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Crítica
29 de Dezembro de 2007   Filosofia

A filosofia como gramática conceptual

Peter F. Strawson
Tradução de Pedro Santos

Quando a primeira gramática de espanhol ou, melhor dizendo, de castelhano, foi apresentada à rainha Isabel de Castela, a sua reacção foi perguntar para que servia ela. A resposta dada em nome do autor foi de carácter histórico, descrevendo a língua como um instrumento do Império — o que podemos considerar irrelevante para os nossos propósitos. O que não é irrelevante é o significado da pergunta. Pois é óbvio que a gramática era, num certo sentido, completamente inútil para os falantes fluentes do castelhano. Num certo sentido, já a conheciam. Falavam castelhano correctamente pela simples razão de o castelhano correcto ser, por definição, aquilo que falavam. A gramática não estabeleceu o padrão de correcção para as frases que proferiam; pelo contrário, eram as frases que proferiam que estabeleciam o padrão de correcção da gramática. Contudo, embora num certo sentido já soubessem a gramática da sua língua, noutro sentido não sabiam.

Se alguém tivesse pedido a Isabel que enunciasse, de modo completamente sistemático, uma arquitectura de regras ou princípios à luz da qual se pudesse decidir, relativamente a qualquer sequência de palavras castelhanas, se tal sequência constituía uma frase gramaticalmente completa e correcta, ela não saberia o que dizer. A sua prática de construir frases do castelhano, bem como a dos seus cortesãos, mostrava que todos obedeciam, num certo sentido, a um tal sistema de regras ou princípios. Num certo sentido, a sua prática regia-se por essas regras ou princípios. Mas do facto de obedecerem sem esforço às regras não se segue, de todo, que fossem capazes, com ou sem esforço, de enunciá-las, de dizer em que consistiam.

A conclusão que podemos tirar desta história é que ser capaz de fazer algo — neste caso falar gramaticalmente — é muito diferente de ser capaz de dizer como é que isso se faz; e que a primeira capacidade está longe de implicar a segunda. O domínio de uma certa prática não implica um domínio explícito (embora possa por vezes conceder-se que implica um domínio implícito) da teoria dessa prática. As gramáticas foram dominadas implicitamente muito antes de terem sido sequer explicitadas por escrito; e as gramáticas implícitas são necessárias à capacidade de falar e portanto necessárias a todo o pensamento, excepto o mais rudimentar. Mas claro que os seres humanos racionais, capazes de pensamento complexo, têm de ter um domínio implícito de mais do que gramáticas; ou melhor, o seu domínio implícito de uma gramática combina-se com um domínio implícito de todos os conceitos e de todas as ideias gerais que a sua linguagem exprime e que utilizam quando pensam. Nos nossos intercâmbios uns com os outros e com o mundo utilizamos um equipamento conceptual extraordinariamente rico, complexo e sofisticado; mas não aprendemos, nem poderíamos aprender, a dominar as peças deste formidável equipamento aprendendo a teoria do seu emprego.

Assim, por exemplo, sabemos perfeitamente, em certo sentido, o que é conhecer muito antes de ouvir falar (se é que chegamos a ouvir falar) de Teoria do Conhecimento. Sabemos o que é dizer a verdade sem provavelmente suspeitar que haja coisas como Teorias da Verdade. Aprendemos a usar correctamente palavras ou expressões como “o mesmo”, “real”, “existe” sem estar a par dos problemas filosóficos da Identidade, da Realidade e da Existência. Do mesmo modo, aprendemos a utilizar um vasto e heterogéneo conjunto de noções: éticas (bem, mal, correcto, incorrecto, castigo), conceitos temporais e espaciais, as ideias de causalidade e explicação, ideias de emoções (tristeza, ira, medo, alegria), de operações mentais de vários tipos (pensar, acreditar, duvidar, recordar, esperar, imaginar), de percepção e de experiência sensorial (ver, ouvir, tocar), categorias inteiras de conceitos classificatórios relativos a tipos de pessoas, animais, plantas, objectos da natureza, processos, acontecimentos, artefactos humanos, instituições e funções; e ainda as propriedades, qualidades, acções e afecções de todas estas coisas. Claro que aprendemos de diversos modos as palavras que exprimem estes conceitos; mas aprendemo-las em grande medida sem o auxílio daquilo a que se poderia chamar uma instrução teórica. Não tomamos contacto com elas como resultado de alguém nos informar qual é o seu lugar numa teoria geral dos conceitos. A instrução que recebemos é radicalmente prática e sobretudo baseada em exemplos. Em geral, aprendemos copiando e sendo ocasionalmente corrigidos; do mesmo modo, as crianças aprendem a falar gramaticalmente antes de ouvirem sequer falar em gramáticas.

Continuemos com o exemplo. Tal como podemos ter um domínio prático da gramática da nossa língua materna, assim também temos um domínio prático do nosso equipamento conceptual. Sabemos como manuseá-lo, como o usar no pensamento e na linguagem. Mas tal como o domínio prático da gramática de modo nenhum implica a capacidade de enunciar sistematicamente o conteúdo das regras gramaticais que aplicamos sem dar por isso, assim também o domínio prático do nosso equipamento conceptual de modo nenhum implica que estejamos de posse de uma compreensão clara e explícita dos princípios que regem o uso que fazemos deles — da teoria da nossa prática. Assim (para concluir a analogia), tal como o gramático, e especialmente o gramático moderno típico, se esforça por produzir uma análise sistemática da estrutura das regras a que obedecemos sem dar por isso quando falamos gramaticalmente, também o filósofo procura produzir uma análise sistemática da estrutura conceptual geral da qual, como mostra a nossa prática diária, temos um domínio tácito e inconsciente.

Num certo sentido — para repetir o exemplo — compreendemos o conceito de conhecer, sabemos o que é conhecer ou o que significa a palavra “conhecer”, uma vez que sabemos usar essa palavra correctamente. Num certo sentido, compreendemos o conceito de identidade pessoal, […] sabemos o que as palavras “a mesma pessoa” significam, uma vez que, na prática, sabemos como aplicar o conceito; e se, algumas vezes, temos dificuldade em decidir questões de identidade, trata-se de dificuldades de aplicabilidade em casos específicos, de carácter legal, e não dificuldades conceptuais. Mas, noutro sentido, é talvez verdade que não compreendemos os conceitos, que não sabemos o que é a identidade pessoal, nem sabemos dizer o que significa a palavra “conhecer”. Dominámos uma prática, mas não somos capazes de explicitar a teoria da nossa prática. Sabemos as regras porque as seguimos, e contudo não as sabemos porque não somos capazes de dizer em que consistem. Em contraste com a facilidade e o rigor do nosso uso estão as hesitações e os erros que caracterizam as nossas primeiras tentativas de descrever e explicar o nosso uso.

[…]

Poderia dizer-se que é falso que não sejamos capazes de dizer, corriqueiramente, em que consistem os nossos conceitos, e qual o significado das nossas palavras; damos e recebemos frequentemente instrução justamente deste tipo — e não é isso que faz daqueles que dão ou recebem essa instrução filósofos ou estudantes de filosofia. Parte da resposta a esta objecção é perguntar: quem é que lhe ensinou, leitor, o que significa na sua língua a palavra “mesmo”, ou “saber”, ou “se”, ou “significado”, ou “existe”, ou a expressão “a razão pela qual”? E a quem é que o leitor já explicou o que estas palavras ou expressões significam? De modo que temos aqui um conjunto de conceitos basilares — identidade, conhecimento, significado, existência, explicação — que aprendemos a manusear com sucesso, mas que nunca nos foram ensinados através de um processo de instrução explícita. O resto da resposta é isto: toda a instrução explícita acerca destes significados que de facto recebemos e damos corriqueiramente é estritamente prática nos seus objectivos e efeitos. Aquilo que se pretende com ela é fazer com que sejamos capazes de compreender o modo como as expressões correspondentes são usadas, e de usá-las nós próprios. Tal instrução pressupõe um domínio prévio de uma estrutura conceptual existente e usa quaisquer técnicas que estejam à mão para a modificar e enriquecer; ao passo que os princípios, a estrutura e as explicações que o filósofo analítico procura não são alcançáveis por nenhuma destas técnicas exclusivamente práticas; pois elas são precisamente os princípios, a estrutura e as explicações cuja compreensão implícita é pressuposta pelo uso delas.

P. F. Strawson
Analysis and Metaphysics (Oxford University Press, 1992), pp. 5-8.
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ISSN 1749-8457