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Crítica
1 de Janeiro de 1998   História da filosofia

O paradoxo da investigação de Ménon

Pedro Madeira

O paradoxo da investigação de Ménon surge no diálogo platónico com o mesmo nome. Ménon e Sócrates estão a discutir sobre a virtude; a dada altura, Ménon diz:

“Como é que podes tentar descobrir o que isso [a virtude] é, Sócrates, quando não fazes a mínima ideia do que isso seja? Como é que podes ter por objectivo descobrir algo sobre que nada sabes? E, se calhasses a encontrá-la, como é que saberias que esta era a coisa que não sabias?” (80d5-8)

Nesta passagem, Ménon levanta dois problemas: quando não sabemos o que algo é, 1) como conduzimos a nossa procura (problema de procedimento)? E 2) como sabemos que essa procura deu resultados (problema de reconhecimento)?

Logo a seguir, Sócrates constrói uma versão argumentativa do paradoxo da investigação de Ménon:

“Estou a ver o que estás a dizer, Ménon. Apercebes-te do argumento polémico que estás a apresentar: que um homem não pode inquirir nem acerca das coisas que sabe, nem das que não sabe? Ele não pode inquirir acerca do que sabe — como já o sabe, não precisa de o fazer — nem do que não sabe — porque, nesse caso, não sabe o que procurar”. (80e1–5)

Em termos formais, o argumento de Sócrates ficava como se segue, sendo X o objecto da nossa investigação (X pode ser qualquer coisa):

  1. Ou conhecemos X, ou não conhecemos X.
  2. Se conhecemos X, então não podemos inquirir acerca de X.
  3. Se não conhecemos X, então não podemos inquirir acerca de X.
  4. Logo, é impossível inquirir acerca de X.

A premissa 1 não levanta grandes problemas. O importante será a forma como analisarmos as premissas 2 e 3. Vamos primeiro à 2. Ela parece ter subjacente aquilo a que podemos chamar uma concepção ampla do conhecimento, porque parece pressupor que “conhecer X” significa “saber tudo o que há para saber acerca de X” — lembremo-nos do que Sócrates diz: “Ele não pode inquirir acerca do que sabe — como já o sabe, não precisa de o fazer”. Se interpretarmos o termo “conhecer” na premissa 2 deste modo, então ela é verdadeira, porque é mesmo impossível descobrir-se mais coisas acerca de algo sobre que já se sabe tudo. Se um especialista vem a público dizer que todos os malefícios do tabaco em fumadores passivos estão especificados num estudo recente que ele publicou, então que diríamos se alguém perguntasse a esse médico se o tal estudo especificava mesmo tudo? Neste caso, não se estaria a dizer que, muito embora o médico já soubesse tudo... ainda havia algo que lhe faltava saber. Isso não faria sentido. A objecção procurava era questionar se era mesmo verdade que o médico havia especificado todos os casos possíveis.

Já analisámos a premissa 2; passemos agora à premissa 3. Tendo em conta a interpretação que fizemos da premissa 2, a premissa 3 tem que ser lida assim: se não sabemos tudo o que há para saber sobre X, então não podemos inquirir acerca de X. Parece haver algo de estranho acerca desta interpretação, não é? Então façamos agora uma pausa e pensemos sobre a definição de conhecimento que avançámos para interpretar a premissa 2. De acordo com essa definição, mesmo se eu souber 98% daquilo que há para saber sobre X, ainda assim não conheço X. Portanto, o que a premissa 3 nos diz é isto: aponta para um médico que saiba de 50% dos malefícios do tabaco em não fumadores; agora aponta para outro que saiba de 25%; e podes apontar também para um leigo que não saiba absolutamente nada relativamente a este assunto.

(As percentagens são, até certo ponto, arbitrárias; podíamos ter escolhido outras quaisquer de 0 a 99,999999... — só não podíamos ter escolhido 100 porque, nesse caso, de acordo com a definição ampla de conhecimento que usámos na segunda premissa e que estamos a querer usar novamente na terceira premissa, poder-se-ia dizer que o médico conhecia os malefícios do tabaco em não fumadores; e nós não queremos isso, porque a segunda premissa fala-nos de um caso em que não há conhecimento.)

Se tentarmos usar a concepção ampla do conhecimento para interpretar a terceira premissa, o resultado será este: qualquer desses médicos para que estejas a apontar não poderá vir a saber mais do que já sabe (lembremo-nos de que a interpretação que propusemos para a premissa 3 foi: “se não sabemos tudo o que há para saber sobre X, então não podemos inquirir acerca de X”). E não nos esqueçamos de que este argumento não tem quaisquer restrições sobre o objecto da nossa investigação (X pode ser qualquer coisa), pelo que o que esta premissa nos diria, verdadeiramente, é que é impossível sabermos mais do que aquilo que já sabemos neste preciso momento. (Esta interpretação da terceira premissa tem, por si só, consequências curiosas. Mas vou pôr isso de parte por agora e virar-me para a análise do argumento no seu conjunto.) As chatices começam agora. É desta forma que Sócrates enuncia a terceira premissa: “Ele não pode inquirir acerca [...] do que não sabe — porque, nesse caso, não sabe o que procurar”. Portanto, Sócrates parece estar a querer dizer que só quer que apontemos para pessoas que nada sabem acerca dos malefícios do tabaco em não fumadores. Podemos ver a coisa deste modo:

Imagine que está à procura do tesouro secreto de Nassimba, uma cidade lendária que fica algures na Rodésia. Eu pergunto-lhe se sabe alguma coisa acerca dessa cidade e do tesouro que, supostamente, alberga. Você diz-me que não, que só ouviu falar de umas lendas vagas cerca do assunto e que estudou o dialecto que, nesse tempo, se supõe que era falado — nada mais. Em jeito de desânimo, você diz-me que está completamente às escuras na sua procura. Mas eu tenho que lhe dar uma palmadinha nas costas para o animar: é que você, ao menos, sabe do que está à procura! Sabe que é para a Rodésia que deve ir (isto dá conta do problema de procedimento de que Ménon falava) e, como sabe esse dialecto que eles falavam, não lhe será difícil encontrar quaisquer inscrições em pedra, madeira, ou qualquer outro material, em que esteja escrito que aquela é a cidade secreta de Nassimba (e isto dá conta do problema de reconhecimento de que Ménon falava)! Portanto, não está completamente às escuras, pelo que não é a você que Sócrates se estava a referir. Sócrates devia ter em mente um caso extremo como este: agora eu digo-lhe que tem que ir à procura do Chibusso. O que é isso? Não sei, apeteceu-me dar-lhe este nome completamente arbitrário. Onde está? Se é que existe (porque eu não lhe dou quaisquer garantias de que exista! Se calhar estou a mandá-lo ir à procura de Deus ou do número 11), então pode estar em qualquer sítio do universo. Rica ajuda que lhe dei, hã?

Mas é mesmo num caso deste tipo que Sócrates está a pensar. Se ainda houvesse dúvidas, pense-se naquilo que Ménon disse e que Sócrates tentou pôr sob a forma de um argumento: “Como podes tentar descobrir o que isso [a virtude] é, Sócrates, quando não fazes a mínima ideia do que isso seja? Como podes ter por objectivo descobrir algo sobre o qual nada sabes?” [itálico meu] Isto significa que não podemos usar uma concepção ampla de conhecimento para interpretar a terceira premissa. Vamos ter de fazer uso de uma concepção estrita de conhecimento. De acordo com esta concepção, “conhecer X” é definido como “saber alguma coisa sobre X” (0,01% já chega). Como esta concepção é menos exigente do que a anterior, a terceira premissa já funciona: se não conhecemos X (isto é, “se não sabemos absolutamente nada sobre X”, porque se soubéssemos nem que fosse só uma migalha percentual, já podíamos dizer que conhecíamos X) então não podemos inquirir acerca de X.

Isto leva-nos a duas conclusões: a) o paradoxo que Sócrates tenta apresentar tem a espinha partida, por assim dizer, já que o significado de “conhecer” muda da segunda para a terceira premissa e b) o argumento é omisso em relação a uma situação fundamental: aquela em que não somos nem completamente ignorantes, nem completamente sábios. Sócrates está em maus lençóis! Nesta altura, podíamos tentar dar-lhe uma ajudinha (fazê-lo não é heresia nem desrespeito, como os continentais parecem sugerir). Tal como está, o argumento é inválido, isto é, não é lícito inferir a conclusão das premissas. Só seria válido se o puséssemos mais ou menos assim, sendo X o objecto da nossa investigação (X pode ser qualquer coisa):

Ou a) já sabemos tudo o que há para saber sobre X, ou b) não sabemos absolutamente nada sobre X, ou c) sabemos alguma coisa sobre X, mas não tudo.

  1. Se já sabemos tudo o que há para saber sobre X, então não podemos inquirir acerca de X.
  2. Se não sabemos absolutamente nada sobre X, então não podemos inquirir acerca de X.
  3. Se sabemos alguma coisa sobre X, mas não tudo, então não podemos inquirir acerca de X.
  4. Logo, inquirir acerca de X é impossível.

Desta maneira, o argumento já fica válido (independentemente da forma como definirmos “conhecimento”), mas as premissas 3 e 4 fazem afirmações tão fortes que acabam por arcar com a plausibilidade do argumento. E isto faz Sócrates voltar à estaca zero, porque parece que a única coisa que conseguimos fazer foi expor, de forma clara, a posição dele — mas agora as premissas 3 e 4 precisam de muito trabalho de casa para ficarem minimamente atraentes. A premissa 3 era a famigerada premissa do argumento na sua fase inicial que eu atrás disse que iria analisar depois — e à qual, agora, também podemos acrescentar a premissa 4. O problema que estas premissas levantam para Sócrates é o seguinte: se inquirir acerca de X é impossível, então como é que ele explica que nós saibamos o que quer que seja? Ele está bem ciente disto e diz que a resposta é que tudo o que sabemos agora já o sabíamos antes de nascer — esta é a sua famosa teoria de que aprender não é senão recordar. Mas isto não o leva a lado nenhum, porque podemos relançar o problema: então e como é que a nossa alma pôde vir a inquirir sobre o que quer que fosse lá no sítio onde estava antes de entrar no nosso corpo? Sócrates já não nos disse que inquirir acerca do que quer que seja é impossível em todos os casos? Portanto, as coisas parecem difíceis para o lado do Sócrates. E o mais provável é que ele não consiga dar resposta a isto.

Pedro Madeira

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ISSN 1749-8457