Em O Significado Filosófico do Teorema de Gödel, Michael Dummett propõe uma interpretação anti-realista dos resultados alcançados por Gödel acerca das limitações dos sistemas formais. Esta interpretação milita ainda a favor de uma concepção intuicionista da matemática. No que se segue, incluo uma apresentação dos principais argumentos de Dummett e um comentário acerca do que me parecem ser algumas das suas limitações mais salientes.
Os resultados obtidos por Gödel podem ser apresentados deste modo: (i) um sistema axiomático suficientemente poderoso para conter a aritmética é, se consistente, inerentemente incompleto (outra forma de o dizer seria: existe pelo menos uma fórmula aritmética verdadeira que é exprimível no sistema mas não é nele demonstrável); (ii) a consistência de um sistema axiomático não pode ser estabelecida mediante processos de inferência nele formalizáveis.
Tem-se, assim, que a prova da aritmética ser consistente exclui a possibilidade da sua representação no sistema em que é formalizável. Por outro lado, na interpretação de Dummett deste resultado, se um sistema axiomático S2 estendido a partir de S1 de modo a incluir os conceitos relevantes para a demonstração de uma certa proposição P1 admitida como verdadeira, mas não demonstrável em S1, contém igualmente a aritmética elementar, então S2 é insusceptível de fornecer uma caracterização exaustiva do conceito de “número natural” uma vez que existe ainda uma proposição P2 que é nele exprimível mas não demonstrável.
Segue-se que uma recensão completa dos métodos de prova em matemática não é realizável, nem qualquer conjunto bem definido de regras pode admissivelmente esgotar as condições debaixo das quais uma demonstração é susceptível de ser admitida como válida.
As teses de Dummett podem formular-se da seguinte maneira: (i) Qualquer interpretação do teorema de Gödel que atribua ao conceito de “número natural” o estatuto de contra-exemplo para uma teoria semântica cujo programa estipule a identificação entre significado e uso deve ser rejeitada; (ii) Este programa vincula a tese intuicionista segundo a qual o significado das proposições matemáticas envolve uma concepção não clássica de demonstração.
A exposição dos argumentos de Dummett em defesa destas teses obedece à seguinte estrutura. Em 2. É sumariada a interpretação do primeiro teorema de Gödel que Dummett afirma ser inconsistente com o programa semântico aludido. Em 3. e 4. são formulados os argumentos de Dummett em defesa das teses indicadas. Em 5. acrescento um breve comentário.
A estipulação de um critério semântico para a análise dos resultados obtidos por Gödel sugere um comentário. Este problema é introduzido por Dummett, que exclui toda a interpretação do teorema da incompletude consistente com a possibilidade de uma linguagem privada.
Na interpretação do teorema de Gödel que Dummett pretende refutar existe um sentido bem definido de “número natural” não susceptível de uma caracterização exaustiva por todas as proposições a respeito de números naturais que podem ser demonstradas como verdadeiras. Seguir-se-ia que o significado de proposições acerca de números naturais não se deixaria saturar exclusivamente por referência ao uso que delas fazemos. Haveria, portanto, que admitir que a determinação do significado de “número natural” é algo de distinto da capacidade para utilizar os símbolos que o representam em contextos específicos.
Esta tese envolve dos tópicos complementares: (i) existiria um significado de “número natural” não redutível à utilização que dele fazermos na linguagem; (ii) visto que nenhuma dúvida subsiste quanto aos objectos que consideramos números naturais, o seu significado é determinável por referência à extensão do conceito no modelo-padrão. Se (i) é uma consequência da demonstração de Gödel, pela qual qualquer colecção finita de regras é insusceptível de demonstrar todas as proposições matemáticas que admitimos como verdadeiras, (ii) parece impor-se como um obstáculo à objecção céptica segundo a qual um conceito cujo significado não pode exaustivamente descrever-se pelo uso que dele se faz é, no essencial, não partilhável. O recurso à noção de modelo-padrão de modo a determinar a extensão de “número natural” garantiria um critério objectivo para definir o significado deste conceito.
Vejamos por que motivo esta solução é afastada e quais os argumentos de Dummett.
O contra-argumento de Dummett inclui três aspectos: (i) não existe uma forma de evitar a objecção céptica caso significado e uso sejam dissociados; (ii) o teorema de Gödel, em conjunto com a rejeição de significados privados, é suficiente para refutar a pretensão de que existe um sentido bem definido de “número natural”; (iii) estabelecido o carácter inerentemente vago do conceito de “número natural” obtém-se: a noção clássica de demonstração deve ser abandonada em favor de uma concepção mais restritiva, de tipo construtivista.
O argumento (i) de Dummett é uma versão do argumento da linguagem privada de Wittgenstein.
A sua estrutura pode ser apresentada como um modus tollens cuja primeira premissa é o condicional “Se a imagem mental correspondente à apreensão do sentido de uma expressão é relevante para a especificação do seu conteúdo, uma linguagem cujas regras apenas podem ser conhecidas por um único utente da linguagem é possível”. Pela demonstração da impossibilidade de uma linguagem privada conclui-se que a hipótese expressa no antecedente da implicação é falsa. Torna-se, assim, necessário argumentar que nenhum utente de uma linguagem se encontra realmente em condições de construir uma linguagem privada ou de adoptar e seguir padrões de uso para termos assim definidos. Este passo decorre da inexistência de um critério que garanta a conformidade do significado de uma qualquer expressão da linguagem com a regra estipulada para o efeito considerado.
A refutação da possibilidade de uma Lp envolve a rejeição da tese segundo a qual os significados são entidades mentais. Complementarmente, como a estipulação de um critério semântico relevante é apresentada sob a forma de uma disjunção cujos termos são (a) a identificação entre significado e conteúdo mental e (b) a identificação entre uso e significado, a afirmação de que (b) é uma afirmação verdadeira decorre da demonstração da impossibilidade de (a).
Que o conceito de “número natural” recaia sob o âmbito do argumento acima tem a seguinte formulação. Ao admitir-se para este conceito um significado bem definido que não é exaustivamente caracterizável pelas proposições que estamos em condições de afirmar acerca de números naturais, existe algo de essencialmente não comunicável a seu respeito. Segue-se que quaisquer dois locutores que partilhem critérios idênticos para a formulação de proposições acerca de números naturais, ainda assim podem não coincidir no significado de “número natural”. Dado que não podem compara-se conteúdos mentais relativos a diferentes indivíduos, a hipótese de uma linguagem privada envolvida neste tipo de explicação é desinteressante dado os significados permanecem essencialmente não analisáveis.
O género de interpretação do teorema de Gödel que envolve uma concepção semântica onde significado e uso não são considerados termos co-extensivos consiste em afirmar que proposições não demonstráveis num sistema formal podem ser admitidas como verdadeiras relativamente à sua interpretação no modelo-padrão, e falsas noutro modelo que contivesse elementos insusceptíveis de serem construídos a partir de 0 com base na reiteração da operação sucessor. O nosso problema consiste, todavia, em determinar o significado a atribuir à noção de modelo quando se reconhece ser impossível uma descrição exaustiva da sua estrutura. Dado esta descrição envolver incompletude, a noção de modelo apenas pode ser considerada bem definida sob pena de circularidade. Isto resulta claro no caso se se observar que o significado de “número natural” supõe uma descrição das condições sob as quais a propriedade de uma proposição ser verdadeira acerca de números naturais é reconhecível e que esta determinação, se inclui a noção de modelo, não pode deixar de pressupor, para qualquer caracterização bem definida, um significado bem definido de “número natural”. A tese segundo a qual a noção de modelo é tudo quanto necessitamos para considerarmos bem definido o sentido de proposições formalmente indecidíveis presume que (i) a extensão de “número natural” concerne uma totalidade bem definida; (ii) é impossível a sua descrição completa. Sucede que esta consequência é, segundo Dummett, inconsistente.
Da demonstração da impossibilidade de uma linguagem privada, associada ao facto de o significado de proposições quantificadas a respeito de números naturais depender do princípio indutivo envolvido na descrição da estrutura do modelo não ser completamente caracterizável, segue-se que o conceito de número natural não pode ser considerado bem definido. A identificação entre significado e uso vincula a tese de que este conceito é inerentemente vago. O problema consiste em saber como descrever o seu uso exaustivamente.
O interesse de Hilbert pela demonstração de consistência de um sistema formal está ligado à possibilidade de garantir para qualquer fórmula F(x) nele derivável que a fórmula ¬F(x) não é um teorema do sistema. Dada esta característica, pelo princípio do terceiro excluído, a derivação de ¬(∀x) ¬F(x) no sistema permite estabelecer que (∃x) F(x) é o caso. Esta compreensão das regras de inferência de um sistema formal admite, para qualquer fórmula bem formada do sistema, que esta possui um valor de verdade dado, e ainda, uma vez demonstrada, que é verdadeira numa interpretação tal que adopta como modelo uma só estrutura bem definida. A prova de consistência do sistema asseguraria a fundamentação finitista da aritmética formal ao estender o emprego do terceiro excluído a colecções infinitas.
O que o teorema de Gödel permitiu demonstrar é que num sistema axiomático existe pelo menos uma proposição a respeito de números naturais susceptível de ser tida por verdadeira tal que, na hipótese de lhe corresponder uma fórmula ƒ no sistema, ƒ é indecidível no sistema em que a aritmética é representada. Acresce que o sistema formal é incompleto sob presunção de consistência, e que uma prova de consistência depende de uma classe de fundamentos nele não formalizáveis, classe que, assim, é indefinidamente extensível.
Este é um aspecto crucial do argumento de Dummett. Uma prova de que (∃x) F(x) é conclusiva para um conjunto infinito de objectos se e somente se ¬(∀x) ¬F(x) tem como fundamento a extensibilidade indefinida do sistema em que é demonstrável e não apenas o conjunto de regras de inferência que permitem efectuar a sua demonstração implica que o princípio do terceiro excluído seja abandonado para o domínio do infinito e uma prova de (∃x) F(x) aceite apenas na circunstância em que tenha sido obtida uma instância a tal que F(a) é o caso. A principal razão é que esta característica, em conjunção com o facto de a determinação da extensão de “número natural” não permitir, por si só, um acordo quanto aos critérios de prova que a ser adoptados, mostra que sendo a classe de fundamentos para a consistência dos sistemas formais indefinidamente extensível, é uma classe indeterminada, a presunção de consistência não esclarece o facto de uma proposição ser verdadeira.
O problema é o de saber em que consiste a propriedade de uma proposição ser verdadeira a respeito de números naturais na circunstância em que o seu conceito deve ser considerado inerentemente vago. Uma vez que a verdade é uma propriedade tida por bem definida num sistema formal, e que a atribuição de propriedades a números naturais supõe a validade da indução acerca apenas daquelas propriedades que são exprimíveis no sistema, sendo este incompleto, a propriedade de uma proposição ser verdadeira não pode ser formalmente definida. Este é um aspecto suficientemente claro se pensarmos na demonstração de Gödel. Que uma proposição metamatemática G exprima uma particular propriedade aritmética, apesar de verdadeira, não é contudo demonstrável no sistema da aritmética.
Deste modo, segundo Dummett, o conjunto de princípios de que dependem as nossas demonstrações não permite que a propriedade de uma proposição ser verdadeira possa considerar-se bem definida — excepto no sentido em que “bem definido” significa a propriedade de ser susceptível de ser construído. O fundamento desta exclusão é o de que o carácter não equívoco da extensão de “número natural” não garante uma determinação de sentido para frases quantificadas acerca de números naturais. Tudo quanto é agora exigido consiste na compreensão do princípio que regulamenta a atribuição de propriedades aos objectos da totalidade considerada, segundo um processo de construção efectiva de proposições. Daí que, satisfeito o requisito de construtibilidade, pode obter-se a descrição do conceito de “número natural” em termos tais que a identificação entre significado e uso é igualmente satisfeita.
Segue-se, então, que a identificação entre significado e uso vincula a noção de “efectivamente construtível” para demonstrações acerca de números naturais. Visto que a introdução de propriedades relativas a totalidades infinitas bem definidas são de admitir apenas no caso em que a consistência do sistema em que ocorrem possa ser demonstrada, tem-se, pelo teorema da incompletude, que o sistema onde a aritmética é formalizável, se consistente, não satisfaz o conceito de verdade aritmética independentemente do critério de prova adoptado. Donde, na impossibilidade de derivar num sistema formal todas as proposições da aritmética que podem ser reconhecidas como verdadeiras, apenas a classe de proposições susceptível de ser demonstrada através de métodos construtivos satisfaz o conceito de verdade.
O ponto de vista que acabo de expor, se correctamente, afirma que os conceitos de verdade aritmética e demonstrabilidade são co-extensivos para demonstrabilidade igual a método efectivo de construção. Esta não é a posição de Gödel. De facto, o que Dummett propõe consiste numa restrição aos métodos de prova que envolve idêntica restrição no conceito de verdade aritmética. Pode-se todavia argumentar recorrendo à interpretação de Gödel do teorema da incompletude que este não concerne, no essencial, as limitações dos sistemas formais mas a razão pela qual estas limitações lhes são inerentes. Um sumário do teorema da incompletude seria o seguinte: (i) Seja S um sistema formal no qual a aritmética pode ser representada; (ii) seja α uma fórmula bem formada de S que não pode ser provada em S; (iii) seja α verdadeira. Dos pontos (i)-(iii) segue-se que o conceito de verdade relevante para as proposições de S não pode ser definido em S. Não pode também ser definido por via de quaisquer extensões de S. Donde, demonstrabilidade e verdade não são conceitos co-extensivos.
O que parece decorrer das observações referidas é que a oposição de Gödel ao conceito de verdade subjacente ao programa de Hilbert operou como a principal motivação para a demonstração do teorema da incompletude. Dado as exigências para as quais o programa de Hilbert constituía uma resposta não poderem, em princípio, ser satisfeitas, é patente, à luz da não co-extensionalidade dos conceitos de demonstração e de verdade, que uma interpretação anti-realista da matemática é inconsistente com a distinção proposta por Gödel.
A premissa determinante para o argumento de Dummett encontra-se assim sob pressão e podemos argumentar que ser rejeitada. Esta premissa afirma que o conceito de “número natural” é inerentemente vago dada a classe de fundamentos de que dependem as nossas proposições acerca de números naturais ser indefinidamente extensível. Sucede que aceitá-la teria em última análise a consequência de tornar não efectiva a distinção entre demonstrabilidade e verdade.
Paulo Ruas