Existe — ou existiu — filosofia na China? A pergunta, aparentemente tola, guarda uma profunda relação com o problema da aceitação do pensamento oriental pelo Ocidente. Filosofia, religião, superstição — em que categoria poderíamos enquadrar o pensamento chinês, em suas múltiplas manifestações? E será, também, que estas categorias são apropriadas para avaliá-lo? A discussão sobre as características do pensar chinês tem aumentado nos últimos anos, principalmente pelas reticências da academia em aceitar uma “filosofia” que pouco se enquadra aos moldes gregos, e que, no entanto, tem (no mínimo) 3000 anos de existência e continua a se desenvolver com grande força. Como, então, situar-se nesta questão? Neste sucinto texto, gostaria apenas de levantar alguns pontos concernentes ao assunto, para que o leitor se inteire um pouco mais sobre este problema.
Há mais de um século, alguns autores ocidentais têm questionado a tendência natural de associar as formas de pensamento asiático ao que chamamos Filosofia por tratar-se de um termo grego, que teoricamente não teria correspondente na língua chinesa ou indiana (para entender a questão, veja Panikkar, 1996 e Cheng, 2003). Somou-se a isso o forte movimento racista e colonialista do século XIX, que tratou de encarar as formas de pensamento orientais como simples manifestações religiosas (Shaw, 1978), desprovidas de profundidade conceitual. No entanto, este mesmo discurso esbarrava nas contradições apresentadas pela própria noção de religião (essencialmente cristã) que o Ocidente possuía, o que terminava por gerar uma indecisão profunda sobre as formas de encarar o saber destas civilizações.
O desconhecimento das línguas orientais surgiu aí como uma tábua salvadora para estes autores preconceituosos, que não podiam acreditar que o Oriente pudesse ter produzido algo tão profundo quanto à filosofia grega ou latina (ou seja, nada mais fácil que negar um pensamento como o chinês, por exemplo, sem ao menos ter lido um texto sequer), embora desde o século XVIII algumas vozes se levantassem contra isso (como foi o caso de Voltaire e Leibniz).
Com a dissensão das relações culturais entre o Ocidente e a Ásia ao longo do século XX, tais questões foram flexibilizadas, embora sem uma resolução definitiva. Na década de 40, alguns livros e revistas assumiram o termo Filosofia como algo abrangente, que englobava toda e qualquer forma de pensar (como a revista Philosophy in East and West, publicada no Havaí, e mundialmente reconhecida pelo seu longo trabalho intercultural entre oriente e ocidente). Mas ainda assim, um problema persistia: o fato de que toda e qualquer forma de pensamento asiática, africana e oceânica só era considerada como Filosofia se fosse lida através das conceituações tradicionais do Ocidente, e não em suas formas autênticas (Chan, 1978). Ainda existia a tendência de se aglutinar todas as formas de pensamento oriental como se fossem representações de um sistema único, movimento que infelizmente persiste. É o caso muito natural daquele que pergunta “qual a resposta da filosofia oriental para tal questão?”, ou “o que os chineses acham disso?”. Tal prática representa rematado desconhecimento quanto à diversidade das formas de pensamento no Oriente, e por isso mesmo, não raro ainda encontramos especialistas com uma dificuldade incrível de fazer distinções sobre o tema e evitar preconceitos e estereótipos.
Recentemente, autores orientais como A. Coomaraswamy, R. Panikkar, E. Said, entre outros, se voltaram para o tema, questionando a legitimidade desta situação. Em teoria, o reconhecimento do pensamento oriental como Filosofia significaria, ainda, a sujeição destas formas de saber a uma hierarquia cultural que toma a terminologia grega como referência para discussão. No entanto, hoje há um certo consenso de que o aprendizado de todo e qualquer sistema filosófico leva algum tempo, exigindo um certo conhecimento da língua empregada pelo autor (ou documento) para o domínio do mesmo. Desta forma, o emprego da terminologia Filosofia para o pensamento oriental acabou sendo aceito (por todos, tanto asiáticos como ocidentais) para simplificar o assunto, mas com ressalvas oportunas. Na China, uma expressão composta é utilizada, atualmente, para corresponder à palavra Filosofia (zhe xue, que significa Estudar com sagacidade, com determinação, com sabedoria — Wu, 1998).
Podemos considerar o Budismo uma religião, tendo em vista que ele comporta em sua estrutura sistemas de crença tão distintas como o ateísmo e politeísmo? Ou o Confucionismo, que foi eleito como religião estatal na China imperial, apesar de pregar a liberdade de culto e de não possuir qualquer espécie de sacerdócio, propondo-se a existir apenas como um conjunto de regras morais, e não religiosas? Assim sendo, elas são filosofias, e não religiões? O problema que se insere aqui é simples: a idéia de Religião que usualmente empregamos é aquela derivada do Judeo-Cristianismo, com uma crença vinculada a um sistema metafísico, e a presença de elementos ditos “clericais”. Quando nos deparamos com situações complexas como a do movimento religioso budista ou do Confucionismo, o emprego da idéia de “religião” ou “filosofia” tem sido utilizada, geralmente, como detrator, e não esclarecedor. Logo, quando um é “religião”, termina por não ser “filosofia”, e vice-versa. Fica patente que tal dubiedade perversa somente é aplicada a sistemas religiosos e filosóficos que não seguem nossas regras gerais; caso contrário, poderíamos nos perguntar se São Tomás de Aquino ou Kant foram menos religiosos apenas porque foram filósofos. É necessário, portanto, que esclareçamos como queremos abordar estes sistemas culturais asiáticos, posto que muitos fundem elementos diversos de filosofia, religião e história, com aplicações e sentidos próprios que podem — ou não — aproximar-se dos nossos.
Como vimos, esta questão — por incrível que pareça — ainda permanece atual. O problema é: podemos considerar os sistemas de pensamento oriental como Filosofia? São vários os argumentos: 1) o termo se refere a uma tradição ocidental, ou seja, é excludente; 2) os temas principais da Filosofia são diferentes dos do pensamento oriental e 3) os métodos de discussão são diferentes. Foucault já havia criticado com veemência a idéia dos “conceitos únicos” na academia. Quando perguntando sobre sua opinião em relação a determinado tema, ele afirmou que “primeiro, a academia deveria definir a sua idéia sobre o tal conceito, e depois ela poderia ser discutida”. A avaliação é mais do que pertinente para o caso do pensamento oriental.
Em primeiro lugar, a tradição filosófica ocidental não foi feita somente daquilo produzido na Grécia ou em Roma. Ela é fruto, justamente, do trabalho de diversos pesquisadores espalhados pelo mundo, que trouxeram suas contribuições, enriquecendo-a. Como podemos, portanto, falar em “tradição ocidental”? Tradição essa, aliás, que foi resgatada por filósofos muçulmanos como Averróis e Avicena, que não eram ocidentais. E hoje tem crescido bastante a idéia do intercâmbio cultural entre gregos e orientais (incluindo indianos) na época de formação da Filosofia grega, o que desfaz a idéia de exclusividade desde o início.O segundo argumento, dos temas filosóficos, é totalmente impreciso. A Filosofia ocidental inferiu vários novos tópicos de discussão ao longo de seu desenvolvimento histórico, o que invalida a idéia de “perenidade conceitual”; além disso, alguns temas semelhantes aos ocidentais foram discutidos no Oriente, mas os resultados foram diferentes. Isso invalida, portanto, o raciocínio filosófico asiático? O problema é que os temas filosóficos não surgiram, na Ásia, na mesma ordem que na Europa. A questão da natureza humana, por exemplo, discutida por Hobbes, Locke e Rousseau surgiu, na China, em torno do século 4 a.C., nas mãos de Mengzi e Xunzi. No entanto, certas questões surgiram antes no Ocidente que no Oriente, e este ponto só vêm a confirmar que as culturas não possuem o monopólio do saber, posto que elas são capazes de inferir temáticas semelhantes em circunstâncias diferentes.
Quanto à questão dos métodos de discussão, resta-nos questionar se existe somente um método filosófico no Ocidente que comprove a sua total diferença em relação às formas de trabalho orientais. As práticas do pensar filosófico estão presentes, praticamente, em todos os autores asiáticos. A ênfase com que são utilizadas, porém, é bastante variável. A apresentação dos textos filosóficos orientais também é bem diversa, o que a torna relativamente singular em relação aos trabalhos ocidentais. Isso descaracteriza, por conseguinte, o pensamento oriental como Filosofia?
Acredito que, por todos estes motivos, o pensamento oriental poderia ser chamado de Filosofia. Mas agora, faço uma consideração última que julgo ser bastante significativa: e por que razão o pensamento oriental tem de ser Filosofia? A luta de alguns especialistas em comprovar que o saber asiático merece respeito foi mais do que eficaz em comprovar nosso desconhecimento acerca do mesmo. No entanto, precisamos submeter estas formas de pensar a idéia que temos de Filosofia para considerá-los importantes? Ou seja, eles só podem ser objeto de estudo se passarem pelo crivo dos conceitos ocidentais? Usualmente, os autores despidos de maiores preconceitos têm usado o termo Filosofia para designar estes saberes, sem grandes complicações. No entanto, há uma grande resistência nos meios acadêmicos em reconhecer a legitimidade dos mesmos, seja por sua tradição histórica, ou por seus conteúdos. Também sobrevive o hábito de exigir respostas do “pensamento oriental” para certas questões como se ele fosse um único sistema filosófico, uma entidade que permeia o pensar de todo o continente asiático. Um breve olhar sobre qualquer bom manual do assunto já nos permite observar, no entanto, a multiplicidade de escolas e correntes filosóficas que existiram na Índia e na China desde a antiguidade, o que torna tal questionamento praticamente impossível.
Temos, pois, que derrubar muitas barreiras para compreender e aceitar a filosofia asiática com uma legítima forma de saber, conquanto o caso demonstre o como ainda somos carregados de preconceito para lidar com outras formas de cultura que não sejam a nossa: prática que reproduzimos, inclusive, dentro de nossa própria sociedade com outras classes, e que exige uma intensa atenção de nossa parte.
André Bueno