O discurso sobre construção social está na moda. Mas o que significa e qual o seu propósito?
A ideia central parece razoavelmente clara. Dizer que algo é socialmente construído é dar ênfase à sua dependência relativamente a aspectos contingentes da nossa existência social. É dizer: isso não poderia ter existido se não o tivéssemos construído; e não precisávamos de o ter construído, de modo algum, pelo menos não na sua forma presente. Se fôssemos outro tipo de sociedade, tivéssemos outras necessidades, valores ou interesses, poderíamos muito bem ter construído algo de tipo diferente, ou construído essa mesma coisa diferentemente. O contraste inevitável se dá com um objeto que existe naturalmente, algo que existe independentemente de nós e em cuja formação não tivemos intervenção.
Há certamente muitas coisas, e fatos acerca dessas coisas, que são objeto de construção social no sentido especificado por essa ideia nuclear: o dinheiro, a cidadania e os jornais, por exemplo. Nenhuma dessas coisas poderia ter existido sem a sociedade e cada uma delas poderia ter sido construída de modo diferente, se o tivéssemos decidido.
Entretanto, como Ian Hacking corretamente observa na sua recente monografia, The Social Construction of What? (1999), o discurso sobre a construção social é frequentemente aplicado não só a itens mundanos — coisas, tipos e fatos — mas também às nossas crenças acerca desses itens. Considere o livro The Social Construction of Women Refugees (1992), de Helene Moussa. Claramente, a intenção que preside ao livro não é a de insistir no fato óbvio de que algumas mulheres se tornam refugiadas em virtude de acontecimentos sociais. Ao invés, a ideia é denunciar o modo pelo qual uma crença particular foi moldada por forças sociais: a crença de que há um tipo particular de pessoa — a mulher refugiada — digno de ser distinguido de outros, a fim de receber atenção especial.
O discurso sobre a construção social da crença, entretanto, exige algum desenvolvimento da sua ideia nuclear. Pois é simplesmente uma verdade trivial acerca de qualquer crença que tenhamos que não foi necessário termos acabado por adotá-la e que poderíamos não o ter feito caso fôssemos diferentes do que efetivamente somos. Considere a crença que temos de que os dinossauros outrora vaguearam sobre a Terra. Obviamente, não era inevitável que acabaríamos por chegar a ter essa crença. Poderíamos nunca ter considerado essa questão. E, depois de a termos considerado, poderíamos ter chegado a uma conclusão diferente por variadíssimas causas: poderíamos não estar interessados na verdade; poderíamos não ter sido suficientemente inteligentes para descobrir a resposta; poderíamos nunca nos ter deparado com os indícios relevantes (o registro fóssil).
Essas observações apresentam-nos diversos sentidos enfadonhos segundo os quais qualquer crença pode ser considerada dependente de fatos contingentes acerca de nós. A questão importante diz respeito ao papel do social, depois de todos esses fatores terem sido levados em consideração: ou seja, mantendo fixas as nossas capacidades e inteligência, e dado o nosso interesse na questão e o nosso desejo de descobrir a verdade acerca dela, e dada a nossa exposição aos indícios relevantes, será que ainda precisamos de invocar valores sociais contingentes para explicar a razão de acreditarmos que existiram dinossauros? Se a resposta for “Sim” — for verdade que outra sociedade, diferindo da nossa somente nos seus valores sociais, teria chegado a uma crença diferente e incompatível — então poderíamos afirmar que a nossa crença em dinossauros é uma construção social.
É crucial, portanto, que por um lado se distinga entre uma afirmação construtivista quanto a coisas e fatos e, por outro, uma afirmação quanto a crenças, pois se tratam de classes distintas de afirmações e têm de ser justificadas de maneiras diferentes. A primeira corresponde à afirmação metafísica de que algo é real mas criado por nós; a segunda corresponde à afirmação epistêmica de que a explicação correta da razão por que temos uma dada crença particular tem a ver com o papel que essa crença desempenha em nossas vidas sociais, e não exclusivamente com os indícios apresentados em seu favor. Cada tipo de afirmação é interessante à sua própria maneira.
Tendo demonstrado que uma coisa é socialmente construída no primeiro sentido, seguir-se-ia que não transgredimos qualquer lei da natureza ao tentar nos livrarmos dela (o que não é o mesmo que dizer que seria fácil fazê-lo — considere Manhattan). Caso se mostrasse que uma crença nossa era socialmente construída no segundo sentido, daí se seguiria que poderíamos abandoná-la sem medo de cairmos na irracionalidade: se temos a crença não por haver indícios adequados em seu favor, mas porque ter essa crença serve a um dado propósito social contingente, então caso suceda não partilharmos o propósito social que a crença serve, deveríamos ter liberdade de a rejeitar.
Muito trabalho importante se fez sobre esses tópicos, parece-me, sobretudo no que respeita aos temas do gênero e da raça. Simone de Beauvoir (O Segundo Sexo, 1953) e outras acadêmicas feministas desde então têm esclarecido a medida em que os papéis atribuídos segundo o gênero não são inevitáveis mas antes o produto de forças sociais. Anthony Appiah (Color Conscious: The Political Morality of Race, 1996, com Amy Gutman) tem sido particularmente enérgico em demonstrar que nada de físico ou biológico corresponde às categorias raciais que desempenham um papel ubíquo na nossa vida social; que essas categorias devem a existência mais à sua função social do que aos indícios científicos.
Outras afirmações são mais controversas. Mary Boyle argumentou que a nossa crença na esquizofrenia é uma construção social (Schizophrenia: A Scientific Delusion? 1990). O seu argumento é que não há qualquer boa razão para acreditar que os sintomas geralmente agrupados sob esse rótulo são manifestações de uma única doença subjacente e, portanto, que a busca da neuroquímica pela sua etiologia está condenada. Talvez Boyle tenha razão: a nossa compreensão das doenças mentais está certamente na infância. Por outro lado, parece haver cada vez mais indícios de que os sintomas associados à esquizofrenia são previsíveis consideravelmente antes do início da doença e de que esta é fortemente hereditária. Esses fatos apontam na direção oposta.
Num programa de pesquisa próspero, encontramos a esperada mistura de trabalho importante e contestável. O que é digno de nota, porém, é que enquanto algumas afirmações acerca de construção social particulares podem ser empiricamente controversas, os moldes que exemplificam não são de modo algum filosoficamente controversos. Quer a ideia abstrata de que algumas coisas são criadas pelas sociedades, quer a ideia de que algumas crenças devem mais aos valores sociais do que aos indícios em seu favor, são tão antigas quanto a própria razão. De onde nos vem, nesse caso, a impressão generalizada de que os construtivistas sociais são anti-racionalistas, anti-realistas e anti-objetivistas?
A resposta é que essa impressão não tem origem nas formas das próprias afirmações, nem na sua aplicação a este ou àquele assunto empiricamente discutível. Ao invés, tem origem no desejo de alguns teorizadores importantes dessa tradição em alargar o discurso da construção social a absolutamente tudo e, em particular, aos fatos estudados pelas ciências naturais e às pretensões de conhecimento que delas emanam. Se tivermos de encontrar o caminho através do lodoso campo de batalha onde essas já célebres guerras acerca da ciência estão sendo travadas, será útil observar algumas distinções. Começarei com a afirmação acerca de fatos e coisas.
O dinheiro, a cidadania e os jornais são claramente construções sociais porque, como é óbvio, não poderiam ter existido sem sociedades. Tão óbvio, ao que parece, é o fato de qualquer coisa que pudesse existir — ou que tenha existido — independentemente de quaisquer sociedades não poderia ser socialmente construída: os dinossauros, por exemplo, ou as girafas, ou as partículas elementares que são supostamente os elementos constitutivos da matéria, a que os físicos chamam “quarks”. Como poderiam ter sido socialmente construídas se existiam antes de existirem sociedades?
Porém quando consideramos alguns dos mais proeminentes textos na bibliografia sobre a construção social, encontramos uma avalanche de teses no sentido de que são justamente esses itens, aparentemente independentes da mente e da sociedade, que são construções sociais.
Tome o livro de Andrew Pickering, Constructing Quarks (1984). Como o título sugere, a perspectiva de Pickering é, ao que parece, que os quarks foram socialmente construídos pelos cientistas nos anos 1970, quando o chamado “Modelo Canônico” foi originalmente desenvolvido. E a própria linguagem do texto faz jus a essa aparência:
[...] a realidade dos quarks foi o resultado da prática dos físicos de partículas [...]
Mas como pode isso ser assim? Se os quarks existem — e pressupomos para o que presentemente nos interessa que existem — teriam de ter existido antes de haver quaisquer sociedades. Portanto, como poderiam ter sido construídos pelas sociedades?
Talvez o que Pickering pretende afirmar não corresponda ao que disse; talvez esteja somente propondo uma tese acerca da nossa crença nos quarks e não acerca dos próprios quarks, uma tese que também queremos examinar na ocasião oportuna. Tenha ou não tido Pickering a intenção de fazer uma afirmação acerca do mundo, não obstante, afirmações semelhantes parecem encontrar-se em toda a parte. Eis aqui, só para dar mais um exemplo, Bruno Latour e Steve Woolgar acerca dos fatos estudados pela ciência natural (Laboratory Life: The Social Construction of Scientific Facts, 1979, pp.180–182):
Não queremos dizer que não existem fatos nem que não há uma realidade [...] O que queremos dizer é que o “estar lá fora” é uma consequência do trabalho científico e não a sua causa.
Mas não é fácil dar sentido à ideia de que os fatos sobre partículas elementares ou dinossauros são uma consequência da teorização científica. Como poderia a teorização científica ser a causa da verdade de que houve dinossauros ou que há quarks? Obviamente, a ciência tornou verdadeiro que passamos a acreditar na existência de dinossauros e quarks. Já que acreditamos nisso, agimos como se os dinossauros e os quarks existissem. Se nos permitirmos usar uma linguagem ligeiramente floreada, podemos dizer que no nosso mundo existem dinossauros e quarks, do mesmo modo que poderíamos dizer que, no mundo de Hamlet de Shakespeare, Ofélia se afogou. Assim, ainda nessa linha, poderíamos dizer que a ciência tornou verdadeiro que no nosso mundo há dinossauros e quarks. Mas tudo o que desse modo poderíamos querer dizer de coerente é que a ciência tornou verdadeiro que passamos a acreditar na existência dos dinossauros e dos quarks. E essa ideia ninguém contesta. A despeito de todos os indícios em seu favor, essas crenças podem mesmo assim ser falsas e nada as tornará verdadeiras exceto o fato de que, lá fora, tenha efetivamente havido dinossauros e haja efetivamente quarks. Certamente que a ciência não pode construir essas coisas; quando muito pode descobri-las.
As ideias aparentemente em oferta aqui remontam ao desacreditado “idealismo transcendental” de Immanuel Kant. Segundo a descrição de Kant (ou pelo menos com uma maneira influente de o ler), há um mundo que existe independentemente das mentes humanas, pelo que não precisamos chegar ao ponto de afirmar que criamos o mundo. Mas o mundo é em si desprovido de estrutura: não está dividido em coisas, tipos de coisas ou fatos. Impomos uma estrutura no mundo ao pensar acerca dele de um determinado modo, ao ter um e não outro conjunto de crenças acerca dele.
Há duas maneiras diferentes de compreender a tese kantiana de que impomos uma estrutura no mundo. Do ponto de vista da primeira, fazemos literalmente existir certos tipos de coisas no mundo — montanhas — ao pensar acerca do mundo em termos do conceito “montanha”, ao acreditar que há montanhas. Do ponto de vista da segunda, a estrutura encontra-se inteiramente do nosso lado da demarcação: a afirmação de que há montanhas não é senão uma maneira de falar acerca do que é verdadeiro segundo o nosso esquema conceitual ou jogo de linguagem. Não se trata sequer de tentar fazer uma afirmação acerca de como são as coisas numa dada realidade independente da mente.
A primeira alternativa, aquela de que a linguagem de Pickering e Latour mais se aproxima, é irremediavelmente bizarra. Como poderia a mente dividir o mundo exterior em categorias? Como poderia ela criar coisas e dar-lhes propriedades? E o que sucede se o mundo for dividido de duas maneiras incompatíveis por duas sociedades diferentes? Entre nós há os que acreditam em almas imateriais ao passo que outros não acreditam. Será então que o mundo exterior ao mesmo tempo contém e não contém almas imateriais?
Em textos frequentemente citados por construtivistas sociais, entretanto, Richard Rorty sugeriu que o discurso sobre a construção social de fatos e categorias é perfeitamente cogente, desde que seja compreendido do ponto de vista da segunda alternativa:
Uma razão por que a realidade independente da mente é tão controversa e confusa deve-se a uma ambiguidade na noção de “independência”. [Meus críticos] por vezes [escrevem] como se os filósofos que, como eu próprio, não acreditam em uma “realidade independente da mente” tivessem de negar que havia montanhas antes de as pessoas terem a ideia de “montanha” em suas cabeças e a palavra “montanha” em seus idiomas. Mas isso ninguém nega. Ninguém pensa que há um encadeamento de causas que faz das montanhas um efeito dos pensamentos ou das palavras [...] Supondo que vale a pena falar em montanhas, como efetivamente sucede, uma das verdades óbvias acerca das montanhas é que estavam aqui antes de falarmos acerca delas. Se o leitor não acredita nisso, provavelmente não sabe como jogar os jogos de linguagem que usam a palavra “montanha”. Mas a utilidade desses jogos de linguagem nada tem a ver com a questão da Realidade como Ela Mesma É — independentemente de como é útil aos seres humanos descrevê-la — incluir ou não montanhas.
Rorty está recomendando ao construtivista social que se distancie da afirmação de que causamos a existência de montanhas ao falarmos acerca delas. Segundo Rorty, o modo de formular a ideia é, ao invés, o seguinte: vale a pena adotar certas maneiras de falar em detrimento de outras. Entre as maneiras de falar cuja adoção por nós valeria a pena, encontramos uma segundo a qual há montanhas e existem independentemente dos seres humanos. Contudo, não se pode afirmar, acerca de qualquer maneira de falar, que é mais fiel do que outras ao modo como as coisas são em si e por si mesmas, pois não há um modo de as coisas serem em si e por si mesmas. Há tão somente o modo de falarmos acerca de como as coisas são e o fato de que alguns desses modos de falar servem melhor os nossos propósitos do que outros. É, portanto, correto dizer que não criamos montanhas; essa é uma afirmação sancionada por uma maneira de falar cuja adoção vale a pena. Porém, isso não significa que seja obviamente verdadeiro que há montanhas independentemente de seres humanos; em nenhuma circunstância faz sentido afirmar que seja o que for é obviamente verdadeiro. Tudo o que podemos afirmar inteligivelmente é aquilo que é verdadeiro segundo uma ou outra maneira de falar, sendo que a adoção de algumas dessas maneiras vale a pena para nós.
Esta, porém, é uma perspectiva impossível, como muitos críticos salientaram (veja especialmente A Última Palavra, 1997 de Thomas Nagel e a resenha do livro de Nagel por Bernard Williams publicada em The New York Review of Books, 1998). Primeiro, nem Rorty é bem-sucedido em se distanciar de qualquer compromisso com a ideia de que algumas afirmações são verdadeiras simpliciter, em vez de verdadeiras apenas relativamente a uma ou outra maneira de falar; ele basicamente se compromete com a ideia implausível de que as únicas afirmações que são verdadeiras simpliciter são aquelas afirmações acerca das maneiras de falar que valem a pena adotarmos, o que exclui afirmações que são diretamente acerca de montanhas. Caso contrário, ele não poderia simplesmente asserir, como o faz, que vale a pena falarmos sobre montanhas, mas somente que vale a pena falar que vale a pena falar sobre montanhas, e assim por diante, interminavelmente.
Segundo, se aceitarmos a sua perspectiva de que não há autoridade mais elevada, no que diz respeito a algo ser verdadeiro, do que valer ou não a pena falar disso e se, como Rorty admite, vale a pena dizer que a ciência descobre um mundo preexistente, repleto de montanhas e girafas, então simplesmente não há qualquer perspectiva a partir da qual ele possa também afirmar, como teria de o fazer para dar voz à sua perspectiva peculiar, que não há um mundo preexistente a ser descoberto pela ciência, repleto de montanhas e girafas. Rorty não pode conciliar o inconciliável; mas conciliar o inconciliável é o que a sua perspectiva exige.
Se as considerações anteriores estiverem corretas, o discurso sobre a construção social não se aplica cogentemente aos fatos estudados pelas ciências naturais; será que se sai melhor quando é aplicado às crenças acerca desses fatos produzidos por essas ciências?
O que está em causa não é se a ciência é ou não uma atividade social. É evidente que é. A ciência é levada a cabo coletivamente por seres humanos munidos de valores, necessidades, interesses e preconceitos. E estes podem influenciar o seu comportamento de várias maneiras potencialmente profundas: podem determinar as questões pelas quais as pessoas mostram interesse, em que estratégias de pesquisa depositam as suas esperanças, o que estão dispostas a financiar, e assim por diante.
A perspectiva usual, contudo, é que nada disso importa para a credibilidade de uma afirmação particular produzida pela ciência, caso essa afirmação seja adequadamente apoiada por indícios factuais. Kepler pode ter-se interessado pelo movimento planetário em resultado das suas preocupações religiosas e místicas e, tanto quanto sei, estava fortemente interessado em chegar a um certo resultado. Mas desde que a afirmação a que por fim chegou, de que os planetas se movem em órbitas elípticas, pudesse ser justificada pelos indícios que apresentou em seu favor, não importa como veio a se interessar pela questão, nem que interesses o poderiam ter inicialmente motivado. A perspectiva agora está disponível, reivindicando a nossa atenção, e a única maneira de rejeitá-la é refutar os indícios aduzidos em seu favor. É irrelevante que Kepler não teria encetado a sua pesquisa caso não tivesse preocupações que não partilhamos, ou que poderá ter tido motivos não indiciários para esperar um certo resultado.
Exprimindo isto de outro modo, é comum distinguirmos entre aquilo a que os filósofos da ciência chamam “contexto da descoberta” e aquilo a que chamam “contexto da justificação”. Apesar de ser plausível que os valores sociais desempenhem um certo papel no contexto da descoberta, não é plausível que desempenhem um papel no contexto de justificação. Os construtivistas sociais acerca do conhecimento negam-no; para eles é ingénuo supor que enquanto os valores sociais podem entrar no primeiro contexto, não precisam entrar no segundo.
Ora, como poderiam os valores sociais entrar no contexto da justificação? Há quatro maneiras distintas de articular a ideia que um construtivista poderia ter em mente aqui; embora se possa encontrar as quatro na bibliografia, nem sempre as distinguimos suficientemente entre si.
Para começar, um construtivista poderia defender que não são os indícios factuais os responsáveis pela justificação, mas precisamente os valores sociais de fundo. E embora possa parecer inacreditável que alguém pudesse ter seriamente pensado algo semelhante, não há dúvida de que certas asserções que por aí se faz parecem exigir precisamente essa leitura. Eis uma delas (Kenneth Gergen, “Feminist critiques of science and the challenge of social epistemology,” in Feminist Thought and the Structure of Knowledge, ed. Mary Gergen, 1989):
A validade dos pressupostos teóricos nas ciências não é de modo algum afetada pelos indícios factuais.
Contudo, qualquer pessoa que de fato pense que, digamos, as Equações de Maxwell poderiam ser justificadas apelando-se às crenças sociais ou políticas de Maxwell ou de seja quem for, revelaria uma total incompreensão da noção de justificação. Um item de informação justifica uma determinada crença ao aumentar a probabilidade de ela ser verdadeira. Reconhecidamente, esta não é uma noção isenta de problemas. Mas a menos que a descartemos por completo, é perfeitamente claro que não se pode querer justificar as leis fundamentais do eletromagnetismo apelando às convicções políticas ou interesses profissionais ou seja o que for de semelhante.
Se alguém estiver absolutamente determinado em adotar uma ideia nesta direção, então uma via ligeiramente melhor, e a segunda entre as nossas quatro opções, seria argumentar que, embora os valores sociais não justifiquem as nossas crenças, as coisas que as justificam não são as que nos levam efetivamente a adotá-las; somente nos deixamos persuadir em função dos nossos interesses sociais.
Esta perspectiva, que é praticamente ortodoxia entre os praticantes do que veio a ser conhecido como “estudos sociais da ciência”, tem a vantagem de não proferir absurdos acerca da justificação; mas é apenas ligeiramente mais plausível. Na leitura mais caridosa que podemos fazer, essa perspectiva tem origem numa confusão inócua acerca do que é exigido pelo projeto de dar ao conhecimento científico um tratamento sociológico.
A perspectiva em causa remonta a um dos textos fundadores dos estudos sociais da ciência, Knowledge and Social Imagery (1977), de David Bloor. O raciocínio de Bloor é mais ou menos o seguinte: se desejamos explicar por que certas crenças vêm a ser aceitas como conhecimento num determinado período, não devemos levar em consideração as nossas perspectivas sobre quais dessas crenças são verdadeiras e quais são falsas. Se estamos tentando explicar por que eles sustentaram que uma dada crença é verdadeira, não pode ser relevante sabermos que a crença não é verdadeira. Esse é um dos chamados “Princípios de Simetria” da sociologia do conhecimento: trate as proposições verdadeiras e as falsas simetricamente ao explicar por que elas vieram a ser objeto de crença.
É possível debater os méritos desse princípio, mas em geral me parece sólido. No entanto, como Ian Hacking corretamente salienta, uma coisa é afirmar que as crenças verdadeiras e as falsas devem ser tratadas simetricamente, e algo muito diferente é afirmar que as crenças justificadas e as injustificadas devem ser tratadas de igual modo. Ao passo que poderá ser plausível ignorar a verdade ou falsidade daquilo em que acredito ao explicar por que vim a adotar essas crenças, não é plausível ignorar se dispunha ou não de quaisquer indícios para o fazer. Entretanto, por alguma razão que nunca chega a ser explicada, Bloor e seus colegas parecem pensar que os dois princípios estão em paridade e que ambos são igualmente exigidos pelo projeto de dar um tratamento sociológico à crença científica. Bloor integra ambos na própria base da disciplina:
[A sociologia do conhecimento] seria imparcial no que diz respeito à verdade e falsidade, racionalidade ou irracionalidade, sucesso ou fracasso.
Porém, na ausência de um argumento em favor de se ser cético acerca da própria ideia de algo como boas razões para adotar uma crença — e como poderia haver semelhante argumento que não se refutasse imediatamente a si próprio? — uma das causas possíveis para acreditar no que acredito é dispor de bons indícios para isso. Qualquer enquadramento explicativo que insistisse em tratar simetricamente não só as crenças verdadeiras e as falsas, como também as justificadas e as injustificadas, nos deveria explicar por que razão os indícios para a crença seriam excluídos como uma das suas possíveis causas. E teria de fazê-lo sem anular o seu próprio estatuto como perspectiva que está sendo proposta porque tem justificação.
Obviamente que isso não equivale a dizer que a crença científica tem sempre de ser explicada em termos de indícios de peso reunidos em favor dela; a história da ciência está repleta de exemplos de perspectivas — por exemplo, a frenologia — a favor das quais nunca houve quaisquer bons indícios. Trata-se somente de insistir em como a crença científica deve por vezes ser explicada em termos de indícios fortes e que a história e a sociologia da ciência, propriamente entendidas, no fundo não têm qualquer interesse em negá-lo.
Isso nos leva a uma terceira e mais branda concepção de como os valores sociais poderiam ser indispensáveis para a justificação da crença científica. Segundo essa perspectiva, embora os indícios possam entrar na explicação da razão pela qual se acredita em uma perspectiva particular, jamais podem ser suficientes para explicá-la. Qualquer indício que possamos ter subdetermina invariavelmente a crença específica à qual chegamos com base nele. A lacuna entre aquilo em favor do qual dispomos de indícios e aquilo em que de fato acreditamos tem de ser preenchida por outra coisa, e essa coisa nos é dada pelos valores e interesses de fundo de quem pensa nas teses em causa.
Esta ideia, de que os indícios na ciência invariavelmente subdeterminam as teorias em que acreditamos com base neles, exerceu uma influência considerável na filosofia da ciência, até mesmo em círculos não-construtivistas. Na sua forma moderna, remonta ao pensamento do médico e filósofo francês do final do século XIX, Pierre Duhem. Suponha que uma observação experimental é inconsistente com a teoria em que acredita: a teoria prevê que o ponteiro marcará “10” e o ponteiro, digamos, não se move além do zero. Aquilo para que Durhem nos chamou a atenção é que isso não refuta necessariamente a teoria. Pois a previsão da observação não é gerada meramente com base na teoria, mas também pelo uso de hipóteses auxiliares acerca do funcionamento dos instrumentos usados para fazer a experiência. À luz do resultado recalcitrante da observação, algo tem de ser revisado, mas até agora não sabemos ainda exatamente o quê: talvez seja a teoria, talvez sejam as hipóteses auxiliares. Talvez, na verdade, seja a própria afirmação de que registramos um resultado genuinamente recalcitrante, ao invés de havermos meramente sofrido uma ilusão visual.
Duhem argumentou que a razão não poderia por si só decidir que revisões são necessárias e que, portanto, a revisão de crenças na ciência não poderia ser uma questão puramente racional: algo mais deveria também estar em ação. A isso o construtivista social acrescenta a ideia de que esse elemento extra é algo social.
Trata-se de um argumento engenhoso cujas dificuldades não passam despercebidas por muito tempo. Será realmente verdadeiro que poderíamos ter mais razões para revisar uma das nossas teorias e não outra em virtude da experiência recalcitrante? Considere o exemplo que Duhem dá de um astrônomo observando os céus com o seu telescópio, surpreendendo-se com o que encontra, talvez uma estrela até então indetectada em uma galáxia que ele estava cartografando. Perante essa descoberta, de acordo com Duhem, o astrônomo pode ou revisar a sua teoria astronômica ou a sua teoria acerca de como o telescópio funciona. E os princípios racionais para o estabelecimento de crenças não lhe dizem o que fazer.
Porém, a ideia de que ao observar os céus com um telescópio estamos testando a nossa teoria do telescópio tanto quanto estamos testando as nossas teorias astronômicas é absurda. A teoria acerca do telescópio foi estabelecida por inúmeros experimentos terrestres e se ajusta a um vasto número de outras coisas que sabemos acerca de lentes, luz e espelhos. Simplesmente não é plausível que, ao nos depararmos com uma observação inesperada dos céus, uma resposta racional seria revisar o que sabemos acerca de telescópios! A questão não é que jamais possamos ter ocasião de revisar a nossa teoria dos telescópios; podemos certamente imaginar circunstâncias nas quais isso é precisamente o que teria de ser feito. A questão é que nem todas as circunstâncias nas quais se pressupõe a nossa teoria acerca de telescópios são circunstâncias nas quais a nossa teoria acerca de telescópios está sendo testada, e está portanto bloqueada a conclusão de que as considerações racionais por si só não podem decidir como responder à experiência recalcitrante.
Talvez, contudo — para chegar à quarta e última maneira pela qual a crença e os valores sociais podem estar interligados — a ideia correta não seja que precisamos do social para colmatar uma lacuna deixada pelo racional, mas somente que o próprio racional é constitutivamente social. Uma boa razão para acreditar em algo, segundo essa linha de raciocínio, só tem esse estatuto relativamente a fatores sociais variáveis — uma distinção clara entre o racional e o social é ilusória.
Presentemente esta é talvez a interpretação mais influente da relação entre o racional e o social nos círculos construtivistas. Corresponde a uma relativização das boas razões a circunstâncias sociais variáveis, de modo que acerca do mesmo item de informação se pode afirmar que justifica uma determinada crença sob certas circunstâncias sociais, em algumas culturas, mas não em outras. Isso é eloquentemente expresso na seguinte passagem (Barry Barnes e David Bloor, “Relativism, rationalism and the sociology of knowledge,” 1981):
[...] não faz qualquer sentido a ideia de que alguns cânones ou crenças são efetivamente racionais, sendo isso algo distinto da sua mera aceitação local como tais.
Mas esta é uma interpretação impossível das razões para se adotar crenças, como Platão outrora compreendeu (veja o seu Teeteto). Não podemos ter uma ideia coerente de nós próprios quando acreditamos ou asserimos seja o que for, se defendermos que todas as razões para acreditar e asserir algo estão inexoravelmente vinculadas a uma perspectiva de fundo variável, como aqui nos é proposto. Há muitas maneiras de mostrar isso, mas talvez a mais clara seja a seguinte: nem mesmo o relativista teria como adotar essa atitude em relação à sua própria perspectiva. Pois o relativista não pensará certamente que um relativismo acerca de razões só tem justificação relativamente à sua própria perspectiva. Se o pensasse, por que o recomendaria a nós, que não partilhamos a sua perspectiva?
Quando acreditamos em algo, acreditamos porque pensamos haver boas razões para pensar que isso é verdadeiro, razões que pensamos serem suficientemente gerais para serem aceites inclusivamente por quem não partilha a nossa perspectiva. É por isso que nos sentimos no direito de recomendá-la a essas pessoas. É difícil imaginar uma maneira de pensar acerca da crença e da asserção que excluísse a possibilidade deste tipo de generalidade.
Nem um construtivismo generalizado acerca dos objetos e fatos investigados pelas ciências naturais, nem acerca das razões dadas por essas ciências para adotar crenças, tem grande plausibilidade. Que importância tem isso? Eis duas perspectivas contrastantes. Rorty (“Phony Science Wars,” Atlantic Monthly, 1999):
As guerras da ciência são em parte fruto de conflitos profundos e duradouros da intuição, mas em sua maioria são somente engodos da mídia — jornalistas incitando os intelectuais a se demonizarem uns aos outros. A demonização pode ajudar a manter os intelectuais entusiasmados e ativos, mas não temos de a levar muito a sério.
Em contraste, temos Dorothy Nelkin:
As teorias presentes acerca da ciência parecem questionar a imagem de objetividade científica abnegada e colocar em causa a autoridade científica, numa época em que os cientistas querem reivindicar a sua inocência perdida de modo a serem vistos como imaculados investigadores da verdade. As guerras da ciência são acerca disso.
Penso que Nelkin está mais perto da razão. Como os construtivistas sociais se aperceberam muito bem, não daríamos a mesma importância à ciência se viéssemos a ser convencidos por concepções construtivistas acerca dela.
Em que consiste a importância cultural da ciência? Esse é obviamente um tema vasto, mas parece-me haver dois elementos centrais. Primeiro, e mais relevantemente, no que toca a matéria de crença, prestamos deferência à ciência. Seria difícil sobrestimar a importância dessa prática, que se reflete no que nos dispomos a ensinar às crianças nas escolas, no que aceitamos como indícios nos tribunais e no que adotamos como base das nossas políticas sociais. Segundo, gastamos vastas quantias de dinheiro em pesquisas científicas fundamentais, pesquisas que não aparentam trazer qualquer contrapartida prática imediata.
A atitude descontraída de Rorty depende de se pensar que nenhuma dessas práticas tem quaisquer pressupostos filosóficos interessantes e que, portanto, não podem ser vulneráveis à crítica construtivista. Mas isso parece incorreto. Para que faça sentido prestar deferência, tem de ser plausível que a ciência proporcione o gênero de conhecimento no qual todos têm razão para acreditar, independentemente dos seus compromissos políticos ou ideológicos em geral. Mas isso seria diretamente posto em questão por uma tese construtivista acerca das razões para adotar crenças, em qualquer das suas versões disponíveis.
Se olharmos para a prática de gastar vastas quantias na ciência fundamental, ciência sem quaisquer contrapartidas práticas previsíveis, é argumentável que uma quantidade ainda maior de filosofia é pressuposta, que não só temos de sustentar que a ciência proporciona conhecimento que todos têm razões para aceitar, mas que proporciona conhecimento genuíno ou aproximadamente genuíno da estrutura de uma realidade que tem uma existência independente. Pois se perguntarmos por que razão, dados os muitos problemas sociais que defrontamos, devemos gastar dezenas de biliões de dólares para construir um acelerador de partículas que irá fazer colidir entre si partículas cada vez menores, na esperança de liberar aquelas que nunca vimos, mas que são previstas por nossas teorias, o que poderia ser uma resposta convincente senão a de que fazê-lo nos ajudará a compreender a constituição fundamental e oculta do universo e que isso vale a pena ser feito? Se a ideia de que há essa constituição oculta para investigar não faz sentido, ou ainda que haja, se a ideia de que a ciência é capaz de a investigar não fizer sentido, que razão poderia haver para gastar essas vastas quantias de dinheiro, que poderiam igualmente ser gastas no combate à SIDA ou à pobreza? (Para ser claro: não afirmo que a procura de verdades fundamentais automaticamente se sobrepõe a todas as outras considerações, somente que a sua coerência enquanto objetivo é necessária para dar sentido à importância que atribuímos às ciências fundamentais.)
No seu melhor — como no trabalho de Beauvoir e Appiah — o pensamento do construtivismo social põe a nu a contingência das nossas práticas sociais que erroneamente viemos a considerar como inevitáveis. Fá-lo apoiando-se nos cânones do bom raciocínio científico. Mas se perde quando aspira se tornar ou uma metafísica geral ou uma teoria geral do conhecimento. No papel da primeira, rapidamente degenera em uma forma impossível de idealismo. No papel da segunda, assume o seu lugar numa longa história de tentativas problemáticas de relativizar a noção de racionalidade. Nada traz de novo a essas perspectivas historicamente desacreditadas; quando muito, as versões do construtivismo social tendem a ser mais obscuras e mais confusas do que as suas contrapartes tradicionais. A dificuldade está em compreender por que a aplicação generalizada da construção social se tornou tão tentadora para tanta gente.
Uma fonte da atração que exerce é sem dúvida a sua eficácia. Podendo-se dizer que sabemos de antemão que qualquer porção de conhecimento só tem esse estatuto porque foi sancionado por valores sociais contingentes, então qualquer reivindicação de conhecimento pode ser desconsiderada se por acaso não partilharmos os valores de que alegadamente depende. Não é preciso entrar nos detalhes frequentemente complexos.
Mas isso só adia a questão real. Porquê esse medo do conhecimento? De onde vem a necessidade de proteção contra os seus juízos? Hacking escreve sobre certas feministas que, por exemplo,
[...] vêem a objetividade e a verdade abstrata como instrumentos que foram usados contra elas. Fazem-nos lembrar o velho refrão: as mulheres são subjetivas, os homens são objetivos. Argumentam que esses mesmos valores, e a palavra “objetividade”, são um enorme conto do vigário. Se há algum tipo de objetividade a preservar, argumentam algumas delas, terá de ser tal que se esforce em atender uma multiplicidade de pontos de vista. (p. 96)
Hacking professa não saber se concorda ou não com essa ideia. Mas deveria saber. Qualquer preocupação legítima que estiver em questão aqui, não pode ser expressa afirmando que a objetividade e a verdade abstrata são ferramentas de opressão. No máximo o que essas observações nos permitem afirmar é que houve ocasiões em que esses conceitos foram usados como instrumentos de opressão; e ninguém quererá disputar isso. Mas o fato de um conceito poder ser e de ter sido mal usado dificilmente justifica que se culpe o próprio conceito. Teremos de suspeitar do valor da liberdade porque os nazistas colocaram a inscrição “Arbeit Macht Frei” no portão de Auschwitz?
A tese intuitiva é que há um modo como as coisas são que é independente da opinião humana, e que somos capazes de formar crenças objetivamente razoáveis, vinculativas para quem quer que seja capaz de ver os indícios relevantes, a despeito da sua perspectiva ideológica, crenças acerca do modo como as coisas são. Por mais difíceis que sejam essas noções, é um erro pensar que a filosofia recente descobriu quaisquer boas razões para rejeitá-las.