A minha contribuição para este colóquio resulta sobretudo da leitura de um livro que foi publicado no ano passado. O livro chama-se The Animal Rights Debate(1) e tem dois autores: um deles é Tom Regan, que dispensa apresentações; o outro é Carl Cohen, um crítico da perspectiva de Regan que se tem destacado como defensor da experimentação animal. Neste livro centrado no problema de saber se os animais têm direitos morais, Cohen e Regan defendem separadamente a sua perspectiva num ensaio; depois cada autor responde ao ensaio do outro. O livro é um dos melhores no seu género, e julgo que constitui mesmo uma excelente introdução às questões éticas sobre o tratamento dos animais, mas nenhuma das perspectivas nele apresentadas me deixou convencido. Vou aqui tentar explicar porquê.
Comecemos pela perspectiva de Cohen. Tal como Regan, Cohen pensa que existem direitos morais e que um ser possuir tais direitos faz uma grande diferença para definir o seu estatuto moral. Mas afirma que só os seres humanos têm direitos — e que todos os seres humanos os têm. Ainda assim, Cohen não coloca os animais totalmente fora do domínio da ética, pois admite que temos em relação a eles algumas obrigações, que na verdade parecem reduzir-se a isto: não devemos fazê-los sofrer injustificadamente. No entanto, na medida em que é claro Cohen parece presumir que praticamente qualquer inflicção de sofrimento é justificável se dela resultar algum benefício para os seres humanos. Embora o sofrimento animal deva ser levado em conta nas nossas deliberações morais, não merece o mesmo peso que o sofrimento humano similar. Cohen não pensa que, para determinar quando é aceitável infligir sofrimento aos animais, temos de apreciar a situação numa perspectiva estritamente imparcial na qual os interesses de todos os envolvidos (sejam eles animais ou seres humanos) estão em pé de igualdade. Ele declara-se especista — e de facto é especista, embora por vezes revele não compreender o significa aceitar o especismo.(2) Mas em seu entender o que faz o sofrimento animal contar menos que o sofrimento humano? A única justificação que encontramos é esta: os interesses dos seres humanos, incluindo o interesse em não sofrer, estão protegidos por direitos, mas os animais não possuem tal protecção decorrente da posse de direitos, pois não os possuem nem os podem possuir. Mas porquê? Por que razão a classe dos que possuem direitos, e que por esse motivo têm um estatuto moral muito superior, coincide exactamente com a classe dos seres humanos? No capítulo “Why Animals Do Not Have Rights”, Cohen tenta dar uma resposta satisfatória a esta pergunta. Infelizmente, em vez de argumentos claramente estruturados encontramos apenas várias considerações vagas e dispersas. Ainda assim, tais considerações não deixam de ser sugestivas, e uma leitura atenta permite identificar três argumentos distintos.(3)
No primeiro argumento, Cohen presume que a origem do conceito de direito na comunidade humana é relevante para determinar quem tem direitos. Ele afirma o seguinte: “Os animais não podem ser portadores de direitos porque o conceito de direito é essencialmente humano; está enraizado no mundo moral humano e só tem força e aplicabilidade nesse mundo” (p. 30). Mais à frente reforça esta ideia quando diz: “os direitos são universalmente humanos, surgem na esfera humana, aplicam-se ao seres humanos em geral” (p. 37). Vale também a pena citar um outro ensaio de Cohen, onde este declara que os seus críticos: “supõem erradamente que os direitos estão ligados a certas capacidades ou sensibilidades individuais identificáveis, e não conseguem ver que os direitos surgem apenas numa comunidade de seres morais, e que por isso há esferas em que os direitos se aplicam e esferas em que não se aplicam”.(4) Se tentarmos tornar explícito o argumento de Cohen, chegaremos a algo como o seguinte:
O argumento da comunidade
- A ideia de direitos só pode surgir numa comunidade de seres morais.
- Logo, a ideia de direitos só pode ser aplicada a membros de uma comunidade de seres morais.
- Pelo menos na Terra, a única comunidade de seres morais é a comunidade humana.
- Logo, pelo menos na Terra, a ideia de direitos só pode ser aplicada a seres humanos.
Há dois grandes problemas neste argumento. Em primeiro lugar, não se pode inferir 2 a partir de 1 sem uma premissa suplementar como esta:
É óbvio que esta premissa tem de ser rejeitada, como podemos constatar tomando como exemplo o conceito de gene: o conceito de gene surge apenas em comunidades de seres racionais, mas é claro que se aplica a muitos seres que não fazem parte de qualquer comunidade desse tipo. Isto mostra que Cohen faz uma confusão lamentável entre as condições de formação de uma ideia e o domínio de objectos a que uma ideia pode ser inteligivelmente aplicada. Se ele pensa que no caso da ideia de direitos morais (por oposição à ideia de gene) as suas condições de formação determinam o domínio de objectos a que esta pode ser aplicada, tem de explicar esta estranha conexão, coisa que não faz.
O outro problema do argumento torna-se manifesto se nele substituirmos “comunidade humana” e “seres humanos” por, respectivamente, “comunidade dos agentes racionais e autónomos” e “agentes racionais e autónomos”. O argumento obtido desta maneira exclui do núcleo central da ética todos os seres humanos que não são racionais ou autónomos. É claro que Cohen não o aceitaria, mas por que razão devemos considerá-lo pior que o seu argumento? Cohen diria que a comunidade relevante para traçar as fronteiras da ética não é a dos seres racionais e autónomos, mas a comunidade humana. Esta ideia, no entanto, tem de ser justificada,
O segundo argumento de Cohen parte da afirmação de que os animais vivem num mundo amoral, isto é, num mundo em que nada é certo ou errado e em que, portanto, não há quaisquer direitos a respeitar: não faz sentido dizer que uma zebra tem o direito de não ser morta por uma leoa, nem que uma leoa tem o direito de matar uma zebra. Mesmo admitindo que alguns animais (estou a pensar nos grandes símios) não vivam num mundo inteiramente amoral, no essencial tudo isto me parece incontroverso. Mas Cohen presume que da amoralidade dos animais se segue que estes não têm direitos. O seu argumento é este:
O argumento da amoralidade
- Os animais vivem num mundo amoral.
- Não podem existir direitos entre aqueles que vivem num mundo amoral.
- Logo, não podem existir direitos entre os animais.
- Logo, os animais não têm direitos que possamos desrespeitar.
Uma vez mais, o argumento só se torna logicamente aceitável com a introdução de uma premissa suplementar, que é esta:
E também uma vez mais a premissa suplementar é falsa, ou pelo menos não deve ser aceite sem uma boa justificação. Além disso, como Regan salienta, uma pessoa como Cohen, que acredita que temos deveres em relação ao animais, não pode aceitar coerentemente o argumento da amoralidade, pois se nele substituirmos as ocorrências de “direitos” por ocorrências de “deveres” — e “desrespeitar” por “infringir” — chegaremos à conclusão de que não temos tais deveres. Vale também a pena observar que, se substituíssemos antes as ocorrências de “animais” por ocorrências de “recém-nascidos humanos”, chegaríamos à conclusão, que Cohen também não quer aceitar, de que os recém-nascidos humanos não têm direitos. Em ambos os casos, o desafio que se coloca a Cohen é explicar por que razão os argumentos obtidos através das substituições são piores que o argumento original.
Examinemos agora o terceiro argumento. Este é talvez o mais importante, até porque quem o aceitar poderá evitar parte das objecções aos outros dois, e surge nesta passagem:
As crianças humanas, tal como os adultos de idade avançada, têm direitos porque são seres humanos. A moralidade é um aspecto essencial da vida humana; todos os seres humanos são criaturas morais, crianças e senis incluídos. Não é estabelecendo a presença de uma certa capacidade específica nesta ou naquela pessoa individual que se atribuem direitos. Esta visão errada resultaria na concessão selectiva de direitos a alguns indivíduos, ficando outros excluídos, e ao cancelamento dos direitos quando a capacidade cessasse. [...] A capacidade de fazer juízos morais que distingue os seres humanos dos animais não é um teste a ser administrado aos seres humanos um por um. As pessoas que, por causa de uma deficiência, são incapazes de desempenhar todas as funções morais naturais nos seres humanos não são por essa razão excluídas da comunidade moral. A distinção crucial é de tipo. Por serem seres de um certo tipo os seres humanos têm direitos lhes pertencem enquanto seres humanos; os seres humanos vivem vidas que serão, foram ou permanecem essencialmente morais. É disparatado supor que os direitos humanos podem flutuar em função da saúde do indivíduo ou dissipar-se com o seu declínio. Os direitos em questão são direitos humanos. Por outro lado, os direitos nunca pertencem aos animais em virtude de estes serem seres de um certo tipo; aquilo que os seres humanos preservam mesmo quando ficam incapacitados, os ratos nunca chegam a possuir. (p. 37)
Este argumento é especista — não estou a dizer isto para afastá-lo liminarmente, mas apenas para caracterizá-lo. E para caracterizá-lo adequadamente é preciso distinguir dois tipos de especismo. O especismo básico é a ideia de que o simples facto de um indivíduo pertencer a uma certa espécie, independentemente de quaisquer outras considerações, é relevante para determinar o seu estatuto moral ou o modo como deve ser tratado. Não é este o tipo de especismo que Cohen subscreve, e ainda bem, porque não se percebe como é que a propriedade de pertencer a uma certa espécie poderia ser em si moralmente relevante. Ao argumento de Cohen subjaz um especismo qualificado. Quem é especista neste sentido pensa que a pertença a uma espécie pode ser importante porque uma tal propriedade, mesmo não sendo em si moralmente relevante, pelo menos no caso dos seres humanos está fortemente correlacionada com propriedades moralmente relevantes. Segundo este ponto de vista, o que nos torna superiores enquanto humanos não é o simples facto de pertencermos à espécie Homo sapiens, mas o facto de existir uma forte correlação entre pertencer a esta espécie e, por exemplo, ter a propriedade de ser racional e autónomo, de ser capaz de fazer juízos morais ou de ter uma vida essencialmente moral. É certo que alguns seres humanos não possuem propriedades como estas, mas como pertencem a um grupo de indivíduos que por norma as possuem devem ser tratados como se também as possuíssem. Parece ser este o tipo de perspectiva que subjaz ao argumento de Cohen, que podemos agora apresentar assim:
O argumento da espécie
- Um indivíduo tem direitos se, e apenas se, é membro de um grupo de indivíduos que por norma têm uma vida moral.
- Todos os seres humanos, e apenas eles, fazem parte de um grupo de indivíduos que por norma têm uma vida moral. (Esse grupo é a espécie Homo sapiens.)
- Logo, todos os seres humanos, e apenas eles, têm direitos.
Podemos questionar a segunda premissa fazendo notar que há grupos mais abrangentes de indivíduos que por norma têm uma vida moral, como o grupo constituído pelos seres humanos e respectivos animais de companhia. Tendo em mente esse grupo, poderíamos construir um argumento semelhante chegando à conclusão de que alguns animais têm direitos, e uma vez mais Cohen teria de explicar por que razão não deveríamos aceitar esse argumento.
O problema principal do argumento, no entanto, reside na primeira premissa. Contra esta premissa podemos, e devemos, defender o individualismo moral: a ideia de que o estatuto moral de um indivíduo é determinado não pela sua pertença a qualquer grupo, mas pelas características que possui enquanto indivíduo. Quem, como qualquer especista (e qualquer racista), rejeita esta ideia presume que devemos tratar um indivíduo não em função das suas características, mas em função das características de outros indivíduos. Este pressuposto tem consequências absurdas. Suponha-se, por exemplo, que os seres humanos da raça x são em geral mais dotados para a matemática que os seres humanos da raça y. João, que é da raça y, candidata-se a um curso de matemática, e nas provas de admissão tem melhor nota que todos os candidatos da raça x. Certamente consideraríamos inaceitável que recusassem a sua admissão dizendo que os membros da raça y são em geral menos dotados para a matemática. Diríamos que o que interessa é aquilo que João sabe de matemática — não aquilo que os da raça de João ou de outras raças sabem de matemática. Nestas circunstâncias julgo que, para permanecermos coerentes, temos de pensar o seguinte: para definir o estatuto moral de um indivíduo devemos ver se ele possui as capacidades ou características consideradas relevantes — não se os membros de um grupo a que ele pertence possuem essas capacidades ou características. Somos assim levados a rejeitar o especismo, mesmo qualificado, e a aceitar o individualismo moral.
Mas talvez o argumento de Cohen possa ser reconstruído de uma maneira individualista. Vejo uma maneira de fazer isso, que é esta:
Está aqui presente um tipo de individualismo muito peculiar, pois tomam-se como relevantes não só as propriedades que um indivíduo efectivamente possui, mas também as propriedades que ele poderá vir a possuir ou já possuiu num momento anterior da sua vida. Este argumento, no entanto, não serve os propósitos de Cohen, pois a segunda premissa é falsa: há seres humanos, como os deficientes mentais profundos, cuja vida não é, nem foi, nem nunca será essencialmente moral.
O fracasso dos argumentos de Cohen deixa-nos sem qualquer razão acreditar que todos os seres humanos, e apenas eles, têm direitos. Não parece pura e simplesmente existir qualquer maneira plausível de excluir do núcleo central da ética todos os animais sem excluir também muitos seres humanos.
Vejamos agora se a perspectiva de Regan nos proporciona um modo satisfatório de traçar as fronteiras da ética. É óbvio que não posso discutir aqui esta perspectiva de uma forma razoavelmente detalhada, mas para o que pretendo basta destacar três dos aspectos principais do pensamento de Regan.
O primeiro desses aspectos é um absolutismo quanto a direitos. No seu longo argumento a favor dos direitos dos animais, Regan examina algumas das teorias morais mais influentes, como o contratualismo ou o utilitarismo, acabando por concluir que a única teoria defensável é aquela que nos diz que há direitos morais, mais precisamente o direito à vida, à integridade corporal e à liberdade. Regan pensa que estes direitos são absolutos: não podemos desrespeitá-los sejam quais for os benefícios em vista.
O individualismo moral é o segundo aspecto da teoria de Regan que importa destacar. Para Regan um ser tem direitos em virtude daquilo que é enquanto indivíduo, e aqui a ideia central que encontramos é a de que uma condição suficiente para um indivíduo ter direitos é ele ser sujeito de uma vida. Quem satisfaz esta condição não se limita a estar vivo: tem uma vida mental unificada, e essa vida pode correr melhor ou pior para si próprio. Neste sentido, são sujeitos de uma vida — e consequentemente têm direitos — não só quase todos os seres humanos, mas também uma grande parte dos animais.
Podemos chamar igualitarismo radical ao terceiro aspecto da teoria de Regan que aqui nos interessa. Aceitar este igualitarismo é pensar que todos os sujeitos de uma vida têm exactamente o mesmo estatuto moral: a vida de uma pessoa adulta tem tanto valor ou merece tanto respeito como a vida de qualquer outro ser que possua direitos, seja ele um cão, um recém-nascido humano, um chimpanzé ou um rato. Entre os que estão dentro das fronteiras da ética, não há quaisquer discriminações a fazer.
Vou agora sugerir que a perspectiva de Regan, mesmo que possa parecer atraente, tem algumas consequências práticas que a tornam extremamente implausível, para não dizer completamente absurda.
Se não estou enganado e a perspectiva de Regan tem pelo menos algumas destas consequências práticas, julgo que nos resta concluir que há nela algo de profundamente errado. Admito, sinceramente, que não sei o que dizer aos simpatizantes de Regan que se revelem dispostos a pagar o preço da coerência aceitando tais consequências. Mas seria interessante ver o que essas pessoas teriam a dizer a alguém que, depois descobrir que sofrerá de Alzheimer dentro de alguns anos, deposita toda a sua esperança em escapar a uma morte humilhante na investigação médica em curso, que envolve a morte de ratos.
Critiquei a perspectiva de Cohen por carecer de uma justificação teórica satisfatória; a de Regan por ter consequências práticas inaceitáveis. Para terminar, gostaria de esboçar aquela que me parece ser a melhor maneira de entender o estatuto moral dos animais. A minha sugestão principal é esta: devemos, contra os especistas como Cohen, subscrever o individualismo moral, mas isto sem aceitar o igualitarismo radical de Regan. Admitamos então que o estatuto moral de um ser, seja qual for a sua espécie, é determinado pelas suas características individuais. Não pelas suas características estritamente biológicas, que em si seguramente não têm relevância moral, mas pelas suas capacidades mentais. A partir daqui podemos defender — como Peter Singer ou mesmo John Stuart Mill — que em geral aqueles seres que têm uma vida mental mais rica ou um nível mais elevado de consciência possuem, por essa razão, mais valor que os seres dotados de uma mente mais elementar. (E importa sublinhar que podemos defender esta ideia sem aceitar o utilitarismo de Singer e Mill.) Num extremo encontramos aqueles seres cuja vida mental quase se resume sensações muito limitadas de dor e prazer, que nem sequer são, presumo, “sujeitos de uma vida” no sentido de Regan; no outro extremo encontramos os seres humanos plenamente conscientes de si, racionais e autónomos — ou seja, as pessoas.
Parece-me que adoptar este tipo de perspectiva é a única maneira de evitar conclusões práticas absurdas sem incorrer no especismo. Podemos pensar, no entanto, que ao adoptá-la somos conduzidos ao elitismo moral e, em última análise, a uma tirania dos mais inteligentes ou algo do género. Podemos pensar, enfim, que ao seguir este caminho acabamos também por chegar a conclusões inaceitáveis. Afinal, não teremos assim que defender, por exemplo, que os deficientes mentais ou as crianças muito jovens têm um estatuto moral inferior ao dos seres humanos adultos sem deficiências mentais? Não necessariamente. Podemos defender que todos os que estão acima de um certo nível — todos os que seres que têm consciência de si, por exemplo — têm direito ao grau mais elevado de protecção moral. Além disso, importa não esquecer que o modo como um ser deve ser tratado não tem de depender apenas do seu estatuto moral. Podemos dizer, por exemplo, que os recém-nascidos ou os seres humanos com deficiências mentais muito profundas, mesmo que tenham um estatuto moral inferior ao dos seres humanos adultos, em virtude daquilo que representam para os que lhe são próximos devem ser tratados com muito mais respeito que os animais com um nível de consciência similar.
Como espero ter deixado claro, há aqui muitas hipóteses para desenvolver e examinar cuidadosamente. A situação é bem mais complexa do que Cohen e Regan presumem: para sabermos como tratar os animais, não basta traçar uma linha que separe quem tem de quem não tem importância moral, e ver depois de que lado estes ficaram.