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Crítica
4 de Outubro de 2016   Metafísica

O compatibilismo do milagre local

Pedro Merlussi

O compatibilismo do milagre local (de agora em diante, CML) é uma teoria compatibilista acerca do problema do livre-arbítrio e do determinismo. De acordo com o CML, temos frequentemente — embora não sempre — a capacidade de agir diferentemente do que de fato agimos, mesmo sob a hipótese de o determinismo ser verdadeiro. Posso, por exemplo, levantar a minha mão para cumprimentar um flamenguista que esteja passando pelo outro lado da rua. E o compatibilista do milagre local dirá que eu poderia não ter levantado a minha mão, isto é, poderia ter agido diferentemente, mesmo sob a hipótese do determinismo ser verdadeiro. Mas há também situações nas quais eu não poderia agir diferentemente, de acordo com o CML. Por exemplo, dado que já levantei a minha mão, digamos, ao meio dia, não posso mudar este fato acerca do passado. Não poderia ter agido diferentemente se o passado tivesse de ser alterado. Além disso, não poderia ter agido diferentemente se a minha ação violasse as leis da natureza. Mesmo que eu tenha levantado a minha mão o mais rapidamente possível, não poderia ter ultrapassado a velocidade da luz. O CML está de acordo com essa intuição. Embora possamos agir de modo diferente daquilo que agimos, não podemos fazer isso em todas as circunstâncias, especialmente quando isso requer que as nossas ações sejam ou causem violações das leis da natureza, ou que o passado seja alterado.

A descrição acima é uma visão demasiado geral e até caricatural do CML. A teoria foi originalmente desenvolvida por David Lewis em seu célebre artigo “Somos Livres para Violar as Leis?”, e muita discussão se seguiu desde a sua publicação. Uma apresentação mais caridosa envolve certas distinções e sutilezas que requerem uma discussão mais detalhada, além de situar o CML no debate atual sobre o problema do livre-arbítrio e do determinismo. Este é o objetivo deste texto.

1. O CML e o problema do livre-arbítrio e do determinismo

Antes de começar, permita-me formular brevemente o problema do livre-arbítrio e do determinismo. Este problema não deve ser confundido com o problema do livre-arbítrio, isto é, o problema de haver ou não livre-arbítrio. O problema do livre-arbítrio e do determinismo — vou chamar-lhe de agora em diante de “o problema da compatibilidade” — é o de investigar as relações conceituais entre as teses do livre-arbítrio e do determinismo. Em outras palavras, é o problema de saber se o livre-arbítrio é compatível com o determinismo. Este problema é independente de saber se há livre-arbítrio. Por “independente” quero dizer que a resposta ao problema da compatibilidade não prova nem refuta a tese de que há livre-arbítrio. Há duas respostas principais ao problema da compatibilidade:

Suponha que o incompatibilismo seja verdadeiro. Isso por si só não refuta a tese de que há livre-arbítrio. Precisaríamos da tese adicional de que o determinismo é verdadeiro. (Naturalmente, o incompatibilismo por si só não prova a tese de que existe livre-arbítrio). Agora suponha que o compatibilismo seja verdadeiro. Mesmo que seja possível que o livre-arbítrio exista e o determinismo seja verdadeiro, disso não se segue que tenhamos efetivamente livre-arbítrio, pelo mesmo motivo que não se segue que Guimarães Rosa é chinês porque poderia ter nascido na China. Embora o determinismo não exclua o livre-arbítrio, pode ser que não tenhamos livre-arbítrio por outro motivo: onisciência divina, determinismo lógico,1 etc. (Naturalmente, o compatibilismo por si só não refuta a tese de que há livre-arbítrio). O que acontece é que geralmente as principais teorias oferecem respostas a ambos os problemas. Por exemplo, o libertismo é tese de que o incompatibilismo é verdadeiro e que há livre-arbítrio. As teorias libertistas oferecem respostas a ambos os problemas. Por outro lado, o determinismo radical é a tese de que o incompatibilismo é verdadeiro e a tese determinista é verdadeira. O determinismo moderado, por sua vez, defende que embora o determinismo seja verdadeiro, a tese compatibilista também é verdadeira.

O CML é, assim, uma teoria compatibilista e, como tal, não oferece uma resposta ao problema de saber se há livre-arbítrio. Talvez a maneira mais natural de apresentá-la em detalhes seja por meio do problema filosófico que ela procura solucionar. Um problema filosófico pode ser apresentado como um conjunto de proposições que, tomadas individualmente, são muito plausíveis, mas que conjuntamente formam um conjunto inconsistente. Considere as seguintes proposições:

  1. O determinismo é verdadeiro.
  2. Temos o poder de agir diferentemente daquilo que agimos.
  3. Não temos o poder de mudar o passado.
  4. Não podemos violar as leis da natureza.

Vamos chamar o conjunto cujos elementos são as proposições acima de “C”. Como podemos observar, o conjunto C não é explicitamente inconsistente. Isto é, a conjunção de 1–4 não resulta numa contradição. No entanto, alguém poderia argumentar2 que o conjunto C é implicitamente inconsistente, no sentido de que há uma proposição necessariamente verdadeira tal que, se fosse adicionada ao conjunto, resultaria num conjunto inconsistente. Essa proposição pode ser uma conjunção de várias proposições. A maioria dos filósofos incompatibilistas, nomeadamente aqueles que estão persuadidos pelo argumento da consequência, pensa que a seguinte proposição faz de C um conjunto inconsistente:

  1. Necessariamente, se o determinismo é verdadeiro e não temos o poder de violar as leis da natureza e o poder de alterar o passado, então não podemos agir diferentemente daquilo que agimos.

Por que alguém pensaria que 5 é verdadeira? Conforme já indiquei, geralmente pensa-se que 5 é verdadeira em virtude do argumento da consequência, do qual falaremos a seguir.

2. O argumento da consequência

O argumento da consequência é, na visão de boa parte dos filósofos, o argumento mais poderoso a favor do incompatibilismo. Foi apresentado originalmente por Peter van Inwagen (1975) e Carl Ginet (1983) e há uma enorme bibliografia sobre ele (veja a lista de referências ao final deste texto). Para apresentar o argumento, antes de tudo, precisamos definir o termo "determinismo”:

Um mundo é determinista sse não há qualquer outro mundo com as mesmas leis da natureza que num dado momento do tempo seja igual a esse mundo, mas diferente em outro momento3

Suponha que “L” seja a abreviação de uma frase que expresse a conjunção de todas as leis da natureza e “P0” a abreviação de uma frase que expresse uma proposição verdadeira no tempo t0, antes da existência de agentes capazes de realizar ações. Suponha que P seja uma proposição verdadeira para algum momento do tempo. Dada a definição acima de “determinismo”, se o determinismo é verdadeiro, segue-se que, necessariamente, L e P0 implicam P. Ou seja, para todos os mundos com as mesmas leis da natureza, se eles são iguais no tempo t0 então eles são iguais para todo o tempo t.

O que é importante a ser considerado do raciocínio acima é que, se o determinismo é verdadeiro, então as proposições acerca das nossas ações são a consequência das leis da natureza e do passado.

Vejamos agora uma versão simplificada do Argumento da Consequência (cf. Beebee 2003):

  1. Se o determinismo é verdadeiro, as proposições acerca das nossas ações se seguem de L e P0.
  2. Não temos o poder de alterar o valor de verdade de P0.
  3. Não temos o poder de alterar o valor de verdade de L.

Logo,

  1. Não temos o poder de alterar o valor de verdade daquilo que se segue de P0 e L.

Logo,

  1. Não temos o poder de alterar o valor de verdade das proposições acerca das nossas ações.

Como vimos, 6 se segue da tese do determinismo. 7 e 8 parecem se seguir das teses 3 e 4 com as quais o compatibilista de milagre local está comprometido. Assim, se 10 é verdadeira, então não podemos agir diferentemente daquilo que agimos, o que contradiz a tese 2. Portanto, se o argumento da consequência é cogente, o conjunto C é implicitamente inconsistente.

Como o compatibilista de milagre local responde a este argumento?

3. Somos livres para violar as leis da natureza?

De acordo com o CML, o problema está na expressão “poder alterar o valor de verdade de L”. Como David Lewis notou muito bem (1981), este é um linguajar técnico para o qual não há um claro correspondente em linguagem natural. E mesmo que houvesse, não importaria o que esta expressão quer dizer em linguagem natural. Da maneira que van Inwagen a introduziu nas discussões, tudo o que importa para os propósitos do argumento da consequência é que ofereçamos qualquer definição na qual as premissas do argumento sejam defensáveis sem circularidade viciosa. (Para uma discussão aprofundada, veja Huemer 2000.)

Lewis argumenta que van Inwagen se equivoca na premissa 8. Considere o seguinte:

A diferença entre as definições 1 e 2 pode não ser cristalina à primeira vista. De acordo com a primeira, a ação do agente é contrafactualmente suficiente para a falsidade de L. De acordo com a segunda, a ação causa um evento que viola L. É claro que precisamos tornar as coisas aqui um pouco mais precisas.

Suponha que estejamos usando, no argumento, a def. 1. Para a premissa ser verdadeira, L tem de ser verdadeira e ninguém ser capaz de realizar qualquer ação que seja contrafactualmente suficiente para a falsidade de L. Lewis pensa, no entanto, que esta premissa é falsa. Para entender o porquê, precisamos ter em mente a sua análise de condicionais contrafactuais que emprega uma semântica de mundos possíveis.

3.1 A análise de Lewis de contrafactuais

De acordo com Lewis,

O que Lewis quer dizer com a expressão “mundos mais próximos”? “Proximidade” aqui significa similaridade. Os mundos mais próximos do atual são aqueles que são mais similares ao mundo atual. É importante notar que Lewis se apoia na noção intuitiva e cotidiana de similaridade, uma noção que aplicamos a coisas como mesas, cadeiras, pessoas, cidades, países, e – por que não? – mundos possíveis.4

Antes do advento da semântica de mundos possíveis para condicionais contrafactuais, assumia-se em geral que o conceito de leis da natureza deveria de alguma forma aparecer no analysans (cf. Goodman 1947). Ou seja, uma teoria do tipo de Goodman seria mais ou menos assim (cf. Bennett 1984):

“Se A fosse o caso, então B seria o caso" é verdadeira se e só se B é derivável pelas leis da natureza em conjunção com proposições verdadeiras tais que…

Como Bennett nos diz, o problema de preencher o espaço em branco é tal que Goodman nunca conseguiu resolvê-lo. Lewis, no entanto, rompeu com esta tradição. Numa passagem famosa, afirmou que uma vez que as leis da natureza têm um estatuto especial na análise dos contrafactuais, esse estatuto não precisa ser dado por estipulação, mas por meio de um argumento. Lewis, como poderíamos esperar, ofereceu tal argumento.

3.2 O problema dos mundos deterministas

Em primeiro lugar, qual seria este estatuto? Ora, parece inegável que a similaridade entre os mundos com relação às leis da natureza é um aspecto importante para que se avalie a similaridade entre eles. Mas quão importante é esse aspecto? Comparemos as leis da natureza com as questões de fato particular – isto é, fatos sobre quais são os objetos particulares que existem, quais são as propriedades que instanciam, e quais são as relações que têm entre si. Para usar um exemplo de Jonathan Lowe, suponha que eu segure uma pedra em minha mão e esteja considerando a contrafactual “se eu tivesse soltado a pedra há um momento, ela teria caído ao chão”. Há muitos mundos nos quais eu solto a pedra e ela não cai ao chão porque diferem do atual com relação às questões de fato particular; por exemplo, há mundos nos quais alguém pega a pedra imediatamente quando eu a solto ao chão, mundos nos quais uma rede impede a pedra de cair ao chão, etc. Não obstante, se nenhuma dessas possibilidades ocorre no mundo atual, parece que nenhum desses mundos figura entre os mais próximos do atual. Por outro lado, há mundos nos quais solto a pedra e ela não cai porque diferem do atual com relação às leis da natureza; por exemplo, há mundos nos quais a lei da gravidade não existe. Mas, de novo, parece natural não considerar esses mundos como os mais próximos do atual, pois eles diferem com relação às leis da natureza, diferença esta que é importante para a semelhança geral entre mundos.

Suponha, entretanto, que o mundo atual seja determinista. Mesmo assim, pelo menos algumas contrafactuais serão verdadeiras. Seja P a proposição expressa por “deixo a pedra cair da minha mão”, suponha que no mundo atual, conforme o exemplo acima, eu não tenha deixado a pedra cair, isto é, suponha que não-P em ma. Agora considere todos aqueles mundos mais próximos do atual nos quais deixo a pedra cair. Como vimos, alguns desses mundos vão concordar com o atual com relação a algumas questões de fato particular; por exemplo, não há uma rede que irá impedir a pedra de cair, ninguém está por perto para não deixá-la cair ao chão, etc. E também parece plausível dizer que eles têm as mesmas leis da natureza. Entretanto, eis o problema: se os mundos mais próximos ao atual concordam com relação a pelo menos um instante do tempo, então, dada a nossa definição de “determinismo”, se eles têm as mesmas leis da natureza, esses mundos vão concordar com o atual para todo o instante do tempo! Consequentemente, esses mundos serão idênticos ao atual e não serão mundos nos quais deixo a pedra cair. Por outro lado, se dissermos que esses mundos têm as mesmas leis da natureza e diferem com relação a pelo menos uma questão de fato particular, então, em virtude novamente da nossa definição de “determinismo”, esses mundos vão discordar em todo o instante do tempo. E, claro, é extremamente implausível considerar como mais próximos do mundo atual os mundos com as mesmas leis da natureza que discordam do atual em toda a sua história causal.

Seguindo a manobra de Lewis, em casos como este, a opção mais óbvia para se esquivar do problema é considerar como “mais próximos” aqueles mundos que são indiscerníveis do atual até ao instante do tempo em que deixo a pedra cair, e que então divergem do atual com relação às leis da natureza por aquilo que Lewis chama de “milagre de divergência”, ou seja, uma violação da leis L. Note que isto não é o mesmo que dizer que ao deixar a pedra cair, eu esteja violando as leis L daquele mundo. Isso é impossível; as leis da natureza são invioláveis por estipulação. Suponha que eu deixe a pedra cair no mundo m1.

“Um milagre em m1 relativo a ma é uma violação em m1 das leis de ma, leis que são na melhor das hipóteses as quase-leis de m1" (Lewis 1979).

A ideia, então, é que temos de permitir milagres de divergência se quisermos admitir que algumas condicionais contrafactuais sejam verdadeiras (como parece ser o caso) em mundos deterministas. Assim, não podemos considerar que a ausência de um milagre, no sentido acima, seja mais importante com relação à similaridade geral entre mundos do que as questões de fato particular até o instante de tempo ao qual P pertence.

4. A resposta de Lewis ao argumento da consequência

Depois desse interlúdio, espero que seja óbvio ao leitor qual será a resposta de Lewis ao argumento da consequência. Considere novamente:

Se utilizarmos a def. 1, a premissa 8 do argumento da consequência é falsa e o argumento, consequentemente, não é sólido. De acordo com o cenário no qual seguro a pedra, há algo que posso fazer tal que, se eu fizesse, L seria falsa, nomeadamente, soltar a pedra. A falsidade da premissa 8 do argumento da consequência se segue da afirmação de que eu poderia soltar a pedra em conjunção com a análise de Lewis de contrafactuais,5 como vimos.

E o que acontece se aceitarmos a def. 2? Lewis diz que a premissa entendida desta maneira é verdadeira. Entretanto, o argumento da consequência não seria válido. Para entender isso em mais detalhes, peço ao leitor paciência para considerar a teoria contrafactual de Lewis da causação. Primeiramente, precisamos entender a noção de dependência causal.

A dependência causal entre eventos atuais é suficiente, mas não necessária, para a causação. E a razão é simples. Suponha que c cause e, e suponha que e cause f. Como Lewis pensa — controversamente! — que a relação de causação é transitiva, teríamos de dizer que c também causa f. O problema, entretanto, é que isso não se segue da noção de dependência causal, pois o silogismo hipotético contrafactual é uma inferência inválida na semântica lewisiana. Isto é, é verdadeiro que, se c não acontecesse, e não ocorreria, e se e não acontecesse, f não ocorreria, mas disso não se segue que se c não acontecesse, f não ocorreria. Precisamente por isso, Lewis introduz a noção de cadeia casual, que é definida como uma sequência de eventos atuais <_c, d, e,_…> tal que d depende causalmente de c, e depende de d, e assim por diante… Agora “causação” se define assim:

Tendo isso em mente, eis a questão: há alguma ação que possamos realizar tal que ela cause ou seja uma violação das leis L? Talvez você esteja tentado a dizer que sim. Voltemos ao exemplo da pedra. Parece haver dependência causal. (A) Se eu tivesse soltado a pedra, o milagre de divergência m teria ocorrido. E (B) se eu não tivesse soltado a pedra, o milagre de divergência m não teria ocorrido. Iremos dizer que a minha ação causou o milagre de divergência?

Não… O problema é que (A) é falsa. Se eu tivesse soltado a pedra, é verdadeiro que um milagre ou outro teria ocorrido. Mas não há o milagre da divergência em particular que teria ocorrido. Ou seja, pode ser que m, em particular, não tenha ocorrido, mas outro milagre n sim. E na semântica de Lewis, a contrafactual é falsa quando há pelo menos um mundo mais próximo ao atual no qual a antecedente é verdadeira e a consequente falsa.

Assim, de acordo com def. 2., a premissa do argumento da consequência é verdadeira. Mas o argumento é inválido… 9 não se segue de 7 e 8 considerando a def. 2. Portanto, o argumento da consequência é falacioso porque comete a falácia do equívoco. (Deixo ao leitor o trabalho de mostrar por que 9 não se segue de 7 e 8 dado a def. 2.)7

Desta maneira, Lewis é capaz de traçar uma distinção entre capacidades fortes e fracas. Uma capacidade fraca é entendida assim:

E isto é diferente de uma capacidade forte.

5. Objeções ao CML

A exposição de uma teoria filosófica nunca é completa sem uma seção de objeções. A objeção ao CML que mais recebeu atenção no debate atual é a de Helen Beebee (2003). Nesta seção apresentarei a interessante objeção de Beebee, assim como minha resposta a ela. Indicarei como o CML pode ser melhorada e expandida de modo a superar esta dificuldade.

5.1 A objeção de Helen Beebee

Qual o problema do CML de acordo com Beebee?

“[O CML] não oferece qualquer razão para supor que é impossível para as agentes violar as leis em mundos deterministas. Nem oferece qualquer razão para supor que, ao assumir o determinismo, somos incapazes de violar as leis. E é isto que destrói a suposta refutação de Lewis ao argumento da consequência, e torna o compatibilismo de milagre local insustentável" (2003: 268).

Beebee prossegue construindo um cenário para mostrar que o CML não exclui a possibilidade de agentes terem capacidades no sentido forte, isto é, fazer coisas que sejam ou causem violações de leis da natureza:

“Suponha que o determinismo seja verdadeiro, e suponha que eu esteja num leilão de imóveis. Meu oponente acabou de dar uma oferta um pouquinho acima do preço que eu tinha decidido que seria a minha oferta máxima. Mas eu realmente quero a casa, e tenho de tomar rapidamente a decisão sobre se levanto ou não a minha mão, uma vez que o martelo do leiloeiro irá bater em instantes. Decido não levantar a minha mão”. (2003: 268)

Sobre este cenário, Beebee nos pergunta: embora ela não tenha levantado a sua mão, seria ela capaz de fazer isso? De acordo com o CML, parece que sim, uma vez que esta é uma capacidade comum que as agentes geralmente possuem. E o milagre de divergência não seria a sua ação, nem seria causado por sua ação. Até aqui tudo bem. Entretanto, o problema surge quando consideramos qual seria o milagre de divergência:

“Considere o evento (não-atual) M, minha decisão de levantar minha mão. Não há qualquer razão para supor que o mundo mais próximo no qual levanto a minha mão não possa ser um mundo onde M é o milagre de divergência, e portanto um evento que viole leis. Neste caso, se tenho a capacidade para fazer M, então esta capacidade é uma capacidade no sentido forte”. (2003: 269)

Mas por que seria problemático para o CML não conseguir excluir a possibilidade de capacidades no sentido forte? o CML poderia ter apenas a modesta ambição de oferecer uma teoria para mostrar que é possível que pelo menos um agente age diferentemente daquilo que agiu num mundo determinista (veja Graham, 2010). Se isto é correto, então os defensores do CML poderiam apenas dizer que o cenário de Beebee mostra uma situação na qual não podemos agir diferente daquilo que agimos, contrariamente à intuição original. o CML não tem de acomodar todas as nossas intuições; pode muito bem acontecer de haver casos em que pensamos ter a capacidade para agir de outro modo e que, com efeito, não a tenhamos.

O problema com esta linha de resposta é que o mesmo tipo de cenário pode ser construído para qualquer capacidade no sentido fraco. Na minha visão, tanto Oakley (2006) quanto Graham (2008) falham ao formular da melhor maneira a objeção de Beebee, e precisamente por isso vou desconsiderar a resposta de ambos à sua objeção.

A ideia principal de Beebee é a de que nenhuma das principais teorias acerca das leis da natureza corrobora a distinção de Lewis entre as capacidades forte e fraca. Consideremos brevemente apenas três dessas teorias: o Essencialismo Disposicional, a Teoria dos Melhores Sistemas e a teoria de Dretske-Tooley-Armstrong. De acordo com a primeira, as leis da natureza são metafisicamente necessárias e, portanto, não há qualquer sentido no qual possamos violar as leis da natureza. Se as leis da natureza são necessárias, não há nada que possamos fazer com relação a isso, de modo que não temos a capacidade no sentido fraco. De acordo com a Teoria dos Melhores Sistemas (BSA), Beebee acredita que a teoria mina esta distinção (veja também Beebee 2002, Beebee & Mele, 2002), pois de acordo com a BSA as agentes como nós são capazes de violar as leis no sentido forte também. Por último, de acordo com a teoria de Dretske-Tooley-Armstrong, é uma impossibilidade conceitual violar as leis no sentido forte, e se o CML permite isso, tanto pior para ela.

Obviamente que a réplica acima merece um desenvolvimento mais detalhado, mas para isso precisaríamos de uma exposição precisa dessas teorias e suas respectivas consequências para o problema da compatibilidade, o que é motivo para outro texto. (Para mais detalhes, veja Cartwright & Merlussi no prelo.)

Beebee está correta ao dizer que as principais teorias sobre as leis não corroboram a distinção de Lewis. E também está corretíssima ao explorar esta característica da semântica lewisiana para contrafactuais. Entretanto, penso que o CML pode ser expandida de modo a mostrar por que o contraexemplo falha.

Minha sugestão aos defensores do CML é combinar esta teoria com uma teoria causal da ação. Este tipo de teoria nos diz que o que conta como uma ação é aquilo que é causado, de maneira apropriada, por estados mentais envolvendo um agente. Há uma enorme discordância entre os teóricos da teoria causal sobre quais estados mentais causam a ação; e.g., crenças, desejos, comprometimentos, intenções (cf. Miltenburg & Ometto 2016). Isso não é importante para os nossos propósitos, no entanto. Consideremos brevemente uma dessas teorias, a primeira das teorias desenvolvidas por Davidson, somente a título de exemplo.

5.2 Uma teoria causal da ação

A ideia aqui é começar pela distinção entre as ações intencionais e os meros eventos corpóreos dos quais os agentes não têm controle algum — por exemplo, um mero reflexo do seu joelho causado pelo martelinho do médico. A primeira teoria desenvolvida por Davidson admite — como os teóricos da teoria causal – a relação de equivalência entre agir intencionalmente e agir por razões, isto é,

Consequentemente, ao oferecer uma teoria acerca do que é agir de acordo com uma razão, Davidson oferece uma explicação do que é agir intencionalmente. Eis o que Davidson diz:

“Sempre que alguém faz alguma coisa por uma razão […] ele pode ser caracterizado como (a) tendo um tipo de pró-atitude diante da ação de um certo tipo, e (b) acreditando (ou sabendo, percebendo, notando, lembrando) que sua ação é daquele tipo […]

Dar a razão do porquê um agente fez algo é, amiúde, uma questão de nomear a pró-atitude (a) ou a crença relacionada (b) ou ambos; permita-me chamar este par de a razão primária do porquê o agente realizou a ação […]

A razão primária para uma ação é a sua causa." (Davidson, 1963: 685–686)

Há evidência textual na nota de rodapé 6 do artigo de Davidson para formular a conjunção de (a) e (b) como uma condição necessária para uma agente agir por uma razão:8

Dado (I) e (II), podemos inferir:

O único problema acima é que III apenas oferece uma condição necessária do que é agir intencionalmente. Se quisermos uma análise, teremos de incluir a cláusula de que a ação é causada “de maneira apropriada”. Esta complicação pode ser deixada de lado para os nossos propósitos.

O que é importante aqui é que aquilo que faz a agente ter controle sobre sua ação é precisamente a ideia de sua ação ser causada, de maneira apropriada, por seus estados mentais; de acordo com a teoria acima, pelo par desejo/crença. Quando você vai ao médico e ele bate com um martelo no seu joelho, causando aquele movimento involuntário, isso não conta como uma ação sobre a qual você tem controle, precisamente porque a sua ação não foi causada de maneira apropriada pelo par desejo/crença.

5.3 Respondendo à objeção de Beebee

O objetivo agora é colocar a teoria causal da ação em jogo com o CML. Vejamos de novo o contraexemplo de Beebee:

“Suponha que o determinismo seja verdadeiro, e suponha que eu esteja num leilão de imóveis. Meu oponente acabou de dar uma oferta um pouquinho acima do preço que eu tinha decidido que seria a minha oferta máxima. Mas eu realmente quero a casa, e tenho de tomar rapidamente a decisão sobre se levanto ou não a minha mão, uma vez que o martelo do leiloeiro irá bater em instantes. Decido não levantar a minha mão”. (2003: 268)

“Considere o evento (não-atual) M, minha decisão de levantar minha mão. Não há qualquer razão para supor que o mundo mais próximo no qual levanto a minha mão não possa ser um mundo onde M é o milagre de divergência, e portanto um evento que viole leis. Neste caso, se tenho a capacidade para fazer M, então esta capacidade é uma capacidade no sentido forte”. (2003: 269)

Dada a teoria causal da ação, há uma razão para o mundo mais próximo no qual ela levanta a sua mão não ser um mundo onde M é o milagre de divergência. A decisão de não levantar a mão tem de ser causada de maneira apropriada pelos estados mentais relevantes. A afirmação de que as razões de Beebee causaram a sua decisão, de acordo com a teoria lewisiana da causação, acarreta que

A) se Beebee tivesse razões para decidir não levantar a mão, então ela decidiria não levantar a mão.

O problema é que a história causal do mundo onde ela decide levantar a mão é indiscernível da história causal do mundo atual até o momento onde M ocorre. Portanto, trata-se de um mundo onde Beebee tem razões para decidir não levantar a sua mão, tal como no atual. Entretanto, se mesmo assim M ocorre, A é falsa, pois é um mundo onde ela tem razão para decidir não levantar a mão e mesmo assim decide levantá-la. Isso, contudo, é inconsistente com o cenário, pois A é claramente verdadeira, dado que o antecedente e o consequente são verdadeiros.

Se a causação fosse não-determinística, como libertistas requerem, as razões que Beebee possui para decidir levantar a mão e decidir não levantar a mão poderiam ser ambas causalmente ativas. Por exemplo, pode ser que Beebee tenha decidido não levantar a mão porque suas razões para tal sejam mais fortes, traduzindo-se – digamos – numa maior probabilidade de decidir não levantar a mão ao invés de decidir não levantá-la. Assim, se a causação fosse não-determinística, Beebee poderia também decidir levantar a mão, pois haveria uma probabilidade objetiva de que as razões que ela tem para decidir levantar a mão se tornassem causalmente ativas. Mas Beebee não tem esta opção, dado que o CML é uma teoria compatibilista e a causação neste caso tem de ser determinística.

O ponto geral dessa objeção tem a ver com algo que Lewis já havia antecipado: a capacidade de fazer M acontecer não pode ser uma capacidade forte, pois como M está ausente do curso atual de eventos, um outro milagre de divergência teria de ocorrer anteriormente a M. O problema é que, da maneira como está, a resposta de Lewis nos leva a uma regressão viciosa. Como Beebee nota corretamente:

“[…] esta resposta não pode estar certa de maneira alguma, pois ela leva a uma regressão viciosa. Suponha que aceitemos esta resposta: tem de haver um milagre de divergência anteriormente a M. Mas o que vale para M vale para qualquer milagre de divergência também: uma vez que aquele evento está (por definição) ausente do curso atual de eventos, tem de haver algum milagre de divergência N anterior à sua ocorrência, de modo que, obviamente, poderíamos então aplicar o mesmo raciocínio, ad infinitum”. (2003, 270)

Contudo, quando consideramos a teoria causal da ação, podemos bloquear o regresso vicioso. Um milagre teria de ocorrer anteriormente a M precisamente porque se M ocorresse e não houvesse um milagre de divergência anterior, (A) seria falsa, o que não pode ser o caso, já que a decisão de Beebee de não levantar a mão foi deterministicamente causada por suas razões.9

Poder-se-ia objetar que a decisão de levantar a mão pode ocorrer espontaneamente, algo que seria uma propriedade space-invader (Handfield, 2001). Seja X uma propriedade que é instanciada ao mesmo tempo que o evento d. X é uma propriedade que tem o poder de inibir o processo causal de que d normalmente leva a eventos e. Entretanto, este tipo de objeção não funcionará porque, se X ocorre espontaneamente, digamos a decisão, então não tem causa, o que nos leva ao problema anteriormente apresentado.

A resposta mais natural parece ser a rejeição da teoria causal da ação. Esta é uma manobra viável para Beebee, pois ela poderia adotar outra teoria, como a teoria da causação do agente. Eu particularmente não penso que esta seja uma via promissora porque as teorias da causação do agente requerem a verdade do indeterminismo (veja Clarke e Capes 2013). Uma via mais promissora talvez seja apresentar os inúmeros problemas da teoria contrafactual da causação que apresentei acima, mas esta discussão irá divergir demasiadamente dos propósitos deste texto. Minha conclusão é a de que há uma via plausível para os defensores do CML, ao combiná-la com alguma teoria causal da ação.

6. Conclusão

O CML é uma teoria promissora que enfrenta uma objeção séria, que talvez seja evitada ao ser expandida com uma teoria causal da ação. O objetivo deste texto, entretanto, não foi o desenvolver uma resposta completa aos problemas principais do CML. Mas a partir desta breve apresentação, ao menos vimos que o problema da compatibilidade lida com questões centrais em filosofia, como contrafactuais, causação, leis da natureza, ações, etc. Este texto foi apenas uma breve apresentação de uma teoria influente sobre o problema. A seguir o leitor encontra uma lista de referências centrais caso queira se aprofundar.

Pedro Merlussi

Referências

Notas

  1. Isto é, a tese de que o princípio de bivalência vale para todas as proposições, incluindo proposições acerca de nossas ações futuras. ↩︎︎

  2. Como Plantinga em Deus, a Liberdade e o Mal. ↩︎︎

  3. Agradecimentos a Desidério Murcho por formular esta definição de John Earman de maneira muito mais clara. ↩︎︎

  4. Lewis (1979) nos diz que não devemos exagerar o escopo de sua confiança na noção intuitiva de similaridade. Veja também Bennett (1984). ↩︎︎

  5. E também a visão de que as leis da natureza são contingentes, tese que o essencialismo disposicional de Alexander Bird (2007) rejeita, mas isso é assunto para outra discussão. ↩︎︎

  6. Esta definição de “dependência causal” parece corresponder à definição de Hume de “causação”. Mas como não estamos interessados neste texto em saber o que Hume realmente pensava, vamos deixar esta discussão de lado. ↩︎︎

  7. Resposta. Vejamos novamente a inferência em questão.

    7. Não temos o poder de alterar o valor de verdade de P0.
    8. Não temos o poder de alterar o valor de verdade de L.

    Logo,

    9. Não temos o poder de alterar o valor de verdade daquilo que se segue de P0 e L.

    P, a proposição de que levanto a minha mão, é uma verdadeira em algum instante do tempo, e segue-se de P0 e L se P0 e L são verdadeiras num mundo determinista. Suponha que este seja o caso. Entretanto, é falso que não temos o poder de alterar o valor de verdade de P. De acordo com o CML, tenho o poder de realizar uma ação que seja causalmente suficiente para a falsidade de P. Isto é, (A) se eu tivesse levantado a minha mão, P seria verdadeira e (B) se eu não tivesse levantado a minha mão, P não seria verdadeira. Dado que 9 é falso e 7 e 8 são verdadeiras, temos um caso em que as premissas são verdadeiras e a conclusão falsa. Portanto, a inferência é inválida. ↩︎︎

  8. Isto porque Davidson já estava ciente do problema conhecido como a cadeia causal desviante. A respeito disso, veja McCullagh 1974, 201. ↩︎︎

  9. Problema adicional a ser pensado: Beebee se compromete com a verdade de um condicional retroativo. Se ela tivesse levantado a mão, ela teria decidido fazer isso. O tempo no qual o consequente ocorre é anterior ao do antecedente. Isso é algo inaceitável para a teoria de Lewis. ↩︎︎

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ISSN 1749-8457