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8 de Agosto de 2004   Filosofia

Absurdo, humor e filosofia

D. H. Mellor
Tradução de Desidério Murcho

Disse o bispo Berkeley em 1710, na introdução dos Princípios do Conhecimento Humano:

Em geral, inclino-me a pensar que a maior parte, senão a totalidade, das dificuldades a que até agora os filósofos têm achado graça, e que bloquearam o acesso ao conhecimento, se devem inteiramente a nós mesmos — primeiro levantamos a poeira e depois queixamo-nos que não conseguimos ver (Introdução, § 3).

Estes comentários de Berkeley parecem-me hoje em dia tão verdadeiros como o eram em 1710. Na verdade, a situação é em alguns aspectos pior hoje do que então. Para começar, é demasiado raro que os filósofos hoje achem graça às dificuldades que bloqueiam o acesso ao conhecimento. E deviam achar graça, porque a filosofia tem de lidar, entre outras coisas, com os limites do que faz sentido: isto é, com a fronteira entre o que tem e o que não tem sentido, que é o próprio âmago do humor. Tomemos este exemplo de Alice no Outro Lado do Espelho, de Lewis Carroll:

— Por quem passaste na estrada? — continuou o Rei, estendendo a sua mão para o Mensageiro para lhe dar mais algum feno.

— Por ninguém — disse o Mensageiro.

— Exactamente — disse o Rei. — Esta rapariga também o viu. Portanto, é claro que Ninguém anda mais devagar do que tu.

— Faço o meu melhor — disse o Mensageiro num tom mal-humorado. — Tenho a certeza de que ninguém anda muito mais depressa do que eu!

— Ele não poderia andar mais depressa — disse o Rei —, senão teria chegado cá primeiro. (Capítulo VII)

Só um filósofo vê por que razão isto é engraçado, só um filósofo vê por que razão não faz sentido falar de Ninguém como se ele e ela (Ninguém é ao mesmo tempo do sexo masculino e feminino...) fosse um ser de um tipo qualquer. A razão, é claro, é que apesar de a palavra “Ninguém” parecer o nome de um ser, não é de facto de modo algum um nome: é um modo de dizer que não havia qualquer ser que andasse mais devagar ou mais depressa do que o Mensageiro. Ora bem, isto é um exemplo bastante trivial de análise filosófica, que qualquer pessoa pode fazer; mas, como veremos, há por aí coisas sem sentido muito mais sérias (e muito mais enganadoras) do que as de Lewis Carroll, que tornam necessária uma análise muito maior para desmascarar e explicar.

Para denunciar o que não tem sentido, contudo, temos primeiro de o descobrir; temos de ter uma sensibilidade especial ao que não tem sentido. E, como Ramsey disse sobre a proposta de Wittgenstein de que a própria filosofia é destituída de sentido, “temos então de levar a sério que não tem sentido, e não fingir, como Wittgenstein, que é um sem sentido importante” (Ramsey, “Philosophy” (1929), in Philosophical Papers, 1990). Ora bem, eu não penso que a filosofia é destituída de sentido, mas penso que inclui levar a sério o facto do sem sentido e dizer por que razão é destituído de sentido. Para isso, contudo, precisamos de achar graça às piadas como a do Ninguém, e de distinguir a atitude de as levar a sério da atitude de fingir que são importantes. Mas nem todos os filósofos acham graça. Receio que alguns não tenham o sentido de humor sério, nem uma sensibilidade especial ao que não tem sentido, de que a boa filosofia precisa. E isso é um defeito muito sério. Pois sem uma sensibilidade especial ao que não tem sentido, os filósofos correm um risco muito real de dizerem eles próprios coisas sem sentido, e (ao contrário de Lewis Carroll) de se persuadirem a si mesmos e aos outros de que se trata de um sem sentido importante.

Nada disto teria muita importância se a filosofia fosse lida e avaliada apenas por outros filósofos, como acontece com a matemática e os matemáticos que, em termos gerais, conseguem perceber quando os seus colegas estão a dizer coisas sem sentido. Mas não o é, ainda que talvez o devesse ser, dado que a filosofia, como a matemática, não é realmente um espectáculo que atraia mais espectadores do que praticantes — ou seja, a filosofia não é como a poesia, por exemplo, em que não temos de ser poetas para ajuizar a poesia, ao passo que precisamos de ser um filósofo para ajuizar a filosofia, tal como temos de ser matemáticos para ajuizar a matemática. É claro que a filosofia, como a matemática, é lida por pessoas que lhe são estranhas, que não querem avaliá-la, mas antes confiar nela e usá-la, tal como os físicos usam a matemática. Mas não há muitas pessoas estranhas à filosofia que a queiram para fazer física; na sua maior parte, querem que a filosofia forneça uma espécie de substituto secular para a religião. Por outras palavras, querem que os seus filósofos sejam gurus. E a última coisa que os discípulos querem dos gurus é que tenham sentido de humor; o sentido de humor é contrário ao ar de autoridade que faz os gurus atrair discípulos. Assim, quando os gurus filosóficos levantam poeira ao dizerem coisas sem sentido que parecem importantes, os seus discípulos, longe de se queixarem de que não podem ver, ficam ainda mais impressionados pela obscuridade profunda da visão oferecida. Em filosofia, portanto, tal como na religião e na medicina, um público crédulo dará muitas vezes fama e fortuna aos adoradores de mistérios.

Que tem tudo isto a ver com a filosofia analítica? Bem, para usar a metáfora de Berkeley, a análise filosófica é, como até o meu exemplo trivial ilustra, uma espécie de sistema de rega aérea, cuja função é lavar o pó conceptual que obscurece a nossa perspectiva do mundo. Este é na verdade um dos seus objectivos principais: detectar e dissipar os mistérios quiméricos que o sem sentido gera, como o pequeno mistério de Lewis Carroll sobre Ninguém, para que os verdadeiros mistérios do mundo possam ser mais claramente vistos e desse modo — espera-se — mais bem apreciados e compreendidos.

Neste sentido, a boa filosofia sempre foi analítica. A análise é mais uma questão de técnica do que doutrina, e é tão óbvia em Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Leibniz, Kant e Mill como em qualquer filósofo analítico moderno. Se há algo que distingue a chamada filosofia analítica, é que não se limita a usar técnicas analíticas, preocupando-se também explicitamente em desenvolvê-las e avaliá-las: não, é claro, como fins em si, mas como meios para a compreensão filosófica. Mas não, é claro, como o único meio, dado que um analista precisa sempre de material não analítico para analisar. A análise não pode fornecer uma filosofia completa por si, tal como — por exemplo — a democracia não pode fornecer uma política completa: porque, como é óbvio, aceitar o princípio do governo da maioria não nos diz em quem ou no que votar, ou porquê. Nenhum democrata político, por outras palavras, pode ser apenas um democrata; e do mesmo modo, nenhum analista filosófico pode ser apenas um analista. Isto não é negar, é claro, a importância da análise, nem a importância da democracia; nem negar que pode entrar em conflito com o sem sentido filosófico (como o ser de Ninguém), tal como a democracia pode entrar em conflito com o sem sentido político (como o estado de partido único).

Mas ao passo que toda a gente pode sentir que a democracia é importante, e pode mais ou menos ver porquê, é menos óbvio para não filósofos por que razão a análise filosófica é importante. Se a filosofia em geral não é um desporto que atrai mais espectadores do que praticantes, o que pode a filosofia analítica em particular oferecer ao resto da sociedade? Bem, eu poderia dizer, para começar, que oferece, porque exige e encoraja, um temperamento socialmente desejável. Ter sensibilidade ao destituído de sentido não é um ponto forte só na filosofia. O sentido de humor, e portanto das proporções, é um antídoto poderoso ao fanatismo político e religioso. Uma insistência na compreensão discursiva explicita onde esta pode ser alcançada, por contraste com intimações obscuras à argúcia inefável, é um grande dissuasor de todos os tipos de charlatanismo. Um comprometimento com a verdade, e portanto com a fundamentação das nossas crenças em indícios e não no sonhar alto (por mais elevados que sejam os sentimentos), é essencial não apenas para a boa ciência, mas para todas as tentativas sérias de adquirir conhecimento e compreensão sobre seja o que for, incluindo nós mesmos. E a sensibilidade à razão que a análise gratifica ajuda a combater uma tendência recorrente para elevar a sensibilidade às custas da razão, como se estas fossem opostas, e como se não precisássemos de ambas.

A sociedade, contudo, não está apenas em dívida para com o temperamento que a filosofia analítica promove. Também os resultados da análise tiveram muitos usos fora da própria filosofia, apesar de eu não desejar exagerá-los nem aceitar que fornecem a sua justificação principal: a filosofia, como a matemática, tem um valor próprio, independente das suas aplicações. Mesmo assim, essas aplicações são realmente extraordinárias: da invenção dos computadores (com base em análises dos conceitos de demonstração e verdade matemática) aos debates sobre o aborto, que dependem dos conceitos de vida e de humanidade, cuja análise é demasiado importante para ser deixada a pessoas que têm objectivos religiosos particulares (ou anti-religiosos).

Mas além de tudo isto penso que a filosofia analítica serve a sociedade mais evidentemente quando aumenta a nossa compreensão clarificando conceitos que dizem respeito a toda a gente, sejam ou não filósofos.

D. H. Mellor
Matters of Metaphysics (Cambridge University Press, 1991), pp. 1–4.
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ISSN 1749-8457