A discussão da alma (psukhḗ) levada a cabo por Aristóteles na sua obra Sobre a Alma (De Anima) pertence à parte da sua filosofia da natureza que trata das coisas vivas.1 Aristóteles considera a alma um princípio de vida e pensa, portanto, que todas as coisas vivas, incluindo as plantas, têm alma; as criaturas dotadas de mentes são, portanto, um subconjunto próprio das criaturas com almas. Do seu ponto de vista, não há dúvida sobre a existência das almas, mas há espaço para dúvidas e desacordos sobre o género de coisa que serão.
Este ponto aparentemente simples — que nem todas as almas são mentes — deve alertar-nos para não pressupor que a discussão de Aristóteles sobre a alma pretende dar um contributo para a filosofia da mente. Se presumirmos que as suas perguntas são exactamente as mesmas que normalmente consideramos pertencer à filosofia da mente, corremos o risco óbvio de anacronismo. Por outro lado, não é menos perigoso fazer a suposição oposta — que simplesmente porque Aristóteles não se propôs discutir as mentes, nada terá a contribuir para a filosofia da mente. O âmbito mais alargado da sua investigação pode ter como resultado, na verdade, uma perspectiva distinta e esclarecedora sobre questões de filosofia da mente. Antes de abordarmos essa questão, é imperativo ver quais são as perguntas que Aristóteles faz com respeito à alma e como lhes responde. (Vou usar “psíquico” e “psicológico” artificialmente, para corresponder ao uso de “alma” de Aristóteles.)
Apesar destes cuidados sobre a diferença entre mentes e almas, poderá ser útil abordar a discussão de Aristóteles na posse de uma concepção aproximada de possíveis perspectivas sobre a relação entre a mente e o corpo. Algumas perspectivas são as seguintes:
É necessário especificar melhor cada uma destas perspectivas, para mostrar quais são compatíveis, ou não, com qualquer uma das outras.2
Os estudiosos de Aristóteles têm mostrado que estão dispostos a atribuir-lhe várias destas posições:
Pode-se avançar argumentos plausíveis para atribuir cada uma destas perspectivas a Aristóteles. Como explicá-lo? As possíveis respostas incluem o seguinte:
Perante estas dificuldades, alguns intérpretes sugerem que é um erro tentar inserir Aristóteles em qualquer uma das categorias que se desenvolveram na filosofia da mente, por não se poder comparar apropriadamente as suas questões com as questões da filosofia da mente.4
Não concordo com a tese do anacronismo. Espero mostrar que as perspectivas de Aristóteles sobre a alma e o corpo podem ser proveitosamente comparadas com as opções conhecidas dos debates sobre a mente e o corpo, e que uma comparação cuidadosa permite chegar à conclusão razoavelmente definida de que Aristóteles aceita uma posição reconhecivelmente funcionalista.
Neste artigo, tento expor alguns dos problemas tal como Aristóteles os vê, e apresentar algo da sua solução. Dado que esta faz essencialmente apelo à sua teoria metafísica, tenho de apresentar brevemente a parte relevante dessa teoria. Depois de apresentar a sua solução, tento relacioná-la com algumas opções e problemas na filosofia da mente que são bem conhecidos. Nesta discussão introdutória, não posso tentar expor integralmente a teoria de Aristóteles, nem tentar explorar por completo as questões de filosofia da mente; espero acabar por dizer o suficiente para sugerir alguns aspectos interessantes e controversos da sua posição.
No De Anima (DA) I, Aristóteles apresenta as crenças comuns que geralmente se aceita acerca da alma, e critica as tentativas dos seus antecessores para compreendê-la. Aristóteles pensa que concordamos como ponto de partida que a alma é “um certo género de princípio dos animais” (402a6–7). Um “princípio” (ou “origem”, arkhḗ) desempenha um certo papel causal ou explicativo nas coisas das quais é o princípio; e há uma concordância geral quanto ao que é apropriadamente explicado ao referir a alma: “Todos definem a alma por meio de três coisas, poder-se-ia dizer — pelo movimento, pela percepção, e por ser incorpórea” (405b11–12). É fácil, tanto para nós como para os contemporâneos de Aristóteles, concordar quanto a duas destas três características da alma. Se uma coisa se desloca por si, podemos referir algum estado da sua alma (em particular, o desejo) para explicar o seu movimento; e se pensamos que uma coisa tem percepção sensorial, prontamente consideramos que isso é um estado da sua alma.
Mesmo os materialistas reconhecem a crença comum de que a alma é incorpórea, na medida em que a identificam com o menos obviamente corpóreo dos elementos materiais que reconhecem (assim, os atomistas identificam a alma com átomos pequenos e em rápido movimento, 405a3–13). Mas Aristóteles não diz de início quais são as características da alma que supostamente subjazem a esta crença comum. O desenvolvimento do seu argumento explica melhor como devemos interpretar a crença na incorporeidade.
No decurso do De Anima I, Aristóteles critica três pontos de vista sobre a alma e o corpo que são semelhantes a algumas das perspectivas que distinguimos acima.
Entre os antecessores de Aristóteles, a maior parte dos filósofos pré-socráticos da natureza são materialistas que, na expressão de Aristóteles, só reconhecem causas materiais. Pressupõem que para a alma ser a causa do movimento ou da percepção, temos de encontrar o género de material apropriado para estes processos; alguma característica material comum aos processos materiais tem de estar presente em todas as percepções ou movimentos, e só neles. Se o procurarmos, podemos acreditar que aquilo de que a alma é feita tem em si de ser muitíssimo móvel, para provocar movimento, e tem de ser semelhante àquilo de que é feito o mundo exterior que a alma percepciona.
Aristóteles afirma que estas explicações materialistas estão erradas em princípio. Rejeita a tese de Demócrito de que a alma é átomos em movimento rápido, movimento esse que seria a causa do movimento de todo o corpo. Aristóteles responde que “em geral não é deste modo que a alma parece fazer os animais deslocar-se, mas antes por meio de algum género de decisão ou pensamento” (406b17–25). Aristóteles pressupõe que uma explicação puramente materialista não pode atribuir o papel apropriado à decisão e ao pensamento; mas não diz por que razão o pressupõe. Talvez o pressuponha por pensar que a decisão e o pensamento são processos integralmente imateriais, ou por pensar que o seu papel explicativo não se esgota nas propriedades materiais que possam ter. Portanto, Aristóteles poderá estar apenas a rejeitar o materialismo reducionista ou eliminatório, ou poderá estar a ir mais longe e a rejeitar também o materialismo da composição.
As outras objecções ao materialismo resultam de outras características aparentes da alma. Pensamos que, de algum modo, um organismo é unitário porque tem uma alma (410b10–15); e nada de material parece explicar este papel. Pois se identificarmos a alma com a causa do movimento ou da percepção, queremos saber o que faz desse algo e do resto das componentes materiais um organismo unitário; e esse algo que é a causa do movimento e da percepção não responde a essa questão (411b5–14).
Se estas considerações nos levam a duvidar do materialismo, poderão tornar-nos mais receptivos ao dualismo da substância de Platão. Contudo, Aristóteles rejeita esta alternativa platónica ao materialismo. Do seu ponto de vista, o tratamento dualista da alma e do corpo não explica as conexões íntimas entre a alma e o corpo cujas potencialidades põe em acto; logo, como o ponto de vista materialista, não explica a unidade do organismo (407b13–26).
Se rejeitarmos a perspectiva materialista de que a alma é apenas uma substância material, e a perspectiva dualista de que é uma substância integralmente imaterial, podemos inferir que os dois pontos de vista estão errados, porque ambos pressupõem que a alma é um género de substância — quer uma coisa material comum, quer uma coisa imaterial nada comum. Uma perspectiva mais sofisticada sustenta que a alma não é de modo algum uma “coisa”, mas antes algo como uma propriedade ou atributo de uma coisa — um arranjo ou “harmonia” (harmonia) de constituintes materiais (407b27–408a28; cf. Platão, Fédon 85e–86d). Esta teoria reconhece que a alma não tem um carácter material, sem a tratar como uma substância imaterial; e sugere por que razão pensamos que uma coisa é um organismo único por ter uma única alma — tal como a proporção de ingredientes explica a unidade do bolo feito de farinha, água e ovos. Poderá parecer surpreendente, pois, que Aristóteles rejeite esse tipo de teoria (407b27–408a28), e sustente que a alma é uma substância.
Ao levantar objecções a estas três abordagens da alma, Aristóteles sugere que uma quarta abordagem deveria ser possível. Não é preciso rejeitar todos os aspectos das três teorias aparentemente inadequadas; poderemos descobrir que alguns aspectos da teoria materialista, da dualista ou da atributiva são defensáveis, ou que algumas das objecções que lhes são levantadas são menos cogentes do que parecia inicialmente.
Ao apresentar estas três perspectivas, falei de matéria, substância e atributo, sem explicar estes termos apropriadamente. Aristóteles pensa que uma explicação apropriada resolverá o problema que estas três perspectivas levantam, e irá mostrar por que razão são menos irreconciliáveis do que se poderia pensar.
Quando Aristóteles passa em revista as crenças comuns e as teorias anteriores, menciona o conceito de matéria, mas não de forma, que é o correlato aristotélico normal da matéria. Aristóteles pensa que se compreendermos a forma, e especialmente se compreendermos por que razão a forma é substância, iremos ver também por que razão a alma é forma e, portanto, por que razão a alma é substância.
A forma e a matéria são introduzidas para explicar a mudança e a transformação nas substâncias primeiras. Aristóteles considera a substância primeira um sujeito básico, do qual se predica outras coisas (espécies e géneros substanciais, e também os que não são substâncias, como a qualidade e a quantidade) (Categorias 2a11–14, 34–35, 2b3–6); e é um sujeito básico em parte porque é um sujeito básico de mudança ou transformação (4a10–b19). Os sujeitos de transformação surgem em dois tipos de transformação:
Estas distinções permitem levantar outra questão: que géneros de coisas são as substâncias genuínas? Apesar de Aristóteles por vezes parecer pressupor simplesmente que coisas como estátuas e cavalos são substâncias primeiras, reconhece por vezes que há razões para acreditar que a matéria é a única substância. Pois toda a transformação de uma “substância formal” que não seja qualitativa (por exemplo, uma estátua ou um cavalo) é também uma transformação qualitativa que tem a matéria como sujeito (por exemplo, o bronze ou o sangue e a carne). Além disso, todas as transformações qualitativas em que as substâncias formais são aparentemente os sujeitos podem ser reinterpretadas como transformações qualitativas que têm na matéria o seu sujeito (ainda que ao dizer, por exemplo, que a estátua ficou verde, pudéssemos igualmente dizê-lo do pedaço de bronze). Por que razão não dizer, então, que a matéria é o sujeito básico da mudança, e que é, portanto, a única substância genuína, não sendo a “substância” formal realmente uma substância, de todo em todo? (Cf. Fís. 193a9–28, Metafísica (Met.) 1029a10–26).
Aristóteles responde que a forma é uma substância, como a matéria, porque é também um sujeito básico de mudança, distinta da matéria. Um artefacto particular, ou organismo, não depende de qualquer pedaço particular de matéria; apesar de esta estátua de Péricles ter passado a existir a partir de um pedaço particular de bronze, pode continuar a existir depois de o pedaço de bronze já não existir. Pois podemos reparar a estátua, substituindo os seus pedaços danificados, preservando a mesma estátua, mas fazendo-a ser constituída por um pedaço diferente de bronze. O ponto é ainda mais claro no caso dos organismos vivos; para continuarem vivos, têm de substituir a sua matéria por matéria nova, mantendo a mesma forma do ser, mas com diferentes pedaços de matéria que a constitui (de Generatione et Corruptione (GC) 321b22–8, 322a24–33). Ainda que uma forma particular (desta casa particular ou desta estátua particular), a cada momento em que existe, precise de algum pedaço de matéria que a constitua, não há um único pedaço particular de matéria que tenha de persistir ao longo de todo o tempo em que a forma persiste. Por esta razão, a forma é um sujeito tão básico como a matéria, e por isso conta como substância.5
Por vezes, de facto, Aristóteles afirma até que a matéria não pode persistir sem a forma. Quando uma criatura viva morre, o que sobrevive não é a sua cabeça, mãos, braços, etc., mas antes coisas que só por “homonímia” são mãos, etc. (do mesmo modo que uma mão de pedra esculpida pelo artista só por “homonímia” é uma mão, não sendo uma mão genuína; veja-se Met. 1035b23–25, 1036b30–32). Aristóteles também afirma, contudo, que as criaturas perecem caindo na sua matéria (Met. 1035a31–33, DA 412b25–26), que, por conseguinte, tem de sobreviver às criaturas.
Estas teses acerca da matéria só são consistentes se Aristóteles se refere a dois tipos de matéria:
Apesar de a forma ser existencialmente independente de um pedaço particular de matéria remota, e vice-versa, a forma depende de algum pedaço de matéria próxima, e vice-versa.
Estes géneros de exemplos apoiam a tese de Aristóteles de que o senso comum reconhece artefactos e organismos como substâncias irredutíveis à sua matéria próxima ou remota. Mas será que mostram que os artefactos e os organismos são realmente substâncias? Os atomistas, por exemplo, poderiam conceder a chamada de atenção de Aristóteles quanto às substâncias comummente reconhecidas e à sua matéria, mas insistir que estas substâncias comummente reconhecidas são supérfluas numa abordagem genuinamente científica e explicativa das coisas e processos no mundo. Ainda que seja para nós conveniente reconhecer as substâncias de senso comum, como cavalos e árvores, mesmo assim esse reconhecimento poderá não contribuir para a nossa compreensão da realidade. Se isto for verdadeiro, não há razão para reconhecer estas “substâncias” irredutivelmente formais como substâncias genuínas; pois não há razão para reconhecê-las como sujeitos genuínos das mudanças reais que ocorrem no mundo.
Aristóteles responde a esta objecção defendendo que a forma, assim como a matéria, é uma causa — ou seja, que, em alguns casos, as propriedades e o comportamento de uma substância são explicadas recorrendo à sua forma, e não apenas à sua matéria.6 A forma e essência de um martelo é uma capacidade para pregar pregos na madeira. O martelo foi concebido para ter esta capacidade para executar esta função. Dado que essa concepção fez em parte o martelo passar a existir com as propriedades que tem, temos de mencionar a forma para explicar por que tem o martelo estas propriedades.
Aristóteles insiste também na realidade da forma nos organismos naturais. Dá-se conta de que as partes de um organismo natural parece que executam funções que beneficiam o todo: os corações bombeiam sangue, os sentidos fornecem informação útil, a camuflagem ajuda os animais a evitar os predadores, e assim por diante. Aristóteles afirma que partes como os corações e os dentes têm causas finais, que existem para dar lugar ao benefício que efectivamente produzem (Fís. 198b10–199a8). A “causa final” é “aquilo em função do qual” algo existe ou acontece (194b32–195a3). Na medida em que a descrição da forma de x menciona características de x que especificam resultados que explicam outras características e comportamentos de x, a causa formal de x também indica causas finais das características e comportamento de x. (A forma de um martelo, por exemplo, é a sua função de martelar, e esta função é a causa final da forma e estrutura do martelo). Dado que Aristóteles descreve as formas dos artefactos e dos organismos naturais por meio das suas funções, não terei o cuidado de distinguir a causa formal da final. As duas não são idênticas, dado que algumas formas (por exemplo, dos objectos matemáticos) não especificam causas finais, mas para o exemplo aqui em discussão não é necessário distingui-las nitidamente.
O desígnio é um caso de causalidade final, uma vez que o facto de o martelo espetar pregos na madeira explica por que foi feito como o foi. Normalmente, a intenção do projectista original explica para que serve um artefacto, ao especificar qual é a sua função, ao passo que a intenção posterior de quem o usa pode explicar o que lhe acontece, ao especificar para que finalidade foi usado. (Se um pesa-papéis for usado para manter uma porta aberta, isso é verdadeiro porque quem o usa tem esta intenção particular, ainda que o pesa-papéis não seja para isso.)
Noutros casos de causalidade final, contudo, um resultado pode explicar um processo mesmo que não exista desígnio nem intenção. As instituições e práticas sociais e económicas podem tornar-se dominantes, e permanecer dominantes, porque servem os interesses da classe dominante numa sociedade. Neste caso, explicamos a razão da sobrevivência de uma instituição referindo a sua função, sem mencionar as intenções de pessoas particulares (dado que a explicação poderá ser verdadeira ainda que ninguém tenha projectado nem mantenha a instituição com a intenção de servir os interesses da classe dominante). Do mesmo modo, uma teoria da evolução pode mostrar que estes animais têm esta cor porque serve de camuflagem, ainda que nenhum desígnio esteja presente. Os antepassados destes animais podem ter adquirido a cor em resultado de uma mutação aleatória, e não porque os beneficiava; mas se o benefício desta cor para as gerações anteriores promoveu a sobrevivência e a reprodução desta espécie, então as gerações seguintes têm esta cor porque serve de camuflagem, que as beneficia.
Portanto, quando Aristóteles afirma que os organismos naturais e os processos existem porque promovem um bem para os organismos, a sua ideia continua plausível, como neste exemplo, mesmo sem qualquer apelo ao desígnio. Afirmar que a forma e a função explicam algo não é dizer como produzem um resultado — ou seja, qual foi processo usado para o fazer. A crença no desígnio fornece uma explicação possível de como o fazem. A teoria da evolução é outra explicação. Na verdade, Aristóteles não acredita em qualquer uma destas duas explicações. Quando afirma que há causas formais e finais, não se compromete com o desígnio, nem com a evolução, nem com qualquer outra teoria particular, como explicação correcta dos processos relevantes; limita-se a afirmar que o género correcto de explicação tem de mostrar como a forma e a função explicam as propriedades e o comportamento dos organismos naturais. Apesar de a confirmação desta tese exigir uma explicação mais específica dos processos relevantes, a sua plausibilidade não depende da aceitação prévia de uma explicação específica, como qualquer uma dessas explicações. (Podemos ter boas razões para acreditar que algo ocorre, sem ter uma boa ideia de como ocorre.)
Aristóteles tem razão ao supor que as causas finais são importantes. Podemos ilustrar este ponto em casos simples que envolvem artefactos. Supomos que as chávenas de chá têm a forma e a dimensão que têm, e são feitas dos materiais de que são feitas (cf. Fís. 200b4–8), porque servem para pôr chá. Não prevemos que as chávenas de chá têm normalmente a forma de flautas, nem a dimensão de chaleiras, nem que são feitas de plástico que derreta com líquidos quentes. Além disso, não é fácil formular estas previsões e generalizações acerca de chávenas de chá noutros termos; pois as chávenas de chá são muitíssimo diferentes entre si com respeito à configuração, dimensão e composição.
Estes pontos acerca da explicação poderão parecer tão óbvios que nem valeria a pena mencioná-los. Mas se Aristóteles tiver razão ao afirmar que as explicações teleológicas são também apropriadas para os processos e órgãos biológicos, à parte de qualquer desígnio, então os pontos simples quanto aos artefactos aplicam-se também aos organismos. Supomos que os corações dos animais têm a estrutura que têm porque servem para bombear sangue; e a compreensão dos corações que derivamos do conhecimento do contributo que dão para o bem de todo o animal não se consegue exprimir facilmente em termos que não sejam teleológicos; pois as semelhanças entre diferentes corações e diferentes tipos de animais são funcionais, e não necessariamente materiais. Negar a causalidade final nestes casos é ficar sem explicações que sejam a um tempo plausíveis e indispensáveis.
Estas afirmações sobre o carácter explicativo das causas finais ajuda a explicar por que razão as formas são substâncias genuínas. Dois pontos são importantes:
Se aceitarmos esta concepção de forma como substância, podemos reconsiderar as objecções de Aristóteles às três perspectivas sobre a alma. Caso Aristóteles tenha razão, não precisamos de supor, como o materialista, que só uma coisa material pode ser uma substância; pois Aristóteles reconhece formas que são substâncias, irredutíveis à sua matéria constituinte. E não precisamos também de concordar com o dualista, que pensa que uma substância imaterial é a única alternativa ao materialismo. Também não precisamos de aceitar a teoria atributiva; pois se uma coisa não satisfaz a concepção materialista de substância, nem a dualista, não se segue que não é uma substância — uma substância pode ser feita de matéria, sem ser simplesmente uma colecção de pedaços de matéria. A perspectiva de Aristóteles acerca da substância sugere que a apresentação inicial de pontos de vista sobre a alma ignora algumas possibilidades relevantes.
Do ponto de vista de Aristóteles, chegamos a uma solução plausível das dificuldades com respeito à alma se a identificarmos com a forma de uma criatura viva. Em DA II.I, Aristóteles defende que a alma é uma substância natural na medida em que é uma forma.7 O seu argumento é este:
Depois de ligar o corpo e a alma com a sua teoria metafísica da forma e da matéria, Aristóteles conecta-os também com a potencialidade e o seu pôr em acto ou realização (enérgeia ou entelékheia, 412a19–28). Se pensarmos na forma como função, podemos também dizer que realiza as capacidades da matéria de uma maneira particular, com objectivos (por exemplo, a forma do martelo põe em acto as potencialidades da madeira e do metal ao formá-las para martelar); e assim identificamos de imediato a forma com o estar em acto.
Aristóteles pode defender 1 com base na sua explicação geral dos organismos vivos, afirmando que tanto as causas formais como as materiais têm de ser referidas para explicar o comportamento destes organismos. Podemos também aceitar 2 como uma crença de senso comum. Mas a passagem para 4 é enigmática. Para chegar a 4, Aristóteles parece pressupor que se as criaturas vivas são compostas de matéria e forma, como 1 afirma, e se são compostas de corpo e alma, como 2 afirma, então ou o corpo tem de ser matéria e a alma forma, ou o inverso; e depois 3 exclui a possibilidade de o corpo ser forma. Este pressuposto quanto a 1 e 2 parece dúbio, contudo. Pois se aceitamos tanto 1 como 2, por que haveríamos de pensar que tem de haver uma correspondência biunívoca entre os elementos de cada composto? Poderíamos concordar, por exemplo, que um bolo é composto de forma e matéria e de dois ingredientes — farinha e ovos — sem concordar que um dos dois ingredientes tem de ser a matéria e o outro a forma. Aristóteles, contudo, parece pressupor que ou o corpo tem de ser matéria e a alma forma, ou o inverso, e que a única questão é decidir qual é qual.
É preciso um pressuposto semelhante para apoiar a afirmação 4 de que o corpo tem de ser matéria. Pois se “vivo” for simplesmente uma qualidade não-substancial de um corpo, de modo a que um corpo vivo não conte como um tipo de substância distinta do corpo, então Aristóteles não tem razões para identificar o corpo com a matéria e a alma com a forma. (Considere-se o argumento com “branco” em vez de “vivo”, e “brancura” em lugar de “alma”. Não se mostraria que a brancura é uma substância por ser uma forma; pois é simplesmente uma qualidade não-substancial de um corpo.) E mesmo que concordemos que os corpos vivos são um tipo distinto de substância, por que razão haveríamos de inferir que a alma tem de ser substância como forma?
Aristóteles tem de se apoiar na sua afirmação de que a alma é o princípio primeiro da vida, “aquele primeiro em virtude do qual vivemos, percepcionamos e pensamos” (414a12–13). Aristóteles entende “vida” como “sustentação, crescimento e diminuição por si” (412a14–15). Um organismo vivo sustenta-se, cresce e diminui por si — a partir de uma origem causal em si e não pela acção de agentes externos. Do ponto de vista de Aristóteles, quando concordamos com esta concepção de vida, temos de concordar que um organismo vivo está teleologicamente organizado; pois Aristóteles rejeita qualquer tentativa de descrever ou explicar a sustentação sem fazer apelo à causalidade final (415b28–416a18).
Caso concordemos que a vida tem de ser concebida teleologicamente, e que a alma é o princípio primeiro da vida, então temos de concordar que a alma é forma e não matéria. Pois o princípio primeiro é seja o que for que explica as nossas actividades vitais; e dado que Aristóteles mostrou que estas são actividades que visam finalidades, a sua explicação primeira tem de fazer referência às características do sujeito que estão teleologicamente organizadas e que visam objectivos, e por isso à forma e não à matéria. Se a alma for aquele primeiro em virtude do qual vivemos, tem de ser a causa final do corpo, e por isso um aspecto formal, e não material, do sujeito. Não pode ser o princípio primeiro da vida e um género qualquer de matéria. Pois mesmo que encontrássemos algo de material ou uma componente que uma coisa tem se e só se tiver vida, este seria um princípio subordinado, e não o princípio primeiro da vida; aceitar a concepção de vida de Aristóteles é sugerir que a sua causa primeira tem de ser formal.
Assim, se concedermos que a alma é o princípio primeiro da vida, vemos por que razão é substância como forma. Pois os corpos vivos são em si um tipo distinto de substância, e as suas formas — os seus princípios primeiros de vida — têm também de ser substâncias.
Contudo, por que haveríamos de concordar com a tese de Aristóteles de que a alma é o princípio primeiro da vida? Aristóteles precisa desta tese para ligar as questões sobre a alma ao seu tratamento geral da matéria e da forma aplicado aos organismos vivos. Apesar disso, a sua tese não reflecte as crenças comuns com que começámos ao discutir a alma. Pois começámos por concordar que a alma é o princípio dos animais (402a6–7), e o princípio do movimento e da percepção. Esta concordância fica-se significativamente aquém da tese de Aristóteles; pois esta implica que as plantas têm almas (410b22–23, 411b19–20, 27–30), ao passo que o senso comum não o implica. Devemos pressupor que a crença de Aristóteles na alma das plantas não era menos contra-intuitiva para os seus leitores originais do que para nós.
Talvez consigamos compreender melhor as razões de Aristóteles a favor desta tese bastante contra-intuitiva se voltarmos aos seus problemas iniciais acerca da alma.
As diferentes perspectivas sobre a alma que se centram no seu papel como causa da percepção e do movimento, fonte de unidade, e como algo incorpóreo suscitam problemas. Aristóteles pensa que estes problemas são solúveis se aceitarmos a sua teoria hilomórfica, que trata a alma como forma (eîdos ou morphḗ) e o corpo como matéria (húlē).
Primeiro, compreendemos por que razão a alma está ligada à percepção e ao início do movimento, e por que razão uma certa coisa está conectada com ambos. Aristóteles sugere que o género relevante de movimento tem de orientar-se por uma finalidade; daí que a percepção e a origem do movimento pertençam à alma na medida em que fazem parte da causa formal. Mas esta explicação da razão pela qual a percepção e a origem do movimento pertencem à alma implica que um organismo tem alma na medida em que tem a sua própria fonte de processos que visam finalidades; e quando se pensa em almas nestes termos, temos de concordar que as plantas também têm almas, ainda que tenhamos começado por atribuir almas só aos animais. Pois a característica comum da causa do movimento e da causa da percepção é partilhada pelos estados das plantas que visam finalidades, mas sem estados de consciência. A característica contra-intuitiva da concepção de alma de Aristóteles resulta directamente da sua tentativa de captar as crenças intuitivas na sua concepção de causalidade formal e final.
Se a alma é forma, revelou-se que temos razão, em alguma medida, ao pensar que a alma é uma substância, e que é “incorpórea”. É uma substância irredutível a um corpo material que não seja orgânico; e nessa medida o senso comum tem razão ao suspeitar que a alma tem de algum modo de ser incorpórea, e não apenas algo de comum e material. Aristóteles concorda que a alma é incorpórea neste aspecto, sem aceitar a tese complementar de que é uma substância imaterial; pois permite que a alma seja composta de um qualquer corpo que não seja orgânico, e que dependa dele (em certo grau).
Além disso, o ponto de vista de Aristóteles implica que a alma é por si uma substância, e não apenas uma harmonização do corpo. Se a alma fosse apenas uma harmonização, o corpo e as suas partes seriam substâncias básicas, e a alma seria simplesmente uma qualidade delas, e não outra substância. Mas esta perspectiva da alma e da sua relação com o corpo não reconhece a independência da alma. Pois a alma não depende de qualquer corpo particular que não seja orgânico. Depende de um corpo orgânico; mas este corpo também depende da alma, dado que não continua a viver depois da perda da alma.
Dado que a alma é forma, é a fonte da unidade que faz de um amontoado de constituintes materiais um organismo unitário. Pois uma colecção de carne e ossos constitui um organismo vivo unitário, na medida em que estiver teleologicamente organizado; e as actividades do organismo unitário são a causa final dos movimentos das diferentes partes. Dado que o organismo tem uma causa final única, tem uma alma única e um corpo único, que são a alma e o corpo de um único organismo.
Do mesmo modo, dado que a alma é forma, a sua identidade e persistência determina a identidade e persistência da criatura que a tem, explicando por que é apropriado identificar Sócrates com a sua alma. Se algo tem alma na medida em que tem vida, então é razoável dizer que Sócrates deixa de existir sempre que a sua alma deixar de existir. Esta é a perspectiva do Platão do Fédon (115c–e); e Aristóteles mostra que podemos aceitá-la sem sermos dualistas.
Se a alma é a forma e o corpo é matéria, então as perspectivas gerais de Aristóteles sobre a forma e a matéria — e especialmente a sua distinção entre matéria próxima e remota — aplicam-se também à alma e ao corpo. Aristóteles defende que realmente se aplicam a este caso. Pois o corpo que é a matéria da alma é 1) orgânico, 2) potencialmente vivo e 3) incapaz de existir sem a alma. Ao chamar-lhe “orgânico”, Aristóteles quer dizer que tem essencialmente membros e órgãos que funcionam e, portanto, que está efectivamente vivo. Dado que cada um destes órgãos tem a sua função própria essencialmente, já não existe quando o corpo está morto e o órgão perde a sua função; o que fica é apenas um “homónimo” de (por exemplo) uma mão, que não é mais genuína do que uma mão de pedra. Dado que o corpo orgânico é essencialmente orgânico, está essencialmente vivo, e por isso não pode sobreviver à alma (412b20–25).
Contudo, isto não é o único tipo de corpo, ou o único tipo de matéria, que é relevante. Pois Aristóteles acrescenta: “Não é o corpo que perdeu uma alma que em potência está vivo, mas antes o corpo que tem uma alma” (412b25–26). Dado que este corpo pode sobreviver à perda da alma, não pode satisfazer as três condições que o corpo orgânico satisfaz. Denominemo-lo “corpo não-orgânico”; presumivelmente, são as coisas químicas e compostos que constituem o corpo orgânico. Dado que estas coisas não têm essencialmente alma, o corpo não-orgânico sobrevive à alma.8
O contraste sugerido entre corpo orgânico e não-orgânico corresponde ao contraste geral que fizemos notar entre matéria próxima e matéria remota. Temos de tê-lo em mente para compreender as teses de Aristóteles acerca da unidade do corpo com a alma. Pois Aristóteles compara esta unidade a) à unidade da cera com o selo feito de cera (412b6–7), b) à unidade de forma e matéria (Met. 1045b17–22), e c) à unidade do estar em acto com o que este estar em acto põe em acto (412b8–9). Se nos apoiássemos em a sem b e c, poderíamos concluir que a alma e o corpo só são uma só coisa na medida em que os constituintes e a coisa constituída são uma só coisa; e este género de unidade não chega a ser identidade (dado que as propriedades históricas e modais dos constituintes são diferentes das propriedades da coisa constituída). Mas b e c assegura-nos que Aristóteles tem de estar preocupado com a unidade entre a forma e o corpo orgânico que é a sua matéria próxima. Neste caso, o corpo e a alma têm as mesmas histórias e as mesmas propriedades modais; quando um organismo particular existe, trata-se simultaneamente de uma alma particular e de um corpo particular, e o que acontecer a um, em acto ou potência, acontece também ao outro. Apesar disso, uma coisa é um corpo orgânico porque tem as potencialidades adequadas para ter estados funcionais, e a mesma coisa é uma alma porque tem os estados funcionais adequados para actividades vitais, de modo que ser um corpo orgânico não é a mesma propriedade que ser uma alma, ainda que todo o sujeito que tenha alma seja também um corpo orgânico.
Podemos agora tentar dizer mais claramente onde Aristóteles se situa com respeito a alguns dos temas acerca do corpo e da alma que antes introduzimos. Vimos que Aristóteles rejeita tanto o pressuposto pré-socrático de que a alma é simplesmente matéria não-orgânica, como a tese dualista platónica de que tem de ser algo inteiramente não-corpóreo. A sua própria abordagem hilomórfica pretende mostrar que essas perspectivas não são as únicas posições possíveis e que o hilomorfismo é preferível a ambas. Escolhemos uma destas posições extremas quando vemos as dificuldades da outra; mas Aristóteles sugere que não precisamos de escolher qualquer uma delas.
Aristóteles tem de aceitar algum tipo de dualismo, na medida em que afirma que a alma é uma substância distinta do corpo não-orgânico. Porém, isto não chega a ser um dualismo platónico ou cartesiano, na medida em que Aristóteles não afirma que a alma é imaterial (se ser imaterial exclui ser composto de matéria) nem que é independente de um ou outro corpo não-orgânico. (No resto desta secção, irei usar “dualismo” para referir as versões de dualismo que são mais fortes do que aquela que Aristóteles aceita.)
Contra as versões mais fortes de dualismo, Aristóteles defende que compreendemos o que são as almas encarando-as como causas formais de corpos naturais, e que não temos qualquer razão para acreditar que uma coisa poderia ser uma alma sem corpo orgânico, do qual ela é a causa formal. Aristóteles estaria enganado se “causa formal de um corpo orgânico” fosse simplesmente uma descrição que nos permitisse reconhecer almas, sem necessariamente nos dizer o que têm de essencial. Mas Aristóteles pensa que de facto não temos razão para acreditar que há algo de essencial a uma alma que implique a sua independência de um corpo orgânico, cujas potencialidades põe em acto. A definição de almas e de actividades psíquicas precisa de mencionar o sujeito material próximo (o corpo orgânico e as suas partes), cujas capacidades são postas em acto nas funções do organismo (Met. 1036b28–30). Não podemos, pois, supor que uma alma só coincidentemente está ligada a um género particular de corpo orgânico (DA 407b20–24).
O dualismo identifica a alma com uma componente não-material do composto de corpo e alma. Porém, Aristóteles defende que se a alma tem forma, não pode ser uma componente não-material; pois a presença da componente não pode ser a causa primeira da unidade de todo o composto, ao passo que a forma é a causa primeira da unidade (Met. 1041b11–28). Do ponto de vista de Aristóteles, as razões para negar que a alma seja uma componente material baseiam-se na conexão entre a alma e a unidade; e esta conexão torna igualmente razoável negar que a alma seja uma componente imaterial. Os factos que aparentemente apoiam o dualismo, consequentemente, não o apoiam.
Este argumento é difícil de formular em termos precisos que não constituam uma petição de princípio contra um dualista. Pois é certo que um dualista não quer identificar a alma com um composto meramente material; e o próprio Aristóteles tem de admitir que, em algum sentido de “componente”, a alma é uma componente do composto e do corpo. Talvez este ponto seja mais claro se considerarmos que Aristóteles pretendia dizer que uma componente que difere de uma componente material simplesmente por ser imaterial (sem qualquer outra explicação de como esta característica ajuda a resolver os problemas levantados pelas componentes materiais) não responde melhor à questão da unidade do que uma componente material. Do ponto de vista de Aristóteles, para responder à questão da unidade temos de reconhecer a forma, assim como as componentes materiais; e a forma difere de componentes imateriais, na medida em que pode ser composta de matéria e dela depender.
O argumento de Aristóteles acerca das componentes põe em questão um argumento a favor do dualismo. Se os dualistas se apoiam na insuficiência de explicações puramente materiais da unidade, e inferem a verdade do dualismo platónico ou cartesiano, então, do ponto de vista de Aristóteles, estão enganados. Mas apesar de Aristóteles rejeitar este género de argumento a favor do dualismo, não se segue que rejeita tudo o que um dualista quer sustentar; em particular, não precisa de negar que um organismo vivo tem alguma componente imaterial, ou até que o organismo tem uma alma se e só se tem uma componente imaterial apropriada. Esta doutrina quase-dualista não é uma explicação da alma, dado que a componente imaterial não é em si a forma do corpo vivo; o quase-dualismo descreve a composição que é (supostamente) causalmente necessária e suficiente para que um corpo tenha alma.9
O próprio Aristóteles reconhece que uma componente pode ser necessária e suficiente para a presença de uma alma sem que seja em si uma alma; Aristóteles sugere que o coração ou o cérebro não podem ser primeiros nem segundos ao organismo vivo, dado que cada um depende do outro (Met. 1035b25–27). O seu tratamento destas componentes materiais mostra como o quase-dualismo poderia ser acomodado por uma teoria hilomórfica da alma e do corpo. Pois a sua teoria e os seus argumentos não implicam que tudo o que é causalmente necessário ou suficiente para as actividades psíquicas tem de ser composto do género normal de matéria remota (em última análise composta pelos quatro elementos). Suponha-se, então, que em vez um coração material (ou além disso) uma pessoa precisa de uma componente imaterial — chame-se-lhe “espírito” — para ter alma. Poderíamos até afirmar que quando esta pessoa morre esta componente sobrevive. Nessa condição, não será um espírito, excepto por homonímia — digamos que é um ex-espírito; e se algumas funções psíquicas forem independentes dos órgãos corpóreos, é possível que este ex-espírito exista com essas funções. Assim, o que sobrevive ao composto que chamamos “Sócrates” não é de facto, como pensava Platão, o próprio Sócrates, mas apenas o seu ex-espírito.
O quase-dualismo não é apenas um complemento logicamente possível do ponto de vista de Aristóteles. Pois algumas das suas próprias afirmações sobre o intelecto (noûs) podem efectivamente parecer que o comprometem com o quase-dualismo. Aristóteles afirma o seguinte:
De facto, não é claro se a primeira destas afirmações implica o quase-dualismo. Pois a tese de que o pensamento não tem um órgão corpóreo específico, localizado, não implica por si que o pensamento exige quaisquer processos que não sejam materiais. Porém, a segunda e a terceira teses parece que implicam realmente o quase-dualismo.10 Em 2, Aristóteles aceita o dualismo acerca de uma parte da alma humana, e em 3 aceita uma explicação parcialmente dualista do pensamento. Tenha ou não Aristóteles justificação para aceitar este grau de dualismo, não contradiz a sua teoria hilomórfica da alma como um todo.
As teses quase-dualistas acerca do intelecto podem ajudar a clarificar uma observação que se tem frequentemente considerado que entra em conflito com a teoria hilomórfica geral. No fim de DA II.I, Aristóteles observa que não é ainda claro se a alma é ou não o em acto do corpo, do mesmo modo que um marinheiro é o em acto de um navio (413a8–9). Um marinheiro (i.e., alguém a bordo) é necessário para o navio atingir o seu em acto (no sentido em que um navio é para transportar passageiros e não haveria navios caso não houvesse marinheiros — haveria apenas embarcações que poderiam ser usadas como navios); apesar disso, o marinheiro é capaz de existir, como ex-marinheiro, sem o navio. Analogamente, uma componente imaterial, um espírito, poderá ser necessária para que uma alma exista, e mesmo assim ser capaz de existir, como ex-espírito, sem o corpo orgânico do qual a alma depende. A sugestão acerca de tal componente imaterial parece antecipar a descrição que Aristóteles faz do intelecto, e em especial do intelecto produtivo; e seria um erro supor que a sugestão implica que Aristóteles aceita o dualismo platónico ou que contradiz a sua perspectiva geral de que a alma e o corpo formam uma unidade.11
Aristóteles não dá sinais de aceitar o materialismo eliminatório, dado não dar sinais de duvidar da realidade dos estados psíquicos, nem de acreditar, seja explícita, seja implicitamente, que as crenças de senso comum sobre os estados psíquicos entram em conflito com quaisquer perspectivas plausíveis sobre os fenómenos fisiológicos que explicam estas crenças de senso comum.
Poder-se-ia supor, contudo, que Aristóteles aceita alguma forma de materialismo reducionista, na medida em que concorda que uma explicação de um ser humano tem de mencionar algumas partes corpóreas; pois poderíamos defender que, uma vez que a alma e o corpo são um só, os estados da alma são apenas estados destas partes corpóreas. Mas para avaliar quão profundamente está Aristóteles comprometido com o materialismo, é importante ver que género de corpo e que género de matéria considera o estagirita que constitui uma unidade com a forma. Se Aristóteles está falando do corpo orgânico e da matéria próxima, não está necessariamente a comprometer-se com o materialismo reducionista, no sentido em que seria razoável entendê-lo. Pois o corpo orgânico tem essencialmente uma alma; e assim a mera redução das leis acerca de almas às leis acerca de corpos orgânicos não constitui uma redução das leis acerca de almas às leis acerca de algo que não envolva almas.12
Ora, quando Aristóteles faz os seus comentários acerca da conexão íntima entre a alma e o corpo, e entre partes da alma e partes do corpo, parece que as partes corpóreas relevantes, e os seus processos, pertencem ao corpo material orgânico, e não ao corpo não-orgânico. As partes que têm as capacidades em acto nas actividades vitais são as partes infundidas de alma, e não as suas constituintes materiais. Estas observações, pois, não constituem uma concessão ao materialismo reducionista. Na medida em que Aristóteles reconhece os corpos orgânicos e as almas, assim como corpos que não são orgânicos, rejeita o materialismo reducionista.
Se Aristóteles não se compromete com a redutibilidade, em que género de argumento poderá apoiar-se, e será isso avisado da sua parte? Os argumentos contra a redutibilidade apelam frequentemente ao carácter contextual dos nossos estados psicológicos, e à improbabilidade de descobrirmos que o género de contexto que determina o tipo de estado psicológico em que estamos corresponde exactamente às condições fisiológicas que produzem o mesmo género de estado fisiológico. Suponha-se, por exemplo, que numa ocasião decido votar no candidato da direita, porque sou vítima de um delírio temporário que me leva a pensar que é o melhor, e que noutra ocasião decido votar nesse candidato porque me faz lembrar uma estrela de cinema. Nestas duas ocasiões estou no mesmo tipo de estado psicológico — decidindo votar no candidato da direita; mas os dois espécimes deste tipo surgem em circunstâncias tão diferentes que parece muito improvável que a sua semelhança de conteúdo corresponda a uma semelhança a nível fisiológico ou químico.
Outro género de argumento apela à possibilidade de realizar o mesmo estado psicológico em diferentes tipos de matéria. Se criaturas com componentes baseadas no silicone, e não no carbono, forem como nós, à parte isso, não teriam os mesmos estados psicológicos? E não poderiam computadores apropriadamente sofisticados, ou robôs, ter os mesmos estados psicológicos que nós temos? O próprio Aristóteles reconhece a força deste género de argumento, dado reconhecer que o mero facto de x estar sempre, em termos de facto empírico, incarnado na mesma matéria remota, não mostra que este tipo de matéria remota é essencial a x (Met. 1036a30–b3). Aristóteles acredita certamente que o género apropriado de matéria próxima (i.e., o corpo orgânico apropriado) é necessário para ter estados psíquicos; mas isto não o obriga a insistir no mesmo tipo de matéria remota.
Poderemos, contudo, pôr em questão este argumento baseado na variação possível, se pensarmos que nos permite reconhecer demasiadas coisas e propriedades distintas. Se as variações possíveis mostram apenas que não há sinonímia entre “crença”, “percepção”, etc., e as descrições das suas realizações materiais em acto, então não mostram que ter uma crença, percepção, etc., são propriedades diferentes das propriedades materiais subjacentes. Pois por esse género de argumentação poderíamos também mostrar que, ao contrário da verdade, “calor” e “energia cinética média” correspondem a duas propriedades diferentes, simplesmente porque o nome e a descrição não são sinónimos.
Para responder a esta objecção, precisamos de mostrar que o argumento acerca de estados psicológicos não pretende ser paralelo ao argumento inadequado acerca do calor e da energia cinética média. Pois para supor que o calor não é energia cinética média, teríamos de supor que o calor é uma propriedade diferente do que efectivamente é; pois as leis acerca do calor e as suas conexões com outras propriedades seriam diferentes, tal como as explicações do que acontece quando as coisas ficam quentes. Dado que neste caso a suposição contrafactual de que o calor não é energia cinética média inclui a suposição de que é uma propriedade diferente da que de facto é, a suposição contrafactual não pode mostrar que não é idêntico à energia cinética média. No caso dos estados psicológicos, contudo, a suposição contrafactual de que não têm a sua base material que de facto têm não implica que as leis e explicações acerca deles têm de ser diferentes. Pois a suposição contrafactual inclui as leis psicológicas normais que acompanham a atribuição de estados psicológicos; daí que os mesmos géneros de leis e conexões se apliquem aos sistemas psicológicos na medida em que forem psicológicos, ao passo que leis diferentes se aplicam na medida em que os sistemas são físicos. Dado que as leis e explicações psicológicas são estáveis, é razoável dizer que as propriedades psicológicas são as mesmas; e dado que fornecem explicações diferentes das fornecidas pelas propriedades físicas, são propriedades diferentes.
Os argumentos baseados na variação possível apelam a possibilidades que nos mostram as diferenças efectivas entre estados físicos e psicológicos. A função das possibilidades é mostrar que os dois tipos de explicação são diferentes. A tese aqui crucial é que os estados psicológicos fornecem explicações teleológicas.
Assim, Aristóteles não só não aceita o materialismo reducionista como reconhece alguns dos argumentos que se pode avançar para o rejeitar. E, em geral, o seu compromisso efectivo com o materialismo é muito mais fraco do que poderá parecer à primeira vista. Pois apesar de Aristóteles pensar que a alma exige corpo, este corpo é orgânico; e Aristóteles não faz além disso afirmações acerca dos corpos orgânicos que o comprometeriam claramente com o materialismo. As suas teses acerca da alma são incompatíveis com o materialismo eliminatório e com o materialismo reducionista. São compatíveis com o materialismo da composição, mas não o implicam. As suas teses quase-dualistas acerca de alguns estados psíquicos são incompatíveis com o materialismo da composição acerca destes estados. Mas as teses quase-dualistas não se seguem da sua teoria geral da alma, que é neutra entre o quase-dualismo e o materialismo da composição. Não devemos também supor que Aristóteles não aceita o materialismo simplesmente por ser quase-dualista quanto a certas coisas. Mesmo que Aristóteles não aceitasse o quase-dualismo, teria justificação para afirmar que a sua abordagem geral da alma não lhe dá qualquer razão (sem mais argumentação empírica) para aceitar qualquer versão de materialismo.
A relação entre o ponto de vista de Aristóteles e um ponto de vista materialista sugere muitíssimo fortemente que a sua perspectiva se descreve adequadamente como uma forma de funcionalismo. Pois as questões que tenho vindo a discutir têm tido lugar de destaque nos debates sobre a plausibilidade do funcionalismo e sobre a sua relação com o materialismo. A perspectiva de Aristóteles levanta as mesmas questões, porque um dos seus pontos básicos é o mesmo. A teoria hilomórfica insiste que os estados psíquicos desempenham essencialmente um papel numa explicação teleológica do comportamento do organismo; e visto que este papel explicativo lhes é essencial, seja qual for a sua base material, nenhum género particular de composição é essencial aos estados psíquicos. Conceber os estados psíquicos desta maneira é tornar-lhes essencial o seu papel funcional, e por isso aceitar uma teoria funcional.
A perspectiva de Aristóteles dos estados psíquicos não é simples funcionalismo; é uma versão particular de funcionalismo. A característica essencial dos estados psíquicos, deste ponto de vista, não é apenas o facto de terem um papel causal que intervém entre o estímulo externo e a resposta comportamental da criatura, mas o facto de terem um papel teleológico; pertencem à forma da criatura, e referi-los mostra como as suas respostas comportamentais tendem a promover o seu bem. O aspecto teleológico da forma, e assim dos estados psíquicos que pertencem à forma, determina as características essenciais dos estados psíquicos.
Ao afirmar que a alma é uma substância distinta do corpo que não é orgânico, e ao reconhecer um corpo orgânico que depende da alma, Aristóteles vai claramente além das teses normalmente associadas ao funcionalismo. É menos claro, contudo, se uma posição funcionalista pode realmente passar sem as suas teses ontológicas. Pois se as explicações psicológicas não são suficientemente importantes e fundamentais para corresponder a tipos genuínos de substâncias caracterizadas em termos de forma, podemos perguntar-nos se temos razões suficientemente boas para insistir numa distinção entre estados funcionais e os estados materiais que lhes dão corpo. Tanto o argumento de Aristóteles a favor do reconhecimento das almas como substâncias como os argumentos funcionalistas para distinguir estados psicológicos de estados materiais dependem, ao que parece, dos mesmos géneros de teses acerca da explicação psicológica.
Apesar de ter comparado as perspectivas de Aristóteles acerca da alma e do corpo com diferentes perspectivas acerca da mente e do corpo, ainda não dei conta do facto de a sua investigação tratar de almas e não de mentes. Temos agora de examinar mais de perto qual é o contributo dos seus argumentos para a filosofia da mente.
Os problemas e temas próprios da filosofia da mente são devedores do ponto de vista de que as mentes são de algum modo diferentes do resto da natureza. Os estados mentais parece que não são físicos e, portanto, uma perspectiva metafísica que só reconheça a realidade física parece estar errada. Alguns filósofos defendem que esta aparência está correcta, e outros que é enganadora. Mas não se compreende o âmbito e conteúdo da filosofia da mente a menos que o vejamos contra este pano de fundo. Estas diferenças aparentes entre a mente e o resto da natureza sugerem um contraste marcado 1) entre o mental e o físico, 2) entre a mente e a matéria, e 3) entre a mente e o corpo. Podemos realmente pensar que estes três contrastes são afinal o mesmo; e os três estão claramente subjacentes na concepção cartesiana da mente.13
Os contrastes não se aplicam do mesmo modo, contudo, às almas aristotélicas:
Assim, e em geral, podemos contrastar a posição aristotélica com a cartesiana dizendo que Aristóteles é menos materialista do que Descartes, quanto à natureza, e por isso menos imaterialista do que Descartes quanto à mente.
Este contraste entre as objecções aristotélicas e cartesianas ao materialismo surge mais claramente na metafísica geral de Aristóteles. Pois não é só quanto às mentes que Aristóteles não é reducionista; é-o quanto às almas em geral, e, na verdade, quanto às formas em geral. Os seres humanos com estados mentais não são mais irredutíveis à sua matéria não-orgânica do que os animais e as plantas; e se os artefactos têm formas, também eles são irredutíveis à sua matéria não-orgânica. Quanto a este ponto, a sua posição é marcadamente diferente da perspectiva que Descartes tem da mente. Pois Descartes defende a imortalidade da mente precisamente porque é diferente de outros sistemas naturais; quanto a estes, Descartes vê a possibilidade de uma explicação puramente material, e por isso concede neste caso a verdade do materialismo. Do ponto de vista aristotélico, Descartes concede demasiado ao materialismo com respeito às almas não-racionais; pois Aristóteles pensa que não temos menos justificação para rejeitar o materialismo reducionista e eliminatório com respeito às almas não-racionais do que com respeito às racionais, e que não temos mais justificação para aceitar o dualismo cartesiano com respeito às almas racionais do que com respeito às não-racionais.
Tanto os dualistas cartesianos como os materialistas reducionistas e eliminatórios quanto à mente acreditam que Aristóteles passa ao largo da verdadeira questão. Pois poderão supor que a questão que lhes interessa não é a que se ilustra com plantas e martelos; não será que o sentido em que se descobre que estas coisas são irredutíveis à matéria não é de grande ajuda para o oponente de qualquer materialismo que valha a pena defender? Se o argumento de Aristóteles for sólido, estes materialistas e estes dualistas estão enganados; as questões que eles pensavam que eram diferentes acabam por ser iguais, e se eles rejeitam a redução no caso de sistemas teleológicos em geral, têm de rejeitá-la também no caso das mentes.
Será que o argumento de Aristóteles a favor de uma teoria hilomórfica da alma dá também boas respostas a questões acerca da mente? É preciso distinguir duas questões:
É preciso distinguir estas duas questões, porque Aristóteles poderá ter uma boa resposta à primeira, sem ter uma boa resposta à segunda. Nesse caso, poderíamos dizer que o hilomorfismo oferece o tratamento adequado do género de estados que são os estados mentais, ao afirmar que são estados formais, mas não oferece um bom tratamento de quais serão os estados formais que devemos identificar com a mente. Para responder à segunda questão, deste ponto de vista, precisamos de complementar a teoria hilomórfica, mas não precisamos de rejeitá-la.
Mas apesar de as duas questões serem diferentes, é provável que estejam ligadas. Pois precisamos provavelmente de alguns pontos de vista quanto à segunda para conseguirmos uma resposta estável à primeira. A nossa perspectiva quanto à característica distintiva dos estados mentais poderá muito bem persuadir-nos de que não podem adequadamente ser identificados com estados formais da matéria orgânica. Para nos darmos por satisfeitos com a resposta de Aristóteles à primeira questão, temos pelo menos de eliminar respostas à segunda questão que são uma ameaça ao hilomorfismo.
Assim, é razoável abordar primeiro a segunda questão — para ver como Aristóteles lhe poderia responder, e que objecções se poderia levantar à sua resposta.
Do ponto de vista de Aristóteles, as almas formam uma hierarquia, na qual o tipo inferior de estado psíquico é necessário para o superior, e a alma superior é em potência a inferior (414b20–33). Compreender cada tipo de alma é compreender a maneira específica como estes estados psíquicos específicos são a forma deste género específico de criatura.
Aristóteles distingue a alma perceptiva e a alma racional da alma nutritiva; nos primeiros dois casos, Aristóteles liga os estados psíquicos à “aparência”, phantasíā.14 Pelo menos estas almas parece que têm o âmbito apropriado para isolar os estados mentais dos outros estados; pois inclinamo-nos a acreditar que o âmbito da percepção, desejo, prazer e pensamento (no caso das almas racionais) é também o âmbito dos estados mentais, e que as criaturas com estes estados são todas conscientes.15
O papel da aparência tem como resultado um tipo diferente de explicação teleológica das almas dos animais em contraste com o tipo de explicação que se aplica às almas das plantas. As plantas crescem raízes para chegar à água, e os leões aproximam-se da água para o mesmo fim; mas o “para” precisa de uma interpretação diferente em cada caso. Com as plantas, pressupomos uma conexão causal anterior entre crescer raízes e chegar à água. Com o leão, pressupomos uma conexão causal entre o movimento e um desejo e percepção anteriores que se concentram na obtenção de água. O desejo e a percepção “concentram-se” na água ao provocar no leão a aparência da água: e, como diz Aristóteles, o leão actua perante o “bem aparente” (433a27–30). Isto distingue um animal de uma planta.
A concepção de alma de Aristóteles inclui, pois, uma concepção de estados mentais. Os estados psíquicos em geral são os que pertencem à forma de uma criatura, e que tornam os seus estados e comportamento teleologicamente explicáveis; os estados mentais são o subconjunto de estados mentais que tornam o comportamento de uma criatura teleologicamente explicáveis por referência às aparências da criatura (e assim por referência à percepção, desejo e prazer).
Dizer isto não é ainda definir ou descrever os estados mentais em termos inteiramente não-mentais. Pois não compreenderemos o que será supostamente uma aparência, a menos que já tenhamos alguma concepção do que é um estado mental. Mas talvez possamos explicar melhor as características relevantes da aparência contrastando-a com estados que podem estar presentes numa criatura teleologicamente organizada sem aparência.
A reacção de uma planta ao seu meio ambiente é determinada por interacções puramente físicas; o Sol de Inverno que incide numa planta fá-la crescer, e não precisamos de pressupor que a planta acredita que chegou a Primavera. Nos animais, contudo, as reacções dependem de algo mais além das interacções físicas directas; temos também de pressupor que há características dos estados do animal que correspondem de alguma maneira sistemática a características do objecto externo, e que é esta correspondência, e não a mera interacção física, que explica o comportamento do animal. Se afirmarmos que um leão está a tentar comer um boneco de plástico, porque foi enganado por um boneco que parece um veado morto, não podemos apoiar-nos apenas nas leis comuns da interacção física entre o plástico e o leão que o está vendo; temos também de supor que o estado do leão está ligado tanto a características do boneco como a estados prévios que resultaram do confronto efectivo com veados.
Aristóteles tenta captar a diferença entre interacções puramente físicas e a correspondência sistemática que vai além destas interacções, na medida em que tenta distinguir a percepção da mera interacção física. Na percepção, afirma, adquirimos “a forma sem matéria” (424a17–24); ao passo que podemos ficar com o cheiro da cebola no corpo ao esfregá-la em nós, isso não significa que estejamos percepcionando o cheiro da cebola (cf. 424b11–18). Ao falar de adquirir a forma sem a matéria, Aristóteles tenta captar o elemento representativo dos estados mentais — o elemento que distingue o caso em que percepcionamos o cheiro da cebola do caso em que ficamos com o cheiro da cebola no corpo. A sua fórmula precisa de explicações ulteriores, e precisa de ser ligada mais intimamente à sua concepção de aparência. Mas se dermos atenção a estas características da sua perspectiva, poderemos conseguir ver como a sua perspectiva geral da alma poderá captar as características distintivas dos estados mentais.
Falei livremente do papel explicativo dos estados mentais; e sugeri que, do ponto de vista de Aristóteles, este papel explicativo lhes é efectivamente essencial. Esta ênfase na explicação poderá parecer deslocada.16 Pois podemos contrapor que os estados mentais são observados, e não inferidos; não passamos a acreditar neles porque formamos uma teoria acerca da explicação do nosso comportamento. Esta objecção confunde erradamente, do ponto de vista de Aristóteles, a tese de que os estados mentais são explicativos com a tese de que a sua existência é inferida para explicar observações que não são inferidas. Muitas vezes, as entidades explicativas são também inferidas. Mas não precisam de sê-lo sempre. Quando olhamos para aparências em termos teleológicos, explicamo-las de uma maneira particular. Mas Aristóteles recusa-se a separar a perspectiva teleológica das observações iniciais básicas dos fenómenos (Partes dos Animais 633b7–17). Tenha ou não razão quanto a isto, Aristóteles pode adequadamente dizer o mesmo com respeito aos estados mentais. Não precisamos de supor que os fenómenos que queremos explicar ao usar termos mentais podem ser descritos sem termos mentais, ou que os termos mentais são de algum modo menos básicos do que os outros.
O nosso apelo a estados explicativos poderá parecer uma introdução nada satisfatória de estados mentais, se nos dermos conta de que muitos estados explicativos parecem ficcionais. Podemos explicar o comportamento de cães e pessoas atribuindo-lhes desejos e crenças; mas também podemos explicar o comportamento dos rios dizendo que querem chegar ao mar, o comportamento das plantas dizendo que querem água, ou o comportamento dos termóstatos dizendo que acreditam que a sala está suficientemente quente e que querem desligar o aquecimento. Mas certamente que não atribuímos estados mentais a nós próprios do mesmo modo; não parece que neste caso sejam simplesmente maneiras convenientes ou resumidas de explicar o nosso comportamento. Não temos a liberdade de pressupô-las ou então rejeitá-las; temo-las, simplesmente, quer queiramos que expliquem alguma coisa, quer não.
Esta objecção depende de um entendimento inadequado da tese acerca da explicação. Podemos falar dos desejos do termóstato, porque queremos explicar o seu comportamento. Mas de facto não explicamos o seu comportamento desse modo; o termóstato não tem desejos, e por isso os seus desejos nada explicam. Os estados mentais são considerados entidades explicativas na medida em que explicam realmente o comportamento, e não na medida em que uma explicação que os inclua está em harmonia com o comportamento observado. Daí que a comparação com atribuições puramente ficcionais de estados mentais seja deslocada. Com o termóstato, o alegado conteúdo do estado mental não tem influência causal no comportamento, de todo em todo, mas com cães e pessoas tem influência causal. As leis teleológicas acerca de termóstatos e das suas crenças são fáceis de substituir por leis acerca das intenções dos fabricantes ou usuários de termóstatos, sem referência aos estados mentais dos termóstatos. O mesmo não acontece no caso dos cães; e não é verdadeiro mesmo que os cães resultem de desígnio inteligente. As objecções aos estados mentais como estados explicativos não são suficientemente boas para mostrar que há algo de errado na concepção que Aristóteles tem da alma.
Os leitores que gostam de teorias filosóficas apelativas, especulativas e de preferência um pouco bravias dão consigo amiúde desapontados com Aristóteles, e concluem injustificadamente que as suas perspectivas são entediantes, nada controversas, nem iluminantes. Há quem reaja deste modo à sua psicologia.17 Se Aristóteles desenvolve toda uma teoria metafísica simplesmente para chamar a nossa atenção para a relação entre um martelo e o ferro de que é feito, não é isso excessivo para explicar algo que à partida não parece precisar de muita explicação? E se Aristóteles pensa que a relação entre o martelo e o ferro resolve os grandes problemas acerca da mente e do corpo, não terá subestimado a profundidade e a seriedade destes problemas?
Esta não é uma reacção razoável à teoria de Aristóteles. Pois a teoria responde a várias questões que podemos razoavelmente esperar que sejam respondidas por uma explicação da mente e do corpo. Ajuda a explicar por que razão surgem alguns dos problemas acerca da mente e do corpo; pois o hilomorfismo explica por que razão nos sentimos tentados tanto pelo materialismo como pelo dualismo, não podendo aceitar facilmente qualquer um dos dois. Não implica que as mentes são de entender exactamente da mesma maneira que entendemos os aspectos do mundo que não são mentais, nem implica que as mentes são uma anomalia tão grande que tenhamos razões para não acreditar na sua existência. Aristóteles mostra por que razão a fisiologia empírica é relevante para compreender os estados mentais, sem conceder que a teoria fisiológica substitui adequadamente a compreensão mentalista dos estados mentais. A sua perspectiva não implica que as criaturas com mentes introduzem uma forte descontinuidade com o resto da natureza; mas sugere que os estados mentais desempenham um papel importante na compreensão de um agente consciente. Nessa medida, a perspectiva de Aristóteles sugere que temos razão ao dar importância ao facto de termos mentes.18
Veja-se 413b20–24, 414b1–16, 415a8–11. Estas passagens mostram que Aristóteles tem alguma dificuldade em decidir-se quanto à relação entre phantasíā e percepção. As suas dificuldades poderão ser explicadas considerando as dificuldades em decidir se certas criaturas serão conscientes, ou não.
Sobre questões acerca da consciência em Aristóteles, veja-se Hardie (1976) e Modrak (1987). ↩