Neste trabalho, analiso o problema do mal na perspectiva teísta de Richard Swinburne e na perspectiva ateísta de John L. Mackie. Analiso os argumentos apresentados por estes dois filósofos para explicar este problema, bem como as conclusões a que ambos chegam. Ao analisar os argumentos não posso deixar de os examinar e discutir, levantando objecções sempre que tal se justificar. A partir da análise do problema do mal visto por estes dois filósofos, argumento que só se pode conceber Deus ou como omnipotente mas não perfeitamente bom, ou como perfeitamente bom mas não omnipotente, uma vez que, se Deus fosse perfeitamente bom e omnipotente, nunca poderia permitir o mal.
Dado que o artigo de John L. Mackie em que me baseio para elaborar este trabalho está na língua original (inglesa), todas as citações que faço a partir do mesmo neste trabalho são traduzidas directamente por mim para a língua portuguesa, quer porque é a minha própria língua, quer porque é a língua em que todo o trabalho está redigido, quer mesmo para facilitar a leitura do trabalho a alguém que possa, eventualmente, vir a estar interessado em lê-lo e não conheça a língua inglesa.
O mal é uma realidade evidente e cuja presença no mundo é inegável. Em todo o mundo, acontecem todos os dias inúmeros casos em que o mal está presente, desde as mais comuns situações de injustiça, aos mais brutais casos de sofrimento, de miséria e de infelicidade. Ao mesmo tempo, continua-se, ainda hoje, a afirmar que Deus existe, atribuindo-lhe qualidades como a infinita justiça, a infinita bondade e a perfeição absoluta, a par da omnipotência, da omnipresença e da omnisciência.
Ora, a questão que se põe é a seguinte: se Deus, o suposto Criador do mundo, existe realmente, e se é de facto infinitamente bom e infinitamente justo, ao mesmo tempo que é omnipotente (ou seja, pode tudo), omnipresente (ou seja, está em toda a parte e tudo presencia), e omnisciente (ou seja, sabe tudo), então, como pode haver tanto mal num mundo criado e controlado por esse Deus perfeito? Se Deus existe, se é assim perfeito e se tem estas qualidades, por que razão não impede o mal? Por que permite que haja tanta injustiça, tanto sofrimento e tanta miséria?
Esta é a questão fundamental do problema do mal, que se lança como argumento central para a negação da existência de Deus, ou, pelo menos, para a negação destes predicados que normalmente lhe são atribuídos e reconhecidos.
O problema do mal é uma das questões mais interessantes e importantes de que os filósofos se ocupam na filosofia da religião, havendo, actualmente, duas posições que procuram oferecer uma resposta séria para este problema: 1) os teístas, que procuram afirmar que a existência de Deus é compatível com o problema do mal, e 2) os ateístas, que procuram negar a existência de Deus, ou, pelo menos, a concepção de Deus como ser perfeitamente bom e justo, em consequência do problema do mal. Passo a apresentar, a analisar e a discutir as perspectivas e os argumentos de dois dos filósofos que estudam esta questão.
Em Será que Deus Existe?, Richard Swinburne começa por procurar explicar em que se traduz a afirmação da existência de Deus e como Deus agiria e quais seriam as suas qualidades, se existisse. No primeiro capítulo do livro, intitulado “Deus”, Swinburne apresenta as qualidades de Deus, começando por falar da sua omnipotência:
O que o teísta afirma acerca de Deus é que ele, de facto, tem o poder de criar, conservar ou aniquilar o que quer que seja, grande ou pequeno. [...] Deus não está limitado pelas leis da natureza; fá-las e pode mudá-las ou suspendê-las — se assim o escolher. Para usar o termo técnico, Deus é omnipotente: pode fazer tudo. (p. 14)
É também no primeiro capítulo desta obra que Swinburne se refere à liberdade de Deus:
Os seres humanos têm um livre-arbítrio limitado. Mas Deus, supostamente, não é limitado desta forma. É perfeitamente livre, no sentido em que os desejos nunca exercem sobre ele qualquer espécie de influência causal. Sendo omnipotente, não só pode fazer tudo o que quiser, como é perfeitamente livre ao fazer as suas escolhas. (p. 15)
Ainda que afirme a omnipotência de Deus, assim como a sua perfeita liberdade de escolha, Swinburne não o faz sem estabelecer um limite para esta omnipotência e para esta liberdade de escolha:
Deus é, portanto, afirma o teísmo, uma pessoa, omnipotente, omnisciente e perfeitamente livre. Mas, chegados a este momento, devemos ter cuidado com o modo como entendemos estas afirmações. Um ser omnipotente pode fazer tudo. Mas significa isso que ele pode fazer o universo existir e não existir ao mesmo tempo, fazer 2 + 2 ser igual a 5, fazer uma forma simultaneamente quadrada e redonda ou mudar o passado? De modo geral, a tradição religiosa tem afirmado que Deus não pode fazer estas coisas; não porque Deus seja fraco, mas porque as palavras — por exemplo, “fazer uma forma simultaneamente quadrada e redonda” — não descrevem nada que faça sentido. Não há nada que pudesse constituir uma forma simultaneamente quadrada e redonda. Faz parte de dizer que algo é quadrado dizer que essa coisa não é redonda. Portanto, em termos técnicos, Deus não pode fazer o que é logicamente impossível (ou que envolva uma autocontradição). Deus pode fazer o universo existir e Deus pode fazer o universo não existir, mas Deus não pode fazer o universo existir e não existir ao mesmo tempo. (pp. 15–16)
Destes elementos pode-se estabelecer que, para este filósofo, Deus é omnipotente e perfeitamente livre, embora, mesmo na sua omnipotência e na sua perfeita liberdade, não possa fazer o que não é logicamente possível fazer. Poder-se-ia objectar que, se a omnipotência de Deus está limitada às possibilidades lógicas, então não é uma omnipotência em sentido próprio, uma vez que o significado de “omnipotência” é o poder ilimitado de fazer tudo. Ainda assim, e porque até faz bastante sentido a explicação que Swinburne oferece quanto à impossibilidade lógica de “fazer o universo existir e não existir ao mesmo tempo”, o ateísta terá que conceder neste ponto.
Do mesmo modo que Swinburne afirma que a omnipotência de Deus se circunscreve àquilo que é logicamente possível fazer, ele também afirma que a omnisciência de Deus se limita àquilo que é logicamente possível saber. Assim, segundo este filósofo, Deus não pode saber o que é que uma pessoa fará no dia seguinte, dada a liberdade de escolha e de decisão dessa pessoa. Swinburne afirma que, embora seja omnisciente, Deus não pode saber qual a próxima decisão ou acção de uma pessoa, pois tal não é logicamente possível. Uma vez mais, poderia objectar-se que, se a omnisciência de Deus está limitada àquilo que é logicamente possível saber, então, tal como no que respeita à omnipotência, não é uma omnisciência em sentido próprio, pois quando se diz que um ser é omnisciente, diz-se que esse ser sabe e pode saber tudo. Contudo, ao invocar a liberdade de decisão e de acção das pessoas, Swinburne faz com que tenha também de se ceder neste ponto, uma vez que as pessoas não são absolutamente determinadas e só elas mesmas saberão aquilo que quererão fazer no momento seguinte.
Seja como for, é impossível não estranhar que uma explicação teísta, como a de Swinburne, afirme a omnipotência, a perfeita liberdade e a omnisciência de Deus, e, ao mesmo tempo, afirme limites para estas três supostas faculdades (que, por definição, são ilimitadas) de Deus.
Swinburne, como já se disse, antecipa estas objecções, afirmando que os seres humanos, por terem livre-arbítrio e não estarem absolutamente determinados nas suas decisões e acções, têm esta liberdade, que faz com que Deus não possa saber o que cada pessoa vai fazer no momento seguinte. Segundo Swinburne, foi Deus que, na sua omnipotência, deu aos humanos este livre-arbítrio, antevendo as consequências disso, como o não poder saber aquilo que um qualquer ser humano fará no momento seguinte. É como se Deus arriscasse dar o livre-arbítrio aos humanos, mesmo sabendo que deixaria de saber quais as suas intenções em cada momento. O filósofo também adverte que esta é a sua perspectiva, e não a defendida pelas tradições cristã e judaica. Qualquer ateísta terá, pelo menos, de reconhecer a prudência e a coerência que Swinburne procura dar à sua explicação, ainda que estas questões não tenham uma resposta absolutamente convincente.
No seguimento da defesa da sua perspectiva, se até aqui ainda não tinha referido a bondade de Deus, é ainda no primeiro capítulo do livro que Swinburne diz:
Supostamente, Deus é perfeitamente bom. O facto de ser perfeitamente bom segue-se do facto de ser perfeitamente livre e omnisciente. (p. 21)
Esperar-se-ia que o filósofo, à semelhança do que disse quanto às três qualidades de Deus referidas anteriormente, afirmasse a perfeita bondade de Deus seguida de um limite (eventualmente lógico), até porque, segundo Swinburne, a perfeita bondade de Deus “segue-se do facto de ser perfeitamente livre e omnisciente”, duas qualidades que, como já se viu, não são, também de acordo com o mesmo, absolutamente ilimitadas. Porém, Swinburne afirma a perfeita bondade de Deus sem reservas, dizendo que, na sua omnisciência, Deus conhecerá as verdades morais — aquilo que é verdadeiramente bom ou mau, e que o filósofo afirma existirem enquanto tal, uma vez que há um forte consenso em geral quanto ao que é bom e quanto ao que é mau. Por outro lado, há outra questão que pode ser lançada: será forçoso que um ser omnisciente e perfeitamente livre tenha que ser sumamente bom?
Swinburne diz que Deus, conhecendo o que é verdadeiramente bom, fará sempre aquilo que é bom e não o contrário. Portanto, Deus é perfeitamente bom. Sendo Deus perfeitamente bom, Deus é uma autoridade moral. Para Swinburne, se todos temos o dever de retribuir o bem que nos fazem a quem no-lo faz, e se Deus nos deu o bem que é a existência (entre outros), então temos o dever de lhe retribuir esse bem, fazendo aquilo que Deus nos diz para fazer. Assim, Deus, sendo perfeitamente bom e sendo uma autoridade moral, e porque nos beneficia, cria em nós um conjunto de obrigações morais e tem o poder e a autoridade para nos prescrever esta ou aquela acção, que assim temos o dever de cumprir. Porque é perfeitamente bom e porque sabe o que é verdadeiramente bom, Deus nunca nos pedirá uma acção má.
Quanto aos actos bons, Swinburne refere-se às obrigações que temos e aos actos bons aos quais não estamos obrigados, mas que podemos voluntariamente realizar. Se o fizermos, estaremos a proceder bem, embora estejamos sempre limitados, dado que não podemos, por mais que queiramos, beneficiar ao mesmo tempo todos aqueles que precisam de ajuda. Se apenas cumprirmos as nossas obrigações, embora tal não tenha nenhum mérito especial, estaremos também a agir bem. Aquilo que não devemos é falhar ao cumprimento das nossas obrigações.
Para Swinburne, Deus tem também várias obrigações e pode realizar vários actos bons que excedam as suas obrigações, tendo, na sua omnipotência, poder para isso, excepto quando, como já se viu, tal não é logicamente possível. Ora, para Swinburne, é logicamente impossível para Deus realizar todos os actos bons possíveis que superem as suas obrigações. Diz o filósofo que a perfeita bondade de Deus “consiste em cumprir as suas obrigações, em não praticar actos maus e em realizar muitíssimos actos bons”. (p. 26) E, uma vez mais, impõe-se a objecção: se Deus é omnipotente e se é perfeitamente bom, por que não lhe será possível realizar todos os actos bons imagináveis, mas apenas alguns? E, neste caso, qual é o limite lógico que impede Deus de o fazer? Swinburne diz que “Deus não pode criar o melhor dos mundos possíveis, pois esse mundo não pode existir — qualquer mundo pode ser melhorado” (p. 26); mas, se “Deus não pode criar o melhor dos mundos possíveis”, se Deus não pode criar um mundo que seja tão bom quanto possível, como é que se pode afirmar que Deus é omnipotente e perfeitamente bom? A objecção ainda se pode acentuar mais: se Deus é conhecedor das verdades morais, ou seja, sabe tudo aquilo que é verdadeiramente bom, então saberá como o mundo poderia ser o melhor possível, ou mesmo como o mundo poderia ser perfeitamente bom, à imagem da própria perfeita bondade de Deus. Ora, se assim é, e se Deus é omnipotente, então porque razão “Deus não pode criar o melhor dos mundos possíveis”? Neste ponto, já nenhum ateísta poderá admitir esta argumentação de Swinburne como credível.
O problema do mal começa a desenhar-se a partir desta deficiente explicação teísta (mesmo uma tão séria como a de Swinburne). Se Deus tem todas estas qualidades que os teístas afirmam que tem, ou seja, é omnipotente e perfeitamente bom (entre outras), então como pode permitir que haja tanto mal no mundo? é esta questão que Swinburne aborda num capítulo da sua obra que dedica para responder à questão “Porque é que Deus permite o mal”. Como teísta que é, é a partir desta posição que Swinburne procura explicar de que modo o problema do mal não implica a negação da existência de Deus como ser perfeitamente bom e justo.
É o próprio Swinburne que identifica a questão central do problema do mal, logo no início do capítulo em que procura responder-lhe:
O mundo contém, pois, muito mal. Um deus omnipotente poderia ter evitado este mal — e sem dúvida que um deus sumamente bom e omnipotente o omnipotente o teria feito. Mas então, por que razão existe este mal? Não será a sua existência um forte indício contra a existência de Deus? Sê-lo-ia, sem dúvida — a menos que possamos construir o que é conhecido por teodiceia, uma explicação da razão pela qual Deus terá permitido que o mal ocorresse. (p. 109)
Swinburne reconhece o problema e a sua força, mas nem por isso deixa de defender que não há incompatibilidade entre a existência do mal no mundo e a existência de Deus, apresentando a sua explicação numa teodiceia, como ele mesmo refere. Ao propor-se fazê-lo, o filósofo adverte os leitores de que não é insensível ao sofrimento e que a sua intenção não é diminuir a importância do sofrimento a bem da sua explicação. Segundo diz, a sua preocupação principal é explicar de que modo a existência de Deus é compatível com a presença do mal no mundo, fazendo-o através de argumentos rigorosos, pelo que ninguém em sofrimento deverá procurar conforto na leitura da sua explicação.
“Que coisas boas daria um deus generoso e eterno a seres humanos no decurso de uma curta vida terrena?” (p. 110) — para Swinburne, esta é a pergunta fundamental que permite compreender este capítulo, pois Deus não pode dar aos humanos vários bens, como “a responsabilidade por nós mesmos, pelos outros e pelo mundo” (p. 111) sem ter de permitir, ao mesmo tempo, a existência do mal. Isto, porque, para Swinburne, para que os humanos possam usufruir da liberdade (ou livre-arbítrio) como um bem que Deus lhes deu, têm que poder vivê-la plenamente, o que, segundo o filósofo, põe obstáculos à intervenção de Deus; por outras palavras, e como já foi anteriormente referido quanto aos limites da possibilidade lógica da omnisciência, quando Deus decidiu criar os humanos como seres livres, fê-lo sabendo que não determinaria as suas acções e que não poderia saber que decisões poderiam vir a tomar em cada momento.
Ao começar a tratar o problema do mal, Swinburne estabelece uma distinção entre 1) mal moral, como “todo o mal causado deliberadamente pelos seres humanos ao fazerem o que não deviam (ou que os seres humanos permitem que aconteça por negligenciarem o que deviam fazer) e também o mal constituído por essas acções deliberadas e faltas negligentes” (p. 111), e entre 2) mal natural, como “todo o mal que não for deliberadamente produzido por seres humanos e que estes não permitam que aconteça por negligência” (p. 111).
Sendo o mal natural todos aqueles males que acontecem por força das leis da natureza, não é propriamente o mal natural com que os ateístas mais se preocupam, embora também questionem a existência de um deus supostamente perfeito que crie males como o sofrimento ou a morte. Mas é o acto intencional e deliberado de causar o mal, ou seja, o mal moral, que merece a maior atenção, quer dos teístas, quer dos ateístas. Swinburne diz que os humanos, ao sofrerem os males naturais, apercebem-se de que modo podem eles mesmos manipular os acontecimentos de tal modo que possam causar mal a outrem. E é a partir daqui que se dá o mal moral.
O livre-arbítrio é o argumento principal que Swinburne, e os teístas em geral, usam para defender a teodiceia. Classificando o livre-arbítrio como “escolha livre e responsável” (p. 112), Swinburne afirma que a existência deste bem tem como implicação a possível existência do mal moral. Assim, Deus, ao dar aos humanos a possibilidade de escolherem livre e responsavelmente, torna possível a existência do mal moral e, segundo o filósofo, deixa de o poder controlar:
Não é logicamente possível — isto é, seria autocontraditório supor — que Deus possa dar-nos esse livre-arbítrio e que, no entanto, garanta que o usamos sempre bem. (p. 112)
De facto, tem de se reconhecer a força deste argumento. Todavia, poder-se-á objectar que Deus, ao dar o livre-arbítrio aos humanos, abdicando de determinar as suas acções e dando-lhes a possibilidade de escolha livre e responsável, criou condições para que o mal moral acontecesse, com todas as situações de sofrimento e de injustiça que isto compreende. Não será de questionar a perfeita bondade e a suma justiça de um Deus que abre as portas ao mal? Ainda que o livre-arbítrio possa ser considerado um bem em si, a verdade é que, quando alguém escolhe livremente prejudicar outro (e quando este outro é inocente), só o livre-arbítrio do agressor influencia a acção, uma vez que o ofendido sofre o mal sem ser consultado e sem se poder valer da sua própria escolha livre. Será isto justo?
Outra objecção que se pode levantar é a seguinte: se Deus é perfeitamente bom e sumamente justo, então por que razão não criou os humanos como seres igualmente perfeitos e justos? Ou então, porque não os deixou iguais a todos os outros animais, longe do bem e do mal? Se é verdadeiro que Deus é o responsável pelo livre-arbítrio dos seres humanos, poder-se-á dizer que a decisão que Deus tomou quanto à atribuição desta faculdade aos humanos foi uma decisão perfeitamente boa e justa? Como diz Swinburne, Deus conhece as verdades morais e portanto sabe o que é absolutamente bom; então como pôde tomar uma decisão que compreendia o sério risco de permitir a existência do mal no mundo? Para os ateístas, esta é uma objecção importantíssima, sendo a sua crítica dirigida não ao livre-arbítrio (que também consideram um bem), mas à atribuição da qualidade da perfeita bondade a Deus, cuja existência negam (pelo menos, com este e outros predicados).
Mas Swinburne continua a sua explicação. Para este filósofo, a possibilidade que os humanos têm de fazer escolhas livres e responsáveis coloca-se, justamente, na opção entre o bem e o mal. O bem do livre-arbítrio evidencia-se quando se vê que os humanos, ainda que possam provocar males terríveis, são também capazes de actos admiráveis e verdadeiramente louváveis. Esta possibilidade de escolha livre e responsável tem a responsabilidade como peça fundamental, na medida em que depende de um sujeito beneficiar ou prejudicar outro ou outros, assim como Deus tem essa liberdade e possibilidade, como Swinburne afirma.
É preciso dizer que Swinburne diz que o livre-arbítrio terá sido atribuído por Deus aos humanos para que também eles “partilhem a sua obra criativa” (p. 113). Para Swinburne, se o mundo fosse povoado apenas por seres que só poderiam praticar o bem entre si, sem poderem praticar qualquer mal, seria um mundo com responsabilidades muito limitadas. Com isto, o filósofo quer dizer que o bem que Deus deu aos humanos quando os criou livres foi tanto maior quanto maior e mais ilimitada for a sua liberdade e, por consequência, a sua responsabilidade. A possibilidade da ocorrência do mal moral faz com que todas as escolhas livres sejam extremamente importantes e que a responsabilidade dos humanos pese muito. Se os humanos apenas pudessem praticar acções boas, essas acções seriam menos importantes, pois a escolha não teria sido difícil nem propriamente livre.
O ateísta não discutirá, em boa verdade, que a liberdade é um bem, contestará apenas que dela podem resultar muitos males, e que não é próprio de um ser omnisciente, sumamente sapiente, conhecedor das verdades morais e perfeitamente bom permitir que haja qualquer possibilidade do mal se instalar, ou, pelo menos, não impedir a propagação do mal, a partir do momento em que começa a manifestar-se. Com efeito, espera-se de um deus perfeitamente bom e omnipotente, que, mesmo depois de, num acto de boa vontade, ter dado a liberdade de escolha aos humanos, constate que essa liberdade não é bem usada, que acarreta muitos males, tirando como conclusão dessa constatação a urgência de impedir o mal, mesmo se for preciso restringir ou eliminar a liberdade dos humanos, uma vez que é desta que o mal decorre. Ora, se o mal continua a existir, um tal deus não existe, ou, pelo menos, um tal deus com os referidos atributos não existe.
É verdadeiro que, como Swinburne diz, “a possibilidade de os seres humanos originarem muito mal é uma consequência lógica do facto de terem esta escolha livre e responsável” (p. 114). Os ateístas não discutem isto nem defendem qualquer espécie de determinismo; antes negam a existência de Deus ou a existência de Deus com os predicados da perfeita bondade e da infinita justiça como consequência lógica da existência do mal. Quando Swinburne afirma que “nem mesmo Deus poderia dar-nos esta escolha sem a possibilidade do mal resultante” (pp. 114–115) também não está enganado — pura e simplesmente, como teísta que é, terá de estar preparado para oferecer uma resposta séria que seja absolutamente satisfatória e convincente à seguinte pergunta: terá sido essa decisão perfeitamente boa? Ou: seria essa a decisão de um ser perfeitamente bom? A experiência prova que não, e é daqui que se segue a negação pura e simples da existência de Deus, ou a negação da existência de Deus como ser perfeitamente bom, infinitamente justo, omnipotente e omnisciente, em simultâneo.
Em “Evil and Omnipotence” (trad.: “O Mal e a Omnipotência”), um artigo já considerado clássico, John L. Mackie demonstra a inconsistência que existe entre algumas das crenças dos teístas, nomeadamente a inconsistência que se verifica entre a proposição “Deus é perfeitamente bom” e a proposição “Deus é omnipotente”, duas crenças que fazem parte da concepção geral de Deus.
De facto, Mackie tem o cuidado de advertir, no seu artigo, que o mesmo se dirige apenas a quem defende que Deus é, simultaneamente, omnipotente e sumamente bom, sendo que o problema do mal tratado por Mackie apenas deve ser considerado para quem defende esta concepção de Deus. Mackie ressalva também que o problema do mal, ao revelar uma inconsistência entre crenças próprias de uma mesma concepção, não é um problema científico (que possa ser solucionado ou compreendido pela ciência) nem prático (que dependa de qualquer decisão ou acção), sendo, isso sim, um problema lógico. E é nesta esfera que Mackie analisa o problema do mal e as suas implicações:
Na sua forma mais simples, o problema é o seguinte: Deus é omnipotente; Deus é sumamente bom; e, ainda assim, o mal existe. Parece haver alguma contradição entre estas três proposições, de tal modo que, se duas quaisquer delas fossem verdadeiras, a terceira seria falsa. (p. 25)
Como se vê, a argumentação de Mackie começa por ser sobre o problema lógico do problema do mal. E, a propósito desta contradição, Mackie continua:
Contudo, a contradição não surge imediatamente; para a mostrar, precisamos de premissas adicionais, ou talvez de algumas regras quase-lógicas que relacionem os termos “bem”, “mal”, e “omnipotente”. Estes princípios adicionais são: que o bem se opõe ao mal, de modo que uma coisa boa elimina sempre o mal tanto quanto pode, e que não há limites para aquilo que uma coisa omnipotente pode fazer. Daqui segue-se que uma coisa boa e omnipotente elimina o mal completamente, e, então, as proposições de que uma coisa boa e omnipotente existe, e de que o mal existe, são incompatíveis. (p. 26)
Esta passagem assume a maior importância, uma vez que é aqui que Mackie afirma a importância de, ao tratar e pensar o problema do mal, considerar sempre os termos “bem”, “mal” e “omnipotente” de uma forma inter-relacionada, para ser possível compreender os argumentos, quer dos teístas, quer dos ateístas.
Depois de expor o problema com toda a clareza, Mackie centra a sua atenção nas soluções falaciosas normalmente apresentadas para o problema com o objectivo de manter todas as proposições que o constituem. É assim que se propõe analisar algumas destas soluções, analisando pormenorizadamente as falácias nelas presentes, ou mesmo considerando ligeiras alterações nas proposições para permitir que estas soluções sejam válidas e possam, mesmo com estas alterações, corresponder ao teísmo normal. É esta análise de Mackie que estudo e que passo a expor e analisar.
Mackie começa por identificar uma implicação que põe sérios problemas à omnipotência de Deus; quando se diz que “o bem não pode existir sem o mal”, é o mesmo que afirmar que Deus não pode criar apenas o bem, tendo de criar o mal também, o que significa que Deus não pode fazer tudo, ou que está de algum modo determinado; logo, não é omnipotente. Embora afirme serem uma excepção, Mackie admite também que há teístas que, quando se referem à omnipotência de Deus, fazem-no deixando subentendida a ideia de uma omnipotência não como o poder de fazer tudo, mas como o poder de fazer tudo o que é logicamente possível fazer, como Swinburne defende.
Assim, os teístas que defendem que Deus é pura e simplesmente omnipotente não podem apresentar a proposição “o bem não pode existir sem o mal” para solucionar o problema do mal, uma vez que esta traduz uma impossibilidade para Deus, negando a sua omnipotência. Por outro lado, os teístas que defendem que Deus só pode fazer aquilo que é logicamente possível fazer não podem afirmar que a lógica é criada por Deus, pois, segundo este argumento, a lógica constitui um limite para a omnipotência de Deus.
A par deste problema quanto à omnipotência de Deus, Mackie afirma ainda sobre esta solução:
Mas, em segundo lugar, esta solução nega que o mal se opõe ao bem no nosso sentido original. Se o bem e o mal são correlativos, uma coisa boa não “elimina o mal tanto quanto possível”. De facto, esta perspectiva sugere que o bem e o mal não são de todo estritamente qualidades das coisas. Talvez a sugestão seja de que o bem e o mal estão relacionados em grande medida da mesma maneira que grande e pequeno. Sem dúvida que quando o termo “grande” é usado relativamente como uma condensação de “maior do que isto-e-aquilo”, e “pequeno” é usado correspondentemente, grandeza e pequenez são correlativos e não podem existir uma sem a outra. Mas, neste sentido, a grandeza não é uma qualidade, não é uma característica intrínseca de nada; e seria absurdo pensar num movimento a favor da grandeza e contra a pequenez neste sentido. (p. 29)
Supondo, com alguma segurança, que nenhum teísta quereria comparar este tipo de “grandeza” (como categoria de comparação quanto à dimensão) com a grandeza de Deus (como categoria de classificação), Mackie afirma que uma coisa, no sentido em que ele se lhe refere, pode ser “grande” ou “pequena” sem que um termo seja o correlativo do outro, fazendo com que não fosse logicamente impossível que tudo fosse pequeno ou grande. Do mesmo modo, os termos “bem” e “mal” não têm que ser correlativos um do outro, pelo que o bem pode existir independentemente do mal, ao contrário do que esta falsa solução pretende afirmar. Uma vez que o mal não é apenas “a privação do bem” (p. 29), então o mal não é o correlativo lógico do bem. Logo, o bem pode existir sem o mal e vice-versa.
Mackie põe ainda a hipótese de ser apresentado o argumento de que “o mal existe, mas apenas o mal suficiente para servir de correlativo para o bem” (p. 29), mas afasta-a logo de seguida, por não acreditar que um teísta argumentasse desta forma, pois que, se o mal existisse apenas em quantidade suficiente para se constituir como correlativo do bem, então bastaria que houvesse uma pequena e breve quantidade de mal. Ora, nenhum teísta dirá que o mal existente se resume a “uma pequena e breve quantidade”.
Depois de ter exposto a falácia do argumento da necessidade lógica da existência simultânea do bem e do mal como correlativos, Mackie expõe a falácia do argumento que apresenta a necessidade do mal como meio para o bem.
O filósofo começa por dizer que um tal argumento dificilmente poderá responder ao problema do mal, uma vez que “implica obviamente uma severa restrição do poder de Deus”. (p. 30) Quando alguém afirma que um certo elemento é um meio para atingir um certo fim está a afirmar que essa é uma acção causal, ou seja, não é uma acção livre, estando, portanto, determinada. Se Deus tem de introduzir o elemento mal como um meio para atingir o fim que é o bem, então isso quer dizer que Deus está submetido às leis da causalidade, não sendo absolutamente livre porque está sujeito à determinação, o que colide frontalmente com o seu predicado de omnipotente, habitualmente afirmado pela maior parte dos teístas. Do mesmo modo, esta perspectiva não só implica que Deus está limitado pelas leis causais, como também que, ao estar limitado por elas, não pode ter sido ele a criá-las, o que, uma vez mais, não é a posição generalizada dos teístas.
Assim, como conclui Mackie, se o teísta quiser apresentar este argumento como solução para o problema do mal, terá de negar uma das duas seguintes proposições: ou que “Deus é omnipotente”, ou que ““omnipotente” significa aquilo que exprime” (p. 30), ou seja, o poder de fazer tudo.
Mackie entende este argumento como a defesa do mal como mal físico, ou seja, males como a dor e a doença, que despertam o bem moral, como a empatia ou compaixão, a benevolência ou o heroísmo. Deste modo, “o universo é melhor com algum mal em si do que se fosse se não houvesse mal” porque este mal que o universo contém desperta, alegadamente, o bem, que não se manifestaria de forma tão forte se não houvesse mal no universo. Mackie estabelece um quadro de base para tentar clarificar e compreender em que consiste este argumento:
Vejamos exactamente o que está a ser feito aqui. Vamos chamar à dor e à miséria “mal de primeira ordem” ou “mal 1”. O que contrasta com este, nomeadamente o prazer e a felicidade, será chamado de “bem de primeira ordem” ou “bem 1”. Distinto deste é o “bem de segunda ordem” ou “bem 2”, que, de algum modo, emerge numa situação complexa em que o mal 1 é uma componente necessária — logicamente, não apenas causalmente, mas necessariamente. (Exactamente como ele emerge não importa: na solução mais imediata desta solução, o bem 2 é simplesmente a elevação da felicidade em contraste com a miséria, noutras versões inclui a empatia com o sofrimento, o heroísmo em face do perigo, e o decréscimo gradual do mal de primeira ordem e o aumento do bem de primeira ordem.) Também se pressupõe que o bem de segunda ordem é mais importante do que o mal ou o bem de primeira ordem, em particular que excede o mal de primeira ordem que envolve. (p. 31)
Mackie reconhece a subtileza desta solução para o problema do mal, pois que procura sustentar a bondade e a omnipotência de Deus com a justificação de que este é o melhor de todos os mundos logicamente possíveis, uma vez que permite a existência de bens de segunda ordem (os mais importantes), ao mesmo tempo que permite a existência de males, designadamente males de primeira ordem. De facto, segundo esta explicação, seriam estes males de primeira ordem que fariam com que houvesse os bens mais importantes — os bens de segunda ordem.
Em resposta, Mackie afirma que esta explicação deixa de opor o bem ao mal — antes os torna interdependentes —, o que implica que, ao contrário do que tinha estabelecido no princípio da sua análise, uma coisa boa deixa de tender para a eliminação do mal. Ora, nenhum teísta quererá nem poderá defender isto seriamente, pois, ainda que use este argumento, descobrirá que é inconsistente com a perfeita bondade (e mesmo com a omnipotência) de Deus. Mackie explica que, com esta solução, o quadro se modifica substancialmente:
O bem de primeira ordem (como a felicidade) contrasta com o mal de primeira ordem (como a miséria): estes dois opõem-se de uma forma bastante mecânica; alguns bens de segunda ordem (como a benevolência) tentam maximizar o bem de primeira ordem e minimizar o mal de primeira ordem; mas a bondade de Deus não é isto, é antes a vontade de maximizar o bem de segunda ordem. Podemos, portanto, chamar à bondade de Deus um exemplo de um bem de terceira ordem, ou bem 3. Ainda que este quadro de considerações seja diferente do nosso quadro original, pode muito bem ser defendido como um melhoramento do mesmo, para dar uma descrição muito mais precisa do modo como o bem se opõe ao mal, e sendo consistente com a posição teísta essencial. (pp. 31–32)
Aqui, Mackie está, claramente, a cumprir aquilo que se propõe fazer logo no início do seu artigo, isto é, não procura apenas demonstrar as inconsistências entre as principais crenças do teísmo quanto aos atributos de Deus, como também, em alguns casos, procura oferecer uma explicação que ele mesmo constrói de modo a que haja alguma consistência entre as mesmas crenças dos teístas.
Mackie refere que, ao admitir e adoptar este quadro de considerações, os teístas terão que reconhecer que Deus não é propriamente benevolente, dado que não procura minimizar o mal de primeira ordem; procura apenas promover o bem de segunda ordem, o que, uma vez mais, contraria a concepção teísta generalizada de Deus como perfeitamente bom.
Mas Mackie acaba por voltar a refutar este argumento para a solução do problema do mal, incluindo aquele quadro de considerações que ele mesmo construiu:
A nossa análise mostra claramente a possibilidade da existência de um mal de segunda ordem, um mal 2 que contrasta com o bem 2, tal como o mal 1 contrasta com o bem 1. Isto incluiria a malevolência, a crueldade, a insensibilidade, a cobardia, e declara que, naquilo em que o bem 1 está a decrescer, o mal 1 está a aumentar. E do mesmo modo que o bem 2 é tido como o género importante de bem, o género que Deus está interessado em promover, então o mal 2 será, por analogia, o género importante de mal, o género que Deus, se fosse sumamente bom e omnipotente, eliminaria. E, ainda assim, o mal 2 existe plenamente, e é um facto que a maior parte dos teístas (noutros contextos) evidenciam a sua existência mais do que a do mal 1. Devemos, portanto, declarar o problema do mal nos termos de mal de segunda ordem, e, contra esta forma do problema, a presente solução é inútil. (p. 32)
Mackie conclui, assim, que não é a existência do mal físico (como a dor e a doença) no universo que contrasta com o bem moral, mas sim o próprio mal moral. Por outras palavras, como Mackie referiu, não é o mal de primeira ordem que contrasta com o bem de segunda ordem, mas é o mal de segunda ordem que contrasta com esse. E é neste mal de segunda ordem, o mal moral, que o problema do mal se põe. Assim, a afirmação de que “o universo é melhor com algum mal em si do que se fosse se não houvesse mal” deixa de fazer sentido, pois refere-se ao mal de primeira ordem, procurando justificá-lo, quando o problema, ao invés deste, assenta no mal moral ou de segunda ordem.
Esta é a última solução falaciosa que Mackie analisa, e que responde a um dos mais habituais argumentos utilizados pelos teístas, como se pode ver em Swinburne.
Mackie começa por fazer uma descrição deste argumento. Nesta solução, a liberdade ou livre-arbítrio é visto como um bem de terceira ordem e como um bem mais valioso do que os bens de segunda ordem, como a coragem ou a compaixão. Deste modo, torna-se logicamente necessário que os males de segunda ordem, como a crueldade, acompanhem a liberdade, pois podem resultar dela. O filósofo deixa, desde logo, uma oposição a esta explicação, que tem a ver com a noção de “livre-arbítrio”, mas não é essa que vai discutir nesta análise, embora lhe faça referência.
Veja-se de que modo Mackie começa a tratar este argumento:
Primeiro, devo questionar o pressuposto de que os males de segunda ordem são acompanhantes logicamente necessários da liberdade. Devo perguntar isto: se Deus fez os homens de tal modo que, nas suas escolhas livres, eles por vezes preferem o que é bom e por vezes preferem o que é mau, por que não poderia ele ter feito os homens de tal modo que eles escolhessem sempre livremente o bem? Se não há nenhuma impossibilidade lógica de um homem escolher livremente o bem numa ou em várias ocasiões, não pode haver uma impossibilidade lógica em ele escolher livremente o bem em todas as ocasiões. Deus não esteve, então, perante a escolha entre fazer autómatos inocentes e fazer seres que, ao agir livremente, escolheriam o mal por vezes: esteve aberta para ele a possibilidade obviamente melhor de fazer seres que agiriam sempre livremente mas seguiriam sempre o bem. Claramente, a falha dele em beneficiar-se a si mesmo com esta possibilidade é inconsistente com ele ser omnipotente e sumamente bom. (p. 33)
Mackie argumenta, pois, que, se Deus fosse omnipotente (pudesse fazer tudo) e fosse sumamente bom, teria podido criar os humanos como seres livres, garantindo, ao mesmo tempo, que todas as suas escolhas livres seriam boas. Esta seria a decisão de um ser que pode tudo, ilimitadamente, e que é, ao mesmo tempo, sumamente bom. Se Deus não o fez, então não pode ser omnipotente e sumamente bom.
O filósofo antecipa a objecção que defende que o mal é uma necessidade lógica da liberdade, respondendo de imediato que a liberdade não é apenas a indeterminação e a casualidade, fazendo o bem e o mal completamente aleatórios ou quase indiferentes nas suas características. Mackie afirma que só assim não se poderia imputar a responsabilidade pelo mal a Deus. Mas rejeita esta possibilidade, objectando que “se a liberdade é o acaso, como pode ela ser a característica da vontade? E, mais ainda, como pode ela ser o mais importante bem? Que valor ou mérito haveria em escolhas livres se estas fossem acções de acaso que não fossem determinadas pelo agente? (p. 34)
Ao pôr estas questões, Mackie refere-se ao problema do livre-arbítrio, como tinha dito no princípio desta análise, enquadrando-o na esfera da metafísica e da ética, áreas de estudo em que o filósofo é especializado. Mas verdade é que estas questões não podem deixar de ser colocadas no âmbito da filosofia da religião, sobretudo quando se analisa o problema do mal e a tentativa de o justificar com o livre-arbítrio. Com efeito, ao apelar ao livre-arbítrio, os teístas, provavelmente sem quererem, estão a sugerir que o livre-arbítrio não é mais do que a ausência de qualquer orientação do agente, seja ela a determinação natural, seja ela a determinação moral. Ora, se o agente livre é absolutamente indeterminado e se, assim, tanto pode fazer o bem como o mal, ao acaso, como é possível afirmar a importância da liberdade? Sê-lo-á, de facto? E como é que se pode afirmar esta liberdade como uma qualidade moral do agente?
Por outro lado, e como se vê em Swinburne, quando o teísta afirma que os seres humanos são livres e não estão sujeitos à determinação, nem mesmo de Deus — procurando, assim, desresponsabilizar Deus pelo mal —, ao afirmar que Deus não controla e não pode controlar os seres humanos, o teísta estará, uma vez mais, a negar implicitamente a omnipotência de Deus. A única hipótese que resta para esta explicação fazer algum sentido é afirmar que Deus fez os homens tão livres que deixou de os poder controlar. Isto implica que Deus não é, afinal, omnipotente. Mas Mackie também pergunta: “Mas por que razão, podemos perguntar, deveria Deus de se abster de controlar más vontades? Por que não deveria ele deixar os homens agir correctamente, mas intervir quando os vê a começar a agir erradamente?” (p. 34) A única explicação que Mackie vê para estas perguntas é que Deus é omnipotente e sumamente bom, mas considera a liberdade um bem muito maior do que qualquer outro e pelo qual vale a pena sacrificar tudo, incluindo permitir os piores males concebíveis; a verdade, porém, é que os teístas, se quiserem dar esta resposta, estarão a ser inconsistentes com uma série de crenças que eles mesmos defendem.
Mackie trata ainda do “paradoxo da omnipotência”, que se evidencia com a ideia de que um deus omnipotente cria seres que não pode controlar, ou que um deus omnipotente cria regras (como na lógica) às quais fica limitado. Poderá ser assim? Não será isto a negação da omnipotência? é que o paradoxo é de tal modo forte, que, se se disser que Deus não pode criar seres que não pode controlar (ou que Deus não pode criar regras às quais não pode fugir), estará a dizer-se que Deus não pode algo, logo, que Deus não é omnipotente. Por outro lado, se se disser que Deus pode criar seres que não pode controlar (ou que Deus pode criar regras às quais não pode fugir), estará também a dizer-se que Deus não pode algo, ou seja, que Deus não é omnipotente.
Como a seguir procura explicar, procurando responder a este paradoxo, Mackie volta a salientar que, para Deus conservar a sua omnipotência, não poderia criar seres que pudessem escolher livremente o que fazer, dado que, depois, não poderia controlá-los. Inversamente, para Deus criar seres livres e afirmar a sua omnipotência como ser que tudo pode, não poderia, depois, controlá-los, deixando de ser omnipotente. O problema da omnipotência é acabar por mostrar que é uma ideia auto-refutante.
E é deste modo que Mackie conclui o seu artigo.
Procurei apresentar duas das posições mais credíveis que hoje conhecemos sobre o problema do mal: a de Swinburne, como um teísta prudente, que procura dar a maior consistência possível à sua argumentação, e a de Mackie, como um filósofo que, sem tomar uma posição propriamente dita, acaba por mostrar que os teístas se defrontam com grandes inconsistências, e que, para manterem as suas posições, terão que rever seriamente o modo como concebem Deus.
Espero que este trabalho seja elucidativo e que seja um instrumento de reflexão para que cada um possa chegar às suas próprias conclusões.
Miguel Moutinho