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Crítica
30 de Setembro de 2003   Metafísica

Possibilidade relativa: três concepções

Desidério Murcho

Segundo a concepção de Bob Hale (1997) e Ian McFetridge (1990), um dado domínio de possibilidades é relativo se, e só se, há outros domínios de possibilidades que o incluem mas são mais vastos. Outra concepção de possibilidade relativa assevera que um dado domínio de possibilidades é relativo se, e só se, do facto de uma proposição desse domínio ser possível não se infere que essa proposição é possível sem ressalvas, isto é, não se infere que há um mundo possível no qual essa proposição é verdadeira. A semântica de mundos possíveis oferece ainda uma terceira concepção de possibilidade relativa, dada pela relação de acessibilidade entre mundos possíveis. O objectivo deste artigo é comparar as três concepções e mostrar que nenhuma delas pode ser reduzida a qualquer outra.

A noção de possibilidade relativa é intuitiva: algumas verdades são possíveis relativamente a certas verdades mas não a outras. E talvez algumas verdades sejam possíveis relativamente a qualquer verdade, caso em que seriam absolutas. Por exemplo, relativamente às verdades da física não é possível viajar mais depressa do que a luz;1 mas talvez se viaje mais depressa do que a luz em mundos possíveis com leis da física diferentes.

Quando se pensa em modalidades relativas e absolutas, a noção de acessibilidade entre mundos possíveis é a forma mais directa de tentar dar corpo à intuição. E tem a enorme vantagem de ser uma noção precisa, tecnicamente desenvolvida e logicamente elementar. Em traços gerais, consiste em estabelecer relações de possibilidade entre mundos possíveis. Assim, “p” será verdadeira num mundo M1 mas não será possível num mundo M2 se M1 não for, ele próprio, possível relativamente a M2. Por exemplo, em M1 alguns objectos viajam mais depressa do que a luz; mas como M1 não é possível relativamente a M2, não é possível em M2 viajar mais depressa do que a luz — a partir de M2 não há qualquer mundo possível onde se viaje mais depressa do que a luz, apesar de “em absoluto” haver um mundo (M1) onde se viaja mais depressa do que a luz. Assim, “p” é verdadeira em alguns mundos possíveis (nomeadamente, em M1, se for acessível a si mesmo, e noutros mundos possíveis que tenham “acesso” a M1), mas não noutros.

A relação de acessibilidade entre mundos possíveis tem primariamente o papel de modelar modalidades reiteradas do mesmo tipo. Isto é, a relação de acessibilidade dá-nos uma semântica que clarifica afirmações com a forma

Se é possível que p, então é necessário que seja possível que p.

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(por exemplo), mas não para afirmações que estabeleçam relações entre as necessidades e possibilidades física, lógica e metafísica. Talvez seja possível adaptar a estrutura para modelar as relações entre diferentes tipos de modalidades, mas não é evidente que isso seja iluminante. O problema da relação entre os diferentes tipos de modalidades não é lógico, mas metafísico. As relações entre os diferentes tipos de modalidades não levantam problemas lógicos complexos, para a solução dos quais seja necessário usar a relação de acessibilidade.

A noção de modalidades absolutas, de Bob Hale e Ian McFetridge, tem em mente precisamente algo que a acessibilidade não foi concebida para modelar: as relações entre os três diferentes tipos fundamentais de possibilidades e modalidades (as lógicas, as físicas e as metafísicas). Deste ponto de vista, define-se uma possibilidade como absoluta se é o mais vasto domínio de possibilidades; concomitantemente, uma necessidade é absoluta se for o mais pequeno domínio de necessidades. Com esta terminologia assegurada pode-se então tentar argumentar a favor da ideia de que é a modalidade lógica que é absoluta e a única modalidade absoluta. Isto é equivalente a defender que há possibilidades lógicas que não são possibilidades físicas nem metafísicas, e que todas as necessidades lógicas são necessidades físicas e metafísicas, apesar de algumas necessidades físicas e metafísicas não serem necessidades lógicas. Esta perspectiva corresponde ao que a maior parte dos filósofos da modalidade estão aparentemente dispostos a aceitar: que uma afirmação como “Sócrates é Sócrates” é uma necessidade lógica, física e metafísica, mas que uma afirmação como “Sócrates é um ser humano” poderá ser uma necessidade metafísica, mas não é uma necessidade lógica, sendo disputável se é uma necessidade física.2

É fácil ver que esta noção de modalidade relativa difere substancialmente da noção em causa na relação de acessibilidade. A modalidade relativa de Hale e McFetridge refere-se à relação entre diferentes tipos de necessidade e possibilidade, e nada diz sobre modalidades reiteradas. A relação de acessibilidade aplica-se a um único tipo de modalidades (apesar de eventualmente se poder expandir para se aplicar a relações entre diferentes tipos de modalidades) e refere-se às condições de verdade de afirmações com modalidades reiteradas. A relação de acessibilidade responde a perguntas como “Dado que é possível que seja necessário, será necessário?”;3 mas nada diz sobre perguntas como “Se algo for possível num certo sentido (físico ou lógico), será possível noutro sentido qualquer?”. A noção de Hale e McFetridge aplica-se a perguntas como a segunda, mas nada diz sobre a primeira.

Uma terceira noção de possibilidade e necessidade relativa é a seguinte. Um tipo qualquer de modalidade qualificada (como a física, a lógica ou a metafísica) é absoluta se, e só se, dela se infere a modalidade não qualificada ou simpliciter. E é relativa se dela não se infere a modalidade não qualificada. Por exemplo, a necessidade física será absoluta se de “p é fisicamente necessária” se infere “p é necessária”; e será relativa se não se infere tal.4 Esta noção pretende captar a diferença entre o que é possível ou necessário em função de certos aspectos, e o que é realmente possível ou necessário, irrestritamente. Assim, por exemplo, podemos dizer que, logicamente, é possível que a água não seja H2O, dado que a afirmação “A água é H2O” não pode ser estabelecida como verdadeira unicamente por meios lógicos. Mas podemos querer defender que, apesar disso, não é realmente possível que a água não seja H2O. Analogamente, uma afirmação como “A água não é H2O” não pode ser estabelecida como falsa por meios lógicos apenas; mas não é menos falsa por isso — pura e simplesmente não é uma falsidade lógica. E essa mesma afirmação, precisamente por não ser uma falsidade lógica, é uma possibilidade lógica — mas daí não se segue que seja realmente uma possibilidade.

Esta noção de modalidades absolutas e relativas permite, pois, captar a diferença intuitiva entre algo ser possível ou necessário de um certo ponto de vista apesar de não ser “realmente” possível ou necessário. Esta diferença é algo mais do que uma intuição pré-filosófica. Filósofos como Kripke (1971, 1980) e Putnam (1975) defenderam afirmações essencialistas; por exemplo, que a água é necessariamente H2O. Ora, sem esta noção de necessidade e possibilidade absoluta, esta teoria seria trivialmente falsa, dado que é evidente que é logicamente possível que a água não seja H2O5. Esta noção de modalidades absolutas permite clarificar este tipo de posições, defendendo-se que a modalidade metafísica é absoluta, ao contrário das outras modalidades, que são relativas. Deste modo, do facto de ser logicamente possível que a água não seja H2O, não se segue que é possível que a água não seja H2O.

Esta noção pode ser usada para defender que só as modalidades absolutas determinam a existência de mundos possíveis, clarificando deste modo a afirmação de filósofos como Kripke que declaram ser verdade em todos os mundos possíveis que, por exemplo, a água é H2O. Se a possibilidade lógica não for relativa neste sentido, é trivial que há mundos possíveis em que a água não é H2O, dado que a afirmação “A água não é H2O” não é uma falsidade lógica, e portanto não é uma impossibilidade lógica. Esta noção de modalidades absolutas e relativas torna mais fácil resistir à teoria de Salmon (1989), que declara haver mundos possíveis com solteiros casados e em que Sócrates é um cartão de crédito. Se entendermos os mundos possíveis como modelos de circunstâncias realmente possíveis, e se entendermos que nem todas as possibilidades qualificadas determinam verdadeiras possibilidades, então certas possibilidades, relativas, não determinam a existência de quaisquer mundos possíveis — e esse será precisamente o caso da possibilidade lógica.

Esta noção de possibilidade e necessidade relativa difere substancialmente da noção associada à relação de acessibilidade. Antes de mais, não se trata de responder a modalidades reiteradas. Além disso, uma proposição relativamente possível mas não absolutamente possível no sentido da acessibilidade pode ser absolutamente possível segundo a outra noção. Por exemplo, aceitando a existência de uma estrutura de acessibilidade entre mundos possíveis na qual nem todos os mundos possíveis tenham acesso a qualquer outro, haverá mundos possíveis em que “p” é verdadeira, por exemplo, mas outros mundos possíveis em que “p” não é verdadeira. E assim “p” será relativamente possível. Mas “p” será absolutamente possível no outro sentido, dado que há mundos possíveis onde a proposição é verdadeira. Uma proposição como a expressa pela frase “É possível viajar mais depressa do que a luz” será relativamente possível no sentido da acessibilidade se considerarmos que em alguns mundos possíveis a proposição é falsa (porque, por exemplo, do “ponto de vista” desses mundos possíveis, as leis da física são necessárias). Mas segundo a outra noção de possibilidade relativa e absoluta, a proposição é uma possibilidade absoluta, e não meramente relativa, dado que há mundos possíveis em que é verdadeira.

A noção de possibilidade e necessidade absoluta e relativa não se pode, pois, identificar ou reduzir à noção de possibilidade relativa associada à relação de acessibilidade entre mundos possíveis. E a noção de Hale, como vimos, também não se pode identificar ou reduzir à noção associada à relação de acessibilidade.

A noção de possibilidade e necessidade absoluta que acabámos de ver não se pode também identificar ou reduzir à noção de Hale. Uma possibilidade pode ser absoluta no sentido de Hale e relativa no outro sentido. A possibilidade lógica, por exemplo, é encarada como absoluta por Hale desde que seja o mais vasto domínio de possibilidades, o que faz de uma afirmação como “A água não é H2O” uma possibilidade absoluta; mas esta mesma afirmação será uma possibilidade relativa segundo a outra noção se entendermos que a possibilidade meramente lógica não implica a possibilidade inqualificada ou a existência de um mundo possível onde tal afirmação seja verdadeira.

Temos, assim, três noções diferentes de modalidades relativas e absolutas. As três são filosoficamente neutras, no sentido em que podem acomodar diferentes doutrinas substanciais quanto à necessidade e à possibilidade. Pode-se aceitar a ideia de Hale mas argumentar que é a modalidade metafísica que é absoluta, e não a lógica, no sentido que Hale dá ao termo: assim, pode-se defender que o mais vasto domínio de possibilidades é o metafísico, sendo consequentemente a necessidade metafísica o mais restrito domínio de necessidade. Descartes, por exemplo, parece ter defendido este tipo de posição,6 e é em grande parte contra ela que Hale e McFetridge argumentam. Pode-se aceitar a outra noção de possibilidade e necessidade absoluta, mas defender que é uma noção vazia: todas as necessidades e possibilidades são relativas, havendo mundos possíveis com solteiros casados — sendo que estes mundos possíveis não são mundos analiticamente possíveis. Esta é a posição de Salmon, se bem que ele não use esta noção de modalidades absolutas e relativas.

É instrutivo comparar as três noções não apenas para não cair em confusões e ambiguidades, mas também para ver que nenhuma delas pode ser abandonada sem se perder com isso recursos filosóficos importantes para a compreensão da natureza da modalidade. Compreender e explorar as relações entre os diferentes tipos de modalidades é crucial, e é crucial saber quais são as modalidades absolutas e relativas no sentido de Hale. Saber se um dado tipo de modalidade é absoluta no sentido de implicar a existência de mundos possíveis ou a modalidade sem ressalvas é crucial para clarificar o debate sobre o essencialismo e a natureza da necessidade. E a noção de acessibilidade é crucial para tratar as modalidades reiteradas. Parece razoável concluir que se trata de três noções distintas sem as quais qualquer pensamento sobre a natureza da modalidade será menos profícuo e esclarecedor.

Desidério Murcho
Linguagem, Mente e Acção, org. de Adriana Silva Graça (Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2004)

Notas

  1. Note-se que estamos a presumir que é verdade que, fisicamente, não é possível viajar mais depressa do que a luz. Caso este pressuposto seja empiricamente falso, basta substituir este exemplo por outro, retirado das verdadeiras leis da física.
  2. Por “necessidade física” entende-se todos os tipos de necessidades naturais, como as necessidades biológicas e químicas, dado que todas as verdades biológicas, químicas, etc., se podem reduzir às ver-dades físicas. Mas os mais puristas poderão querer substituir “necessidade física” por “necessidade natural”. Nada de substancial resulta desta escolha terminológica talvez infeliz mas comum.
  3. Note-se que uma forma interessante de interpretar o argumento original de Santo Anselmo é precisa-mente a de que o argumento era que, admitida a possibilidade da existência de um ser necessário, esse ser é necessário, e, logo, actual.
  4. Para uma apresentação mais pormenorizada desta noção veja-se Murcho (2002), pp. 28-30.
  5. Note-se que alguns filósofos, nomeadamente Putnam, têm tendência para obscurecer as coisas falando de necessidade lógica “em sentido lato”, de modo a incluir necessidades que não são evidentemente lógicas em qualquer sentido formal do termo (não sendo igualmente verdades analíticas). Para evitar confusões, é melhor chamar “necessidade metafísica” à necessidade lógica em sentido lato.
  6. Apesar de este ser um problema relativamente em aberto na história da filosofia.

Referências

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ISSN 1749-8457