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Crítica
13 de Dezembro de 2006   Filosofia

A ética da crença

Desidério Murcho
The Ethics of Belief and Other Essays
de W. K. Clifford
Prometheus Books, 2006, 140 pp.

“É sempre incorrecto, em qualquer parte e para qualquer pessoa, acreditar seja no que for sem provas suficientes”. Esta é a famosa afirmação de W. K. Clifford (1845–1879) que constitui a mais eloquente expressão da posição hoje conhecida como “evidentialism” em epistemologia ou teoria do conhecimento: a tese de que em nada se deve acreditar sem provas ou indícios. Leitura obrigatória em cursos introdutórios de filosofia da religião, o artigo de Clifford foi publicado originalmente em 1877 e deu origem à famosa resposta de William James, que no artigo “A Vontade de Acreditar” defende, ao invés, uma forma sui generis de fideísmo. O que está em causa é saber se é ou não epistémica ou racionalmente legítimo acreditar em algo a favor do qual não há provas. Clifford defende que não, mas a sua posição é mais subtil do que transparece nas muitas antologias que incluem excertos do seu artigo.

Em primeiro lugar, Clifford procura mostrar demoradamente que a sociedade se baseia num certo grau de confiança mútua, que será impossível sustentar caso saibamos que as outras pessoas gostam de, sem provas, dar largas às suas crenças. Em segundo lugar, Clifford não é como aqueles positivistas menos sagazes que consideram que só a dedução fornece razões para aceitar uma conclusão — o raciocínio não dedutivo em geral (que inclui a indução e o raciocínio por analogia, entre outros) é igualmente uma forma legítima de justificar crenças. Em terceiro lugar, Clifford tem em conta o tipo de crenças causalmente conectadas com o sucesso da acção, com base nas quais William James critica a posição de Clifford. Este é o tipo de “crenças motivacionais”, que nos ajudam a atingir os resultados que pretendemos: um desportista confiante, ou seja, um desportista que acredita sem grandes provas que vai ganhar, tem maior probabilidade de atingir os resultados que pretende do que um desportista que se limita a suspender o juízo sobre a sua possível vitória.

Por “crença”, não se entende neste contexto a crença religiosa em particular, mas qualquer tipo de crença, opinião ou convicção. Mas é verdade que seja o que for que dissermos sobre a crença em geral terá de se aplicar à crença religiosa. Daí que o “evidentialism” seja simultaneamente discutido em epistemologia e em filosofia da religião.

Filósofo e matemático inglês, Clifford foi um dos primeiros epistemólogos evolucionistas. Tentou combinar o apriorismo de Kant com a teoria da evolução de Darwin, defendendo a ideia extravagante de que o que os nossos antepassados tiveram de descobrir a posteriori por tentativa e erro é hoje para nós conhecível a priori. Defendeu igualmente uma versão de idealismo materialista, inspirado pela sua leitura de Espinosa, segundo a qual todas as coisas são modificações dos verdadeiros átomos do universo, que têm uma natureza mental, algo semelhante às mónadas de Leibniz. As suas obras incluem The Common Sense of the Exact Sciences (1946), Lectures and Essays (1879) e Seeing and Thinking (1879).

Esgotado há muito, o seu ensaio foi reeditado pela americana Prometheus, num volume organizado por Timothy Madigan e que além de “A Ética da Crença” inclui “Sobre os Objectivos e Instrumentos do Pensamento Científico”, “Bem e Mal: O Fundamento Científico e a sua Distinção”, “A Ética da Religião” e “A Influência do Declínio da Crença Religiosa na Moralidade”.

Desidério Murcho
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ISSN 1749-8457