociedades pobres, o modelo da reciprocidade terá de ser abandonado.

Até aqui, o debate deixou claro que considerações de reciprocidade oferecem apenas uma justificação parcial da obrigação de ajuda internacional. Mas oferecer uma justificação parcial é pouco: dela segue-se uma obrigação incompleta de ajudar pessoas e sociedades pobres. Apenas se poderá concluir que há um dever de “alguns ricos darem alguma ajuda a alguns pobres”. Esta restrição implica que a pobreza do pobre e o sofrimento do que passa necessidades de vária ordem, seja qual for o pobre e o que sofre, não têm prioridade. Todavia, a força normativa dessa pobreza e desse sofrimento é independente de relações de reciprocidade. Por isso, atender de modo prioritário a essa pobreza e sofrimento conduz a uma obrigação de ajuda internacional com uma extensão diferente. Essa obrigação, como se viu, não pode ser justificada a partir do modelo da reciprocidade. Ora, nada há de forçado em supor que a pobreza e o sofrimento são expressões de vulnerabilidade. Parece assim, pelo menos à partida, que o modelo da vulnerabilidade está em melhores condições de justificar a obrigação de ajudar sociedades mais pobres. A sua vantagem comparativa é grande; ao contrário do modelo da reciprocidade, não há agora restrições duvidosas a essa obrigação.

Alguém é tanto mais vulnerável quanto a sua “fome é maior, as suas necessidades mais urgentes, o seu sofrimento mais doloroso”. Quem assim se encontra está pior, e esse é o factor normativo relevante. Quem assim se encontra tem então prioridade moral (Raz 1984: 240). Admitir esta prioridade alarga a obrigação de ajudar todos os que são vulneráveis. Nisto consiste, afinal, a obrigação de ajudar as sociedades mais pobres. É a relevância moral independente da vulnerabilidade que determina a natureza dessa obrigação. Isto quer dizer que a distância ou a proximidade dos vulneráveis não é um factor normativo; distantes ou próximos, nada distingue a exigência moral que fazem. Em todo o caso, fazer o bem a quem é vulnerável implica escolher aqueles a quem fazer esse bem. Essa escolha não pode deixar de conter alguma arbitrariedade, por muito que se faça para o evitar. Há quem pretenda que escolher os vulneráveis de quem se tem algum conhecimento é menos arbitrário do que socorrer um perfeito desconhecido. Mas esta afirmação não é verdadeira: o facto de se conhecer umas pessoas e não outras está longe de ser moralmente determinado.

Ainda que não seja possível escapar à arbitrariedade, há maneiras de ajudar mais consequentes do que outras. Há quem defenda a ajuda individual, pessoa a pessoa, que os meios de comunicação actuais libertam do constrangimento da proximidade. Essa ajuda tem o inconveniente de não dar a devida importância ao contexto social e económico do beneficiário. A experiência mostra que pouco adianta que indivíduos isolados façam todo o bem de que são capazes. Para que isso altere o contexto que gera vulnerabilidade, integrar a ajuda individual numa ajuda colectiva e multilateral parece mais adequado. Uma ajuda multilateral não tem apenas mais condições para enfrentar os problemas de coordenação — é também uma maneira de limitar as possibilidades de um benfeitor explorar a dependência dos beneficiários. Saber que maneira de ajudar é mais consequente é uma questão prática. Conhecer os seus aspectos mais relevantes, como o da eficácia de ser colectiva e multilateral, não tem implicações filosóficas. Mas é crucial que as boas intenções tenham resultados desejáveis.

A obrigação de ajuda internacional que tem sido defendida é uma exigência moral muito forte. As dificuldades práticas que enfrenta podem diminuir consideravelmente a eficácia do seu cumprimento. Outras dificuldades, no entanto, podem derrotar a própria obrigação, e não apenas a eficácia do seu cumprimento. São, por isso, mais sérias. Uma delas merece atenção especial. É levantada por um argumento que poderia ser identificado como o argumento da supererogação. Partindo da premissa de que o dever implica poder — ninguém tem um dever que não pode cumprir —, afirma em seguida que há actos que deveríamos, mas não podemos, realizar; esses actos, ainda que moralmente louváveis (supererogatórios), excedem as capacidades psicológicas dos seres humanos; um deles é o de ajudar de maneira sistemática todos os que são vulneráveis; logo, ajudar de maneira sistemática todos os que são vulneráveis não é moralmente obrigatório — é antes um caso de supererogação. Na psicologia humana comum, não parece então haver lugar para essa espécie de heroísmo que é o sacrifício moral. Apenas uns quantos suportam, e talvez vençam, as tensões psicológicas de um dever tão exigente. É por isso razoável ajustar as obrigações morais às capacidades psicológicas. Mas esse ajustamento parece derrotar a obrigação de ajudar de maneira sistemática os vulneráveis. Até pode haver, como de facto há, quem seja capaz desse tipo de ajuda aos mais vulneráveis. Sem dúvida que pessoas assim são dignas de louvor. Todas as outras, as que não são capazes de estar à altura de um dever tão exigente, não são dignas de louvor, mas também não são condenáveis por isso.

É grande o apelo intuitivo desta objecção. Todavia, ela pressupõe uma concepção errada da psicologia humana. Dizer que a obrigação referida excede as capacidades psicológicas dos seres humanos é admitir sem discussão que a psicologia humana é estática. Se for verdade que é, educar para a virtude de ajudar quem é vulnerável, além de inútil, equivale a ignorar factos relevantes acerca dos seres humanos. Mas é um facto que virtudes hoje praticadas tiveram de ser cultivadas. Um facto que, obviamente, é relevante acerca dos seres humanos. Há assim uma razão bastante forte para pensar que os deveres psicologicamente suportáveis não estão fixados à partida. O dever de ajudar quem é vulnerável, que parecia supererogatório, pode afinal ter o estatuto de obrigação. Se certas pessoas são mais capazes dessa virtude, isso quer dizer que há sociedades que a educam nos seus membros. Talvez porque compreenderam que a obrigação de ajudar quem é vulnerável, seja de que sociedade for, tem uma justificação sólida.

Como foi dito no início desta secção, outro caso merece debate. A obrigação de proteger as gerações futuras é um caso particularmente importante das obrigações gerais de beneficência. A moralidade comum recomenda que os pais atribuam um peso especial ao bem-estar dos filhos, um peso menor ao bem-estar dos netos, e, admite-se, um peso ainda mais reduzido ao dos bisnetos. A redução do peso atribuído às gerações futuras mais distantes no tempo mostra que há uma espécie de taxa de desconto em função do grau de parentesco (Parfit, 1984: 485). A esta beneficência localizada no tempo corresponde uma ética das gerações presentes. Mas é cada vez mais difícil negar que as gerações futuras (as não presentes) podem ter direitos. Ainda que a identidade dos futuros seres humanos seja obscura, é plausível supor que têm interesses. Logo, o que as gerações presentes fazem pode afectar os interesses das gerações futuras. Isto é suficiente para que sejam reconhecidas exigências morais a essas gerações sem que elas tenham de as fazer. Parece então que as gerações actuais podem ter obrigações em relação às gerações futuras. Resta saber como justificar essas obrigações. Para os propósitos deste ensaio, uma maneira mais directa de levantar o problema é a seguinte: os interesses das gerações futuras são devidamente atendidos a partir de considerações de reciprocidade ou a partir de considerações de vulnerabilidade?

O modelo da reciprocidade admite algumas variações. Uma delas consiste em imaginar uma negociação entre todas as pessoas, sejam presentes ou futuras. Trata-se de uma versão da “posição original” com a finalidade de justificar uma ética das gerações. Nessa posição, as pessoas referidas, que seriam apenas possíveis, escolheriam dar e receber bens tidos como primários. Seria esta a maneira de estabelecerem relações de reciprocidade. Todavia, por definição não é certo que uma pessoa possível venha a existir de facto. Estas pessoas teriam de enfrentar a perspectiva desconfortável de nunca virem a nascer; e, além de desconfortável, bizarra, uma vez que nunca viriam a nascer em consequência da negociação em que participaram. É difícil imaginar uma morte mais prematura, assim como é aceitar um “acordo com fantasmas”. O falhanço desta variação do modelo da reciprocidade levou a uma alternativa à superfície mais plausível. A “posição original” é agora uma negociação apenas entre todas as pessoas possíveis que é certo virem a existir. Esta versão da posição original tem o aspecto de um “truque” destinado a evitar a dificuldade da versão anterior. Mas a verdade é que nem assim deixa de enfrentar o problema igualmente sério de saber que pessoas particulares existirão de facto. Isso sucede porque a existência dessas pessoas depende da negociação que ocorre na posição original. Não há então maneira de escapar à incoerência de “sugerir que um grupo de pessoas deve fazer uma escolha quando a composição desse grupo é ela própria determinada por essa escolha”. Pelo menos até aqui, o modelo da reciprocidade, concebido como uma versão da “posição original”, não é capaz de justificar a obrigação de proteger as gerações futuras.

Outra variação do modelo da reciprocidade consiste em ver cada geração, incluindo a presente, como simples depositária dos bens que lhe foram deixados pelas gerações anteriores. O facto de cada geração receber esses bens é em si mesmo um constrangimento moral. Dele resulta o dever de cada geração dar à seguinte o que não chega sequer a pertencer-lhe, como se o mundo fosse frequentado apenas por hóspedes. Procedendo deste modo, as gerações estabelecem relações de reciprocidade. Mas é duvidoso que assim seja. O modelo da reciprocidade pressupõe que cada geração escolhe, e voluntariamente assume, a obrigação de transmitir à geração seguinte o que a anterior nela depositou. Esse pressuposto, porém, não se verifica neste caso: ninguém aceitou a condição de depositário. Isto é ainda mais saliente quanto a herança é vastíssima, incluindo tudo o que as gerações prévias deixaram. Como é óbvio, não há maneira de declinar uma herança destas. Mas, se não há, daí não deriva qualquer obrigação. Além de ser verdade que ninguém aceitou a condição de depositário, é também verdade que, neste caso, a própria ideia de aceitar uma herança que não pode ser declinada não tem sentido. Não ocorre uma relação de genuína reciprocidade. Por isso, não se vê como justificar deste modo qualquer obrigação de proteger as gerações futuras.

São grandes as dificuldades do modelo da reciprocidade em justificar a obrigação de proteger as gerações futuras. Essa é, aliás, a intuição de partida, que é assim confirmada pelo debate acerca desse modelo. Com certa graça, uma observação capta de modo muito certeiro o fracasso do modelo da reciprocidade; ligeiramente irritado, um dia um académico disse: “estamos sempre a fazer alguma coisa para a Posteridade, mas eu veria de bom grado a Posteridade a fazer alguma coisa por nós”. É óbvio que as gerações presentes têm obrigações para com as gerações futuras; mas é igualmente óbvio que a reciprocidade entre essas gerações é impossível. Este é um conflito sem solução. Compreende-se, portanto, a necessidade de procurar uma alternativa ao modelo da reciprocidade. Pode ser que o modelo da vulnerabilidade não enfrente dificuldades tão sérias.

A dependência das gerações futuras em relação às presentes é completa. As gerações futuras não podem deixar de beneficiar de toda a ajuda fornecida pelas gerações presentes; todavia, as gerações presentes estão impedidas de beneficiar da ajuda das gerações futuras. Do mesmo modo, as gerações futuras não podem deixar de sofrer todo o dano causado pelas gerações presentes; todavia, as gerações presentes são imunes a qualquer dano causado pelas gerações futuras. A vulnerabilidade completa das gerações futuras é a outra face do “poder unilateral” das gerações presentes. É por isso razoável que a vulnerabilidade das gerações futuras determine a obrigação de as proteger. Só assim o poder unilateral das gerações presentes, que ninguém se dispõe a aceitar, pode estar sujeito a constrangimentos. É então da vulnerabilidade das gerações futuras que deriva a força normativa desses constrangimentos. A obrigação de proteger as gerações futuras é primariamente colectiva. Isto não exime os indivíduos das suas responsabilidades. Tudo o que puder ser feito, seja pelos indivíduos ou pelas sociedades, deve ser feito.

Há quem defenda que esta obrigação é tanto mais fraca quanto maior é a distância no tempo das gerações futuras. Em geral, são apresentadas duas razões para esse enfraquecimento: a incerteza aumenta, e nesse caso a probabilidade de ajudar é menor; e, se as gerações futuras forem cada vez mais ricas, suceda o que suceder, serão também cada vez menos vulneráveis às nossas escolhas. Ainda que a primeira razão seja verdadeira, não se segue que enfraquece a obrigação de proteger as gerações futuras. Não é descabido pensar que, nesse caso, tudo o que puder ser feito talvez seja ainda mais decisivo. A segunda razão é bastante disputável. Pode ser que, pelo contrário, as gerações futuras venham a ser mais pobres; as perspectivas sobre a qualidade de vida futura suscitam muitas perplexidades. A obrigação referida mantém assim grande parte da sua força normativa. Até pode dar-se o caso de que alguma taxa de desconto possa ser-lhe aplicada; em todo o caso, será uma taxa bem menor do que a praticada pela moralidade comum.

Impedir que os outros sofram dano, quando com eles não há qualquer relação especial, exige a obrigação geral de proteger quem é vulnerável, tanto daquele que é distante ou próximo no espaço, como daquele que é distante ou próximo no tempo. Esta conclusão pode ser defendida caso se justifique a obrigação geral de impedir que os outros sofram dano a partir do modelo da vulnerabilidade. Fazê-lo a partir do modelo da reciprocidade conduziria a dois erros. O primeiro seria fazer da obrigação de ajuda internacional uma obrigação incompleta. Isto é claramente escasso. O segundo seria deixar sem justificação o que é cada vez mais reconhecido — a obrigação de proteger as gerações futuras. Desapareceria assim do “mapa” moral uma importante obrigação.

A beneficência em Beauchamp e Childress

Quando discutem a obrigação de salvar, Beauchamp e Childress apresentam o caso de uma epidemia que irrompe numa comunidade pequena (Beauchamp e Childress, 2009: 204). Os infectados têm de ficar de quarentena. Por esta razão, centenas de pessoas não infectadas não podem regressar a suas casas; mas também não podem deixar a cidade, cujos hotéis, para piorar as coisas, não têm quartos disponíveis. As autoridades prevêem que a morte de vinte não infectados, que estão impedidos de regressar a suas casas, pode ser evitada. Para isso, terão de ser acolhidos pelos não infectados que podem regressar a suas casas. Beauchamp e Childress defendem que estes têm a obrigação de acolher os não infectados sem abrigo. Mas não porque são membros da mesma comunidade, o que “deixaria arbitrariamente de fora os visitantes apanhados de surpresa”. Não são, portanto, relações de reciprocidade que justificam a obrigação de acolher os não infectados. Isto mostra, segundo Beauchamp e Childress, que não há uma diferença moral relevante entre a obrigação de salvar indivíduos específicos e a obrigação de ajudar pessoas extremamente pobres, sejam quais forem. Por isso, concluem:

À luz destas considerações, o princípio da beneficência da moralidade comum exige às pessoas que estão melhor que, pelo menos, forneçam algum nível de ajuda a quem se encontra numa pobreza extrema. Desta perspectiva, os princípios fracos de Singer tornam-se bastante plausíveis, tal como antes sugerimos (Beauchamp e Childress, 2009: 204).

O primeiro princípio fraco, formulado mas não aprovado por Singer em Fome, Riqueza e Moralidade, afirma que tem de ser fornecida ajuda aos extremamente pobres até ao ponto em que seria sacrificada alguma coisa com importância moral. O segundo princípio fraco, formulado e aprovado nas lições Uehiro de 2007 (Singer, 2007), estabelece um limiar mais baixo para a obrigação de ajudar os pobres. Trata-se de um limiar que procura ter em conta as condições que motivam as pessoas a dar. Pretende-se assim evitar publicamente a exigência excessiva do princípio forte de Singer. O segundo princípio fraco diz então que a cada pessoa cabe apenas dar a “justa parte” do que é preciso para aliviar a pobreza.

A conclusão que o caso da epidemia apoia, e a defesa que daí se segue dos princípios fracos de Singer, não podem justificar-se a partir do modelo da reciprocidade. Não é consistente que Beauchamp e Childress, logo a seguir, salientem a importância desse modelo na justificação das obrigações gerais e específicas de beneficência. Se esta avaliação for correcta, têm um problema para resolver: ou os princípios fracos de Singer são verdadeiros, ou o modelo da reciprocidade é uma justificação sólida das obrigações de beneficência. Mas, como se viu ao longo das secções anteriores, há boas razões para rejeitar o modelo da reciprocidade.

A natureza do princípio da vulnerabilidade

Esta secção é o terceiro momento do ensaio. Em grande medida, consiste em apresentar a ética da vulnerabilidade que as considerações anteriores favorecem. Mas essas considerações apenas deixam entrever o que o conceito de vulnerabilidade implica, e isso não basta. É também preciso que essas implicações sejam claras. Só deste modo será transparente a natureza do princípio da protecção dos vulneráveis. Este passo é crucial, uma vez que a ética da vulnerabilidade é determinada pela natureza desse princípio.

É necessário saber em relação a quê e a quem uma pessoa é vulnerável; sem isso, não é possível afirmar com segurança que uma pessoa é vulnerável. A vulnerabilidade é assim relativa a objectos e a agentes. Porque é relativa a objectos, há certos tipos de danos, sejam eles produzidos pela natureza ou pelos seres humanos, que uma pessoa vulnerável é particularmente susceptível de sofrer; e porque é relativa a agentes, isso quer dizer que uma pessoa vulnerável é particularmente dependente de outras pessoas para que certos danos se verifiquem ou não, ou para que certos danos se verifiquem em maior ou menor grau. Isto implica que a vulnerabilidade pode ser evitada ou atenuada se certos agentes fizerem as escolhas apropriadas. Caso o dano seja inevitável, o conceito de vulnerabilidade não se aplica: seria demasiado fraco para descrever uma situação em que se está condenado a sofrer (Goodin, 1985: 112).

Ser particularmente susceptível de sofrer um dano, e estar, além disso, particularmente dependente de outras pessoas a esse respeito, é ter em risco a satisfação das necessidades mais urgentes. Proteger quem é vulnerável equivale então a ajudar aqueles que passam necessidades extremas. Estas necessidades têm um peso moral maior do que as necessidades menos urgentes. A unidade a que se aplica o princípio da protecção da vulnerabilidade é assim constituída por aqueles que têm necessidades mais urgentes. Este princípio exprime uma “perspectiva da prioridade”, segundo a qual “beneficiar as pessoas conta tanto mais quanto pior elas estão” (Parfit, 2001: 366). E os que estão pior são, como se acabou de dizer, os que têm necessidades moralmente mais urgentes. Isto, pelo menos, à partida. A verdade é que é disputável que assim seja. É difícil saber se um rico com uma vida agradável, mas em risco de perder a visão (necessidade mais urgente), tem prioridade sobre alguém que, naquele momento, tem uma vida claramente pior, mas sem uma necessidade tão urgente, ou sobre alguém cuja vida como um todo é também claramente pior, mas também sem uma necessidade tão urgente.

Seja como for, a perspectiva da prioridade, que o princípio da protecção dos vulneráveis exprime, é distinta de uma perspectiva igualitária. O que tem força normativa não é o facto de se estar pior do que os outros; é antes o facto de se estar pior do que se poderia (Parfit, 2001: 369). Não se trata, portanto, de ajustar adequadamente relatividades, mas de atender ao nível baixo, em termos absolutos, de quem é vulnerável. Neste ponto, talvez seja útil prevenir uma confusão. Conceptualmente, a vulnerabilidade é relativa a objectos e a agentes; todavia, não se segue daí que o princípio da protecção dos vulneráveis determina que o nível destes tenha de ser ajustado ao nível de quem os ajuda — segue-se apenas que os outros têm responsabilidades. Mas, conceptualmente, a vulnerabilidade consiste também em ter necessidades mais urgentes; em si mesmas, essas necessidades são moralmente relevantes; segue-se assim a perspectiva da prioridade referida, e não uma perspectiva igualitária.

Além da perspectiva da prioridade, o princípio da protecção dos vulneráveis tem uma outra implicação. A vulnerabilidade envolve o risco de que as necessidades mais urgentes não sejam satisfeitas. É saliente, por isso, uma prioridade: a de atender, em primeiro lugar, quem tem essas necessidades por satisfazer. Mas, se envolve esse risco, a vulnerabilidade é também uma fonte de sofrimento; ter as necessidades mais urgentes por satisfazer faz, como é óbvio, sofrer intensamente. Logo, a prioridade de atender quem é vulnerável implica, nesses casos, que o sofrimento tem mais importância moral do que a felicidade. Dizer isto é afirmar o princípio da assimetria moral da felicidade e do sofrimento.2 A par da perspectiva da prioridade, este princípio parece também resultar da obrigação de proteger quem é vulnerável. Um exemplo com grande força intuitiva é geralmente apresentado a seu favor. Trata-se do caso em que uma droga — uma espécie de droga da euforia — passa a ser acessível. Entre alcançar uma felicidade intensa com essa droga e evitar o sofrimento de uma cirurgia através da administração de um anestésico, não restam dúvidas de que a administração do anestésico tem mais importância moral. Em casos destes, a força normativa do sofrimento obscurece a força normativa da felicidade. E estes não são casos isolados. A experiência apoia frequentemente a ideia de que “há mais para temer no sofrimento do que para desejar na felicidade”.

O princípio da protecção dos vulneráveis determina a obrigação de fazer certas escolhas. Havendo um curso de acção que tem a capacidade de impedir o dano que os vulneráveis são particularmente susceptíveis de sofrer e um outro que a não tem, ou que a tem mas em grau menor, a obrigação é escolher aquele que tem a capacidade referida. Essa é a consequência pretendida sempre que é razoável aplicar o princípio da protecção dos vulneráveis. Este princípio tem assim uma natureza consequencialista (Goodin, 1985: 114). O facto de a ter é mais uma das suas implicações relevantes. Mas este facto é teoricamente inofensivo, não pesando a favor da escolha de uma teoria moral deontológica ou teleológica. Esta distinção teórica, que é central em ética normativa, não resulta de considerações acerca das consequências da acção; o critério de que depende é outro: se a explicação última da relevância dos factores normativos reside apenas na importância do bem, a teoria é teleológica; se recorre também a outros conceitos fundamentais, a teoria é deontológica.3 Pode suceder, porém, que a ética normativa não se divida em dois grandes conjuntos de teorias, ambos com um pressuposto monista. Uma outra possibilidade estrutural — a de uma teoria pluralista — merece atenção. Na verdade, factos morais acerca da protecção dos vulneráveis podem favorecer uma teoria pluralista.

Um desses factos ocorre quando se tem de contrabalançar o peso normativo de uma pequena redução do sofrimento, crónico mas tolerável, de uma pessoa deficiente, o peso normativo de um grande aumento da felicidade de uma pessoa saudável, e ainda o peso normativo da realização dos seus projectos pessoais mais queridos. Há razões para, neste caso, se decidir a favor da pessoa saudável sem derrotar o princípio da assimetria moral. Isto só aconteceria se o aumento da felicidade da pessoa saudável fosse apenas ligeiramente maior do que a redução do sofrimento da pessoa deficiente. O peso da protecção da vulnerabilidade (a pequena redução do sofrimento) foi menor do que o peso dos outros factores normativos. Outro caso é o de uma pessoa que praticamente não vê, mas que tem a possibilidade de reduzir muito ligeiramente as suas dificuldades de visão. Esta melhoria não introduz alterações qualitativas na sua capacidade visual. Para reduzir as suas dificuldades de visão, o paciente terá de permitir que seja testado em si um novo medicamento. O teste envolve um risco remoto de diminuição considerável do apetite. Todavia, este risco não será comunicado ao paciente. O facto moral que este caso levanta resulta de se contrabalançar o peso normativo de uma redução muito ligeira da vulnerabilidade e o peso normativo do direito à informação relevante. Mais uma vez, parece haver razões para derrotar a protecção da vulnerabilidade, agora a favor do constrangimento derivado do direito à informação relevante.

Estes factos morais podem ser admitidos por uma teoria deontológica. Num caso e noutro, a decisão poderia ser explicada a partir do conceito de observador ideal, ou do conceito de contrato. As opções, como se sabe, são várias; o pressuposto de que dependem, no entanto, é apenas um — o pressuposto monista. Por isso, em qualquer uma delas a diversidade ao nível dos factores normativos seria explicada por um único conceito ao nível dos fundamentos. A força normativa dos diversos factores, que parece independente, seria unificada. Mas a força normativa dos diversos factores pode ser realmente independente; e forçada a sua redução a uma unidade conceptual. Para que esta ideia ganhe solidez, bastaria fazer dos casos apresentados, que na verdade são bastante simples, casos muito mais duros. No primeiro caso, isso sucederia se a redução do sofrimento da pessoa deficiente fosse grande e se a realização dos projectos da pessoa saudável tivesse efeitos positivos na saúde de um número razoável de seres humanos. No segundo caso, seria apenas preciso que a redução das dificuldades de visão fosse significativa. Reformulados os casos, a decisão moral é agora bem mais difícil. Cada escolha tem a seu favor razões que parecem decisivas; mas cada escolha tem contra si razões que não parece capaz de suplantar (Nagel, 1979: 129). O que explica um conflito desta gravidade não são apenas as diferenças entre tipos de valor: ainda assim, estas diferenças poderiam, pelo menos em teoria, ser unificadas. A explicação reside antes no facto de tipos diferentes de valor reflectirem tipos diferentes de fontes de valor (Nagel, 1979: 132). Ao contrário do que pretendem as teorias monistas, a diversidade de factores normativos, que exprime diferentes tipos de valor, não tem uma fonte única. É esta a afirmação central da teoria pluralista. Há fontes mais centradas no agente, incluindo fontes estritamente pessoais, e fontes mais centradas nos resultados, algumas delas estritamente impessoais. Isto porque os seres humanos são “criaturas complexas que podem ver o mundo de diferentes perspectivas — individual, relacional, impessoal, ideal, etc. — e cada perspectiva apresenta um conjunto diferente de exigências” (Nagel, 1979: 134).

Introduzir, neste ponto, a teoria pluralista tem o propósito de incluir a protecção dos vulneráveis num dos tipos de valor; no caso, num tipo de valor a que “tecnicamente se chama utilidade”. Os aspectos centrais deste tipo de valor são os danos e benefícios para todas as pessoas que resultam do que cada um faz. Trata-se de um tipo de valor impessoal. A sua fonte está, portanto, mais centrada nos resultados. Também a protecção dos que são particularmente susceptíveis de sofrer dano (os vulneráveis), sejam eles indivíduos identificados ou não, se justificada a partir do modelo da vulnerabilidade, não depende de relações de reciprocidade. Isto implica que o princípio da protecção dos vulneráveis tem uma natureza impessoal; por isso, a fonte do seu valor está centrada nos resultados, e não nos agentes.

Mas a natureza desse princípio envolve outro aspecto particularmente importante. Um aspecto que é implicado, não pelo conteúdo da teoria pluralista, como o anterior, mas pela sua estrutura. Esta teoria defende que há tipos diferentes de fontes de valor. Estas fontes de valor não formam uma hierarquia nem se articulam num sistema de prioridades — são independentes. Há razões para admitir que delas deriva a força normativa de factores que pesam nas decisões morais. Uma vez que estas fontes são independentes, à partida um factor normativo não tem a capacidade de suplantar outro. Isso dependerá do modo como esses factores interagem em cada contexto relevante. Todavia, ainda que seja suplantado por outro, não deixa de ter um peso genuíno. Isto porque a sua fonte normativa não deixa de ser estruturalmente independente por esse facto. E nos casos duros, aqueles em que nenhum dos factores em interacção é capaz de suplantar outro, isso é ainda mais óbvio. Atendendo a que a vulnerabilidade é um factor normativo, o princípio da protecção dos vulneráveis tem sempre um peso genuíno — é assim uma razão pro tanto para agir.4 Também este é um aspecto que faz parte da natureza desse princípio.

Parece dispensável redescrever, como se de uma síntese se tratasse, a natureza do princípio da protecção dos vulneráveis. Mas vale a pena fazer ainda uma nota histórica. É possível que com a ajuda da teoria pluralista essa nota ganhe mais interesse. A ética normativa sempre foi fértil em disputas. Para dar conta desta situação, por vezes usa-se a imagem de duas forças morais em conflito.5 De um lado, “o meu valor”, que “determina o comportamento que deve vir de mim”; do outro, “o seu valor”, que “determina o comportamento que deve ir na sua direcção”. A teoria moral grega teria tentado demarcar a influência do “meu valor”. A tradição de origem judaica teria tentado demarcar a influência do “seu valor”. Ver deste modo uma parte da história da ética pode ser plausível para além dessas tradições. Se for, talvez faça sentido dizer que a ética da vulnerabilidade, tal como foi defendida, é mais uma tentativa de demarcar uma parcela do território de influência do “seu valor”. E também, por isso mesmo, uma maneira de identificar aqueles a quem fazer o bem. Se essa maneira estiver certa, e há razões fortes para pensar que sim, fazer o bem não pode ser deixado ao critério das relações de cada um.

Faustino Vaz

Notas

  1. Os casos e a argumentação desta secção e da secção seguinte reconstroem os capítulos 3, 4 e 6 de Goodin (1985).
  2. Uma discussão filosoficamente rica deste princípio pode encontrar-se em Mayerfield, 1999: cap. 6.
  3. Por vezes, esta distinção é uma fonte de equívocos. Mas é razoavelmente segura quando feita nestes termos. É o que pensam dois importantes filósofos morais: Kagan (1998: 192) e Kamm (2007: 12).
  4. Devido à ressalva epistémica da expressão “prima facie”, é preferível usar, neste caso, a expressão “pro tanto”. Kagan (1989: 17) justifica o uso desta expressão.
  5. Nozick (1981: 401) refere essas forças através das expressões moral push e moral pull, que são algo bizarras também na língua inglesa.

Referências

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