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Crítica
30 de Outubro de 2003   Filosofia

A especificidade da filosofia

Desidério Murcho

Sob o título “A Especificidade da Filosofia”, o programa de Filosofia do 10.º de escolaridade que foi substituído em 2003 apontava quatro propriedades: autonomia, radicalidade, historicidade e universalidade da filosofia. Pretensamente, estas quatro propriedades dariam à filosofia a sua especificidade.

Uma das melhores novidades do novo programa de Filosofia de 2003 é a primeira Unidade, muitíssimo mais bem estruturada do que a do anterior programa. E o melhor de tudo é ter eliminado estas pretensas quatro características ou propriedades da filosofia como marca da sua especificidade. Infelizmente, contudo, alguns manuais escolares insistem nestas propriedades, apesar da sua saudável ausência do novo programa. Dois exemplos disso são os manuais Um Outro Olhar sobre o Mundo (o manual mais adoptado no país), de Maria Antónia Abrunhosa e Miguel Leitão (Edições Asa, 2003) e Filosofia 10, de Carlos Amorim, Isabel Aguiar e Margarida Moreira (Areal Editores, 2003). É assim provável que muitos estudantes sejam obrigados pelos seus professores a decorar quatro características da filosofia, supostamente definidoras da sua especificidade. Acontece que estas características não são nem definidoras da sua especificidade, nem sequer informativas. Nenhum professor deve continuar a leccionar estes conteúdos porque além de cientificamente errados são pedagogicamente desastrosos. O objectivo deste artigo é esclarecer estas afirmações.

Recorde-se que estes conteúdos surgiam logo na primeira Unidade do 10.º ano; supostamente, tratava-se de dar ao estudante de catorze ou quinze anos, acabado de chegar à Filosofia, uma primeira ideia da disciplina. Logo, seja o que for que se diga sobre a filosofia terá de ser informativo: terá de apresentar algumas características ou propriedades da filosofia que sejam informativas para o estudante, dando-lhe uma primeira ideia correcta da filosofia. Evidentemente, uma das preocupações quando se procura fazer este tipo de trabalho é indicar não apenas as características ou propriedades importantes da filosofia, mas também aquelas que distinguem a filosofia das outras disciplinas, como a matemática, a física ou a história. Mas a apresentação tem de se manter a um nível suficientemente intuitivo para ser realmente informativo; caso contrário, o estudante limitar-se-á a decorar umas expressões estranhas, sem que isso o ajude a ter uma compreensão prévia da filosofia — pelo contrário, pode até ser um obstáculo a essa compreensão, dado que o estudante terá tendência para começar a fazer uma representação negativa da filosofia, como algo abstruso que consiste em pôr na ordem certa expressões estranhas que nada querem dizer. E isto é um formalismo incompatível com o melhor ensino da filosofia.

Perguntemo-nos, pois, se as quatro propriedades apontadas pelo antigo programa marcam a especificidade da filosofia. E a resposta é que não marcam, nem tomadas separadamente, nem tomadas conjuntamente. Acresce que diferentes manuais apresentam concepções diferentes e por vezes inconciliáveis dessas propriedades, o que mostra bem que se trata de algo que em vez de esclarecer, obscurece e provoca confusões.

A autonomia da filosofia

Por “autonomia da filosofia” pode entender-se que a filosofia tem sempre a “marca da razão”, isto é, que se trata de uma actividade eminentemente racional. Como é evidente, o mesmo se pode dizer da matemática, da física e da história. De modo que, entendida desta maneira, esta propriedade não distingue a filosofia das outras disciplinas — não marca a sua “especificidade”.

Outra forma, mais comum, de entender a autonomia da disciplina é dizer que na filosofia cada um pensa por si próprio, ao invés de nos limitarmos a repetir o que os outros filósofos pensaram. Mas isso acontece igualmente nas artes: cada pintor ou cada poeta pensa por si próprio. E o mesmo acontece nas ciências: cada cientista, historiador ou engenheiro pensa por si próprio — se se limitar a repetir o que os outros cientistas dizem, é um mau profissional. De modo que também entendida desta maneira a autonomia da filosofia não é uma característica definidora da filosofia.

Outras vezes entende-se por “autonomia da filosofia” o facto de a filosofia não estar directamente dependente de outras disciplinas. É uma disciplina que tem o seu “terreno próprio”, por assim dizer, não se tratando de uma subdisciplina de outra disciplina maior, como a química de algum modo não é autónoma em relação à física. Pode até dizer-se que, historicamente, as diversas disciplinas se foram separando da filosofia, o que deu à filosofia autonomia em relação a elas. Até aqui, a ideia parece interessante. Mas o problema é que há muitas outras disciplinas perfeitamente autónomas além da filosofia, como a física ou a matemática ou a história — e que são autónomas precisamente porque, ao longo da história, se autonomizaram em relação à filosofia. Logo, esta não é uma propriedade que distinga a filosofia de outras disciplinas.

Acresce que a pretensa autonomia é mais enganadora do que reveladora, dado que todas as disciplinas do conhecimento mantêm relações entre si: muitos problemas da física só podem resolver-se com recurso intenso à matemática, a história tanto pode fazer a história dos reis como a história da química, e a literatura contém muitas vezes ideias filosóficas interessantes.

Mais grave ainda é o facto de a suposta autonomia da filosofia acabar por se revelar profundamente enganadora, dado que um dos aspectos centrais da filosofia é o facto de ser nesta disciplina que se reflecte sobre qualquer outra disciplina: é o que se faz em filosofia da ciência, em filosofia da história, em filosofia da literatura, em filosofia da religião. De modo que nos arriscamos a que o estudante fique a pensar, erradamente, que a autonomia da filosofia a coloca num planeta à parte, quando na verdade a filosofia é a disciplina que mais dialoga com todas as outras. E este diálogo implica um conhecimento sólido das outras disciplinas; não se pode fazer filosofia da arte sem um conhecimento sólido da arte, não se pode fazer filosofia da ciência sem um conhecimento sólido da ciência, etc.

Além disso, a filosofia não é autónoma em relação às outras disciplinas noutro sentido ainda: uma teoria filosófica que seja falsificada pela investigação científica, por exemplo, tem de ser abandonada. A filosofia não subsiste num planeta à parte, indiferente aos resultados das outras ciências e artes. Veja-se, por exemplo, o problema da definição de arte, que só se tornou realmente problemático porque a arte evoluiu de tal modo que as definições clássicas de arte foram refutadas pela prática artística.

Em conclusão, esta propriedade da filosofia, que supostamente marcaria a sua especificidade, não só não marca especificidade alguma porque é partilhada por outras disciplinas, como até é uma propriedade “mais ténue” na filosofia, dada a sua relação profunda com as outras disciplinas.

A radicalidade da filosofia

Por “radicalidade da filosofia” entende-se que esta disciplina “vai à raiz” das coisas, isto é, procura fundamentos. Assim, ao passo que um físico procura relacionar as propriedades do espaço com as propriedades do tempo, por exemplo, um filósofo pergunta-se “O que é o tempo?”; ao passo que um matemático procura descobrir teoremas interessantes, um filósofo pergunta-se “O que é um número?”.

Esta é a interpretação mais sensata da suposta radicalidade da filosofia, e não é a interpretação que é costume encontrar nos manuais de filosofia. Nestes, o costume é falar-se apenas da imensa profundidade da filosofia, mais profunda do que todas as outras disciplinas, seguindo-se o tipo de encómio descaradamente parcial, em que o autor do manual de filosofia diz repetidamente que a sua disciplina é mesmo o melhor deste mundo e do outro e que sem a luz da filosofia o mundo ficaria nas trevas. A força do encómio é geralmente inversamente proporcional à profundidade e interesse do conteúdo filosófico do que se tem depois para oferecer, como se o elogio da filosofia pudesse de algum modo esconder a ausência de conteúdos interessantes para leccionar. Se escondesse, seria uma aldrabice, mas não esconde e o estudante sai da disciplina a pensar que se trata de um disparate de pessoas vaidosas, convencidas que são o melhor do mundo, sem que contudo consigam mostrar que importância tem afinal a filosofia — afinal, se este palavreado elogioso desaparecesse amanhã, o mundo continuaria igual ao que é hoje, sem que nada de substancial se tivesse perdido na compreensão das coisas.

Contudo, mesmo na interpretação mais sensata, a ideia de que só a filosofia é radical é enganadora. A filosofia é radical no sentido em que procura os fundamentos últimos de muitos aspectos da realidade. Mas a astrofísica também o faz, pois procura os fundamentos últimos dos grandes corpos celestes; e um geómetra que não se preocupe com os fundamentos geométricos do mundo será um estranho geómetra. Por outro lado, nem todas as disciplinas da filosofia procuram os fundamentos últimos. A ética aplicada não procura fundamentos últimos — isso é algo que compete à metaética. E o mesmo se pode dizer de alguns aspectos da filosofia da religião, que procura apenas determinar, por exemplo, se há razões para pensar que Deus existe.

Claro que podemos interpretar a procura de razões como uma procura radical, uma procura de raízes. Mas se o fizermos, todas as disciplinas académicas — da história à física, da economia à engenharia — são radicais, porque em todas estas disciplinas as teorias respectivas têm de ser apoiadas por razões. Só a teologia mística e o pós-modernismo têm o privilégio de se apoiar em absolutamente nenhumas razões por considerar que todas as razões são inúteis.

Logo, a suposta radicalidade da filosofia é enganadora porque muitas outras disciplinas são radicais no sentido mais moderado do termo, e porque muitas áreas da filosofia não são radicais, no sentido mais exigente do termo.

A historicidade da filosofia

É comum entender-se que a historicidade da filosofia consiste no facto de esta disciplina estar presente em todos os tempos históricos. Mas isto é falso em qualquer sentido substancial do termo “filosofia” — a filosofia nasceu na Grécia no séc. V a.C. e antes disso e noutros lugares do globo não houve filosofia, neste sentido do termo. Claro que houve reflexões de carácter mais ou menos filosófico — mas nesse caso também temos de aceitar que houve ciência, religião e artes. Logo, a historicidade da filosofia, entendida neste sentido, não marca a especificidade da filosofia.

Outra interpretação comum da pretensa historicidade da filosofia é a ideia de que toda a filosofia está “historicamente situada”. É verdadeiro que a filosofia é feita por seres humanos, e que os seres humanos se deixam influenciar pelo seu tempo histórico, e que procuram até muitas vezes responder aos problemas do seu tempo. A “filosofia está na história”, como por vezes se diz. Mas dificilmente é preciso dizê-lo, pois é óbvio e trivial — a filosofia não é feita por deuses exteriores à história. Mas é igualmente trivial e óbvio que nenhuma disciplina é feita por deuses exteriores à história: nem a literatura, nem a matemática, nem a física, nem a economia, nem a própria história. Poderá argumentar-se que a historicidade da filosofia se refere não ao facto trivial e não informativo de a filosofia ser feita na história por seres humanos, mas antes ao facto de as ideias filosóficas reflectirem o seu tempo. Mas também a literatura e a própria história reflectem o seu tempo, aliás como a gastronomia e a música — e é defensável que também a física e a matemática reflectem o seu tempo, precisamente pela mesma razão que a filosofia o faz: são actividades humanas. Num sentido mais forte de “historicidade” poderemos dizer que a física não reflecte o seu tempo histórico; mas nesse sentido mais forte é a literatura e a arte em geral, por exemplo, que estão muito mais enraizadas na história do que a filosofia. Logo, também neste sentido a suposta historicidade da filosofia é enganadora porque num certo sentido todas as disciplinas reflectem o seu tempo histórico e porque num sentido mais forte há outras disciplinas com uma historicidade mais profunda do que a filosofia.

A interpretação mais sensata da “historicidade da filosofia” é a ideia de que a filosofia mantém uma relação especial com a sua história, diferente da relação que outras disciplinas, como a matemática ou a física, mantêm com a sua história. Expliquei essa relação no capítulo “A Tradição Socrática” do livro A Natureza da Filosofia e o Seu Ensino (Plátano). A ideia é que, como muitos dos problemas da filosofia continuam em aberto, as ideias dos grandes filósofos do passado têm ainda hoje um interesse genuinamente filosófico e não meramente histórico. E isto contrasta com outras disciplinas, como a física ou a geometria, cujas teorias do passado têm um interesse meramente histórico. Contudo, isso não acontece com outras disciplinas, como a religião ou as artes, cujas obras do passado têm igualmente interesse intrinsecamente religioso e artístico e não meramente histórico. Logo, mesmo nesta interpretação, a historicidade da filosofia não é uma característica definidora da disciplina.

A universalidade da filosofia

A universalidade da filosofia falha também como característica definidora da disciplina. As artes, as ciências e até as religiões são tão universais, ou tão pretensamente universais, quanto a filosofia. A geometria tanto tem aplicação em Paris como na China, e o mesmo acontece com a física ou a biologia. E uma obra de arte ou uma religião tanto inspira e comove asiáticos como africanos. Logo, a universalidade é uma propriedade da filosofia — mas não é uma propriedade que marque a sua especificidade, dado que todas as outras disciplinas são universais.

Conclusão

Podemos assim concluir que, separadamente, nenhuma das pretensas características definidoras da filosofia é realmente definidora — ou porque se aplicam a muitas outras disciplinas que não a filosofia, ou porque não se aplicam a todas as subdisciplinas da filosofia.

Resta verificar se a conjunção das quatro propriedades não será definidora da filosofia, excluindo outras disciplinas. Mas a resposta é evidentemente negativa. A física e a economia têm, pelas razões apontadas, simultaneamente as propriedades em causa: autonomia, radicalidade, historicidade e universalidade. Logo, mesmo tomadas conjuntamente, nada há nestas propriedades que marque a especificidade da filosofia.

E agora?

No novo programa eliminou-se sensatamente a conversa errada e enganadora da autonomia, radicalidade, historicidade e universalidade da filosofia. Em seu lugar, temos “O Que é a Filosofia? Uma Resposta Inicial” e “Quais São as Questões da Filosofia? Alguns Exemplos”, títulos muito mais sensatos do que os do anterior programa. Contudo, como já referimos, alguns autores de manuais insistem na autonomia, radicalidade, historicidade e universalidade da filosofia. Fazem-no evidentemente com a melhor das intenções, julgando que estariam a dar algumas pistas úteis aos estudantes, mostrando como se dá uma resposta inicial à pergunta “O Que é a Filosofia?”. Mas dado que as quatro propriedades apontadas são enganadoras e erradas, que outras propriedades poderemos apresentar que sejam informativas para o estudante e cientificamente correctas?

Como co-autor do manual A Arte de Pensar (Didáctica Editora), confrontei-me com este problema. A solução que encontrei terá sem dúvida erros e deverá ser corrigida, mas parece-me à partida melhor do que a pretensa autonomia, radicalidade, historicidade e universalidade da filosofia. Antes de mais, penso que é uma boa ideia abandonar a pretensão de uma definição de filosofia no sentido forte do termo, pelas razões que explico no capítulo “Definição de “Definição”” no livro A Natureza da Filosofia e o Seu Ensino: em muitos casos, uma definição explícita correcta é menos informativa do que uma caracterização ou uma definição implícita. É mais informativo apresentar apenas algumas características importantes para que o estudante comece desde logo a formar uma ideia fiel à realidade do que é a filosofia. Assim, as características que se apresentam no manual A Arte de Pensar, não têm a pretensão de representar a especificidade da filosofia.

Acresce que ao apresentar seja o que for a alguém temos de ser sensíveis ao contexto em que nos encontramos e ao que essa pessoa já sabe ou pensa saber. Assim, ao apresentar algumas características da filosofia ao estudante do 10.º ano é importante ter em conta o tipo de ideias, umas erradas outras não, que o estudante português médio tem, no contexto em que se encontra. Se fizermos isto, poderemos ser menos universalistas, mas seremos sem dúvida mais informativos.

Com estes princípios em mente, estas são as características da filosofia que apresentámos no manual A Arte de Pensar:

  1. A filosofia é uma actividade crítica;
  2. O pensamento filosófico é consequente;
  3. A filosofia é um estudo a priori;
  4. A filosofia é diferente da história da filosofia.

Mesmo tomadas conjuntamente, estas características não apresentam a especificidade da filosofia, nem pretendem fazê-lo. Qualquer lista de características que procurasse fazer isso não seria útil para o estudante porque não seria realmente informativa. Será ao longo do estudo da filosofia que o estudante, por si mesmo, irá vendo o que faz a especificidade da disciplina. O que é importante nesta fase inicial é dar, como o próprio programa prescreve, “Uma Resposta Inicial”.

A nossa resposta começa por explicar que a filosofia é “o lugar crítico da razão”, se bem que nunca se use esta expressão pomposa. Procura-se mostrar que o objectivo da filosofia é avaliar criticamente um certo tipo de ideias. É importante explicar este aspecto da filosofia ao estudante porque ele está habituado, em todas as outras disciplinas, a limitar-se a decorar conhecimento “já feito”. Em filosofia, o estudante vai ser confrontado com a sua abertura: não há “conhecimento já feito”, só há as teorias dos filósofos, que são todas discutíveis, e o objectivo do estudo da filosofia é saber discutir essas ideias, e não saber repeti-las.

Contudo, quando se diz que o objectivo da disciplina é cada qual pensar por si, o estudante tem tendência para entender erradamente que a filosofia é o domínio da arbitrariedade e do “vale tudo”. Por isso, é importante sublinhar que o estudante pode afirmar o que quiser, mas tem de fundamentar (isto é, defender com argumentos) tudo que afirmar. A filosofia não é uma colecção de afirmações pomposas e bizarras; a filosofia é a tentativa de fundamentação racional das nossas ideias — e se as nossas ideias não resistem à discussão racional aberta, então temos de mudar de ideias. Este é o papel que desempenha, em grande parte, a ideia de que a filosofia é um pensamento consequente. Dizer “A vida faz sentido porque sim” não é um pensamento filosófico porque não é um pensamento consequente. E dizer “Os animais não têm direitos porque não têm deveres” também não é um pensamento filosófico, porque não é consequente noutro sentido: a consequência óbvia deste pensamento é que também os idosos em coma não têm direitos, o que é falso e por isso contraria a ideia de partida. Em filosofia, somos responsáveis não apenas pelo que dizemos, mas também pela defesa racional do que dizemos e pelas consequências do que dizemos.

Em terceiro lugar, é importante sublinhar o aspecto conceptual ou a priori da filosofia para que o estudante não pense que pode sentar-se à secretária e enfrentar problemas que só podem ser frutuosamente enfrentados recorrendo a informação empírica. A filosofia não deve servir de desculpa para se fazer o que no fundo é má sociologia e má psicologia. Isto é, com o disfarce de estarmos a fazer filosofia, não se pode afirmar, por exemplo, que as pessoas, quando confrontadas com a morte, tendem a fugir ao assunto. Não se pode afirmar isto porque isto é uma afirmação empírica que, por isso, requer provas empíricas (é necessário conceber um inquérito e fazer o tratamento desses dados). A filosofia não é este tipo de especulação empírica preguiçosa. Por outro lado, a maior parte dos problemas da filosofia não requerem qualquer informação empírica, ou requerem pouca informação empírica. Para saber se os animais têm direitos é relevante ter dados biológicos sobre a questão de saber se eles sentem dor — mas esses dados o filósofo vai procurá-los à biologia, dado que isso não é um trabalho da filosofia. O que o filósofo faz é reflectir sobre o significado filosófico desses dados. Para saber se a vida faz sentido não se requer qualquer informação empírica específica, se bem que seja necessário ter um conhecimento sólido, ainda que geral, da ciência contemporânea. A filosofia é uma disciplina conceptual por excelência e tem uma relação especial com a informação empírica e é bom que o estudante tenha desde logo consciência disto.

Finalmente, e em quarto lugar, a filosofia é diferente da história da filosofia, apesar de manter com ela relações importantes. Como se explica no manual, seria absurdo pensar sobre qualquer problema da filosofia ignorando o que tantas pessoas muito inteligentes e sábias pensaram antes sobre o tema; se fizéssemos isso, estaríamos sempre a partir do zero, o que seria estúpido. Mas daí não se segue que a filosofia se reduza a fazer relatórios e interpretações das ideias dos filósofos anteriores a nós. Isso é o que faz a história da filosofia. Em filosofia, esse trabalho é feito com um objectivo: discutir essas ideias, para saber se tais ideias são verdadeiras ou não, quais são os seus pontos fortes e os seus pontos fracos.

Temos assim quatro características importantes da filosofia, que ajudam o estudante a formar uma ideia fiel do trabalho que vai desenvolver ao longo de dois anos. Não se trata de características que pretendam captar a especificidade da filosofia como a conversa da autonomia, radicalidade, etc., mas antes de características importantes da filosofia, que são também importantes para o estudante.

Parece razoável concluir que se deve respeitar o programa oficial e abandonar a conversa vaga da autonomia, radicalidade, historicidade e universalidade. E se quisermos apresentar algumas características informativas, há outras características que não as que constavam do programa anterior. A proposta do manual A Arte de Pensar é uma das possibilidades.

Finalmente, note-se que este tipo de informação preliminar sobre a filosofia não deve ser alvo de avaliação. Não faz sentido avaliar os estudantes sobre algo que tem um objectivo meramente preliminar e informativo — além de ser matéria demasiado vaga. Avaliar os estudantes neste capítulo tem o resultado desastroso de os fazer repetir sem pensar o que deveria ser apenas oferecido ao estudante como auxílio à sua orientação na disciplina. Contudo, faz todo o sentido introduzir neste primeiro capítulo alguma avaliação formativa, até para preparar o estudante para o que depois lhe vai ser exigido de forma mais sistemática.

Desidério Murcho
Agradeço a Luís Gonçalves e Aires Almeida as sugestões e críticas que me ajudaram a esclarecer melhor alguns aspectos deste ensaio.
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ISSN 1749-8457