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Crítica
21 de Agosto de 2004   Filosofia

Ensinar filosofia

Jack Macintosh
Tradução de Desidério Murcho

Os professores ensinam duas coisas: os resultados da investigação e como obter mais resultados. Os professores de filosofia querem descobrir e transmitir verdades filosóficas e, mais importante ainda, querem transmitir a aptidão para obter resultados e para os distinguir de coisas parecidas como o absurdo e a falsidade. Daqui resultam dois quase paradoxos.

Os resultados filosóficos são importantes, e os filósofos geralmente têm perspectivas firmes e, esperam eles, bem pensadas sobre questões filosóficas. Mas eles querem que os estudantes adquiram a aptidão para formar opiniões justificadas por si próprios, ainda que o custo disto seja o disparate ocasional. Assim, os bons filósofos não se importam geralmente que os estudantes rejeitem as suas opiniões; na verdade, recebem isso braços abertos, desde que a discordância esteja bem fundamentada. Como todos os bons professores sabem, esta característica do processo pedagógico provoca muito nervosismo em alguns estudantes. Efectivamente, como todos os bons estudantes sabem, provoca também muito nervosismo em certos professores.

O segundo semi-paradoxo diz respeito à tensão entre o que é ensinado e o modo como é ensinado. Os filósofos sublinham a persuasão racional, o discurso racional e o exame racional. Como disse Robert Boyle, “A filosofia, quando merece esse nome, não é senão Razão, aperfeiçoada pelo Estudo, pela Aprendizagem e pelo uso das coisas”. Contudo, o modo como se transmite a importância da persuasão racional pode ter pouco a ver com a persuasão racional. Humor, ironia, analogia, tom, estrutura das frases, alusão, argumentos ad hominem e argumentos de autoridade, o entusiasmo e a confiança visível do professor, o grau de auto-motivação exigida ao estudante, e uma quantidade de outros factores, incluindo até a própria ordem em que se apresentam perspectivas opostas — tudo isto afecta a probabilidade de o estudante aceitar ou até compreender os aspectos apresentados. Até factores alheios ao intelectual, como a luz que há na sala ou a existência de correntes de ar, afectam a absorção e a aceitação. Pregar a primazia da razão envolve uma quantidade de métodos não racionais.

Platão pensava que a filosofia só podia ser ensinada de alma a alma, e os encontros em pequenos grupos fornecem a melhor maneira de transmitir o que há de emocionante na prática filosófica e as aptidões necessárias para ela. Num tal contexto o estudante pode testar ideias em direcção à verdade, que serão então objecto de escrutínio construtivo pormenorizado por si próprio, pelos seus professores e pelos seus colegas.

Contudo, as realidades do ensino tornam isto muitas vezes terrivelmente utópico. é difícil a uma alma falar com outra quando as almas estão amontoadas em grupos de 300. O que um político chamou “investimento negativo” nos fundos para o ensino, e a consequente deterioração do processo educativo, asseguram que o ideal platónico raramente se realize antes de se chegar aos estudos pós-graduados. (Discussões pormenorizadas respeitantes ao ensino no mundo real são oferecidas trimestralmente na revista Teaching Philosophy. Também interessante é a Thinking, uma revista que se ocupa da filosofia para crianças.)

Platão pensava também que os estudantes precisam de uma rigorosa formação de fundo para a filosofia: algo que os sistemas educativos contemporâneos têm dificuldade em fornecer. Muitos estudantes universitários do primeiro ano não chegam sequer a saber os nomes de Arquimedes ou Newton. Contudo, estas lacunas podem ser preenchidas, e muitas universidades oferecem cursos introdutórios gerais para tentar fazer precisamente isso. Mais pernicioso é quando se inculca deliberadamente o irracionalismo. Sem saber como reagir ao multiculturalismo, muitos professores e demasiados académicos recuam para o relativismo, que eles confundem com tolerância. As escolas produzem agora uma multidão de averroístas que não se importam de dizer na nossa cara “Bem, é verdade para ti, mas não para mim”. Assim, além dos preconceitos religiosos, políticos e morais mais ou menos habituais inspirados pelo meio familiar, o ensino contemporâneo acrescenta outro preconceito, o relativismo moral e epistemológico, impresso nas escolas e reforçado por várias disciplinas não filosóficas — preconceitos que o filósofo em acção é chamado a remover antes de o verdadeiro ensino poder começar.

Jack Macintosh
Oxford Companion to Philosophy (Oxford University Press, 1995), pp. 665-666.

Bibliografia

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ISSN 1749-8457