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Crítica
8 de Agosto de 2004   Ética

A ética empresarial

Robert C. Solomon
Tradução de Alexandra Abranches
O público que se dane. Eu trabalho para os meus accionistas.
William Vanderbilt

1. Introdução

A ética empresarial ocupa uma posição peculiar no campo da ética “aplicada”. Tal como os seus equivalentes em profissões como a medicina e o direito, consiste numa aplicação duvidosa de alguns princípios éticos muito gerais (“dever” ou “utilidade”, por exemplo) a situações e crises bastante específicas e muitas vezes únicas. Mas, ao contrário destas aplicações, a ética empresarial trata de uma área do empreendimento humano cujos praticantes, na sua maioria, não gozam de um estatuto profissional, e de cujos motivos muitas vezes se pensa (e se diz) serem muito pouco nobres. A cobiça (anteriormente “avareza”) é muitas vezes citada como o único motor da vida empresarial, e muita da história da ética empresarial é, consequentemente, pouco lisonjeira para a actividade empresarial. Num certo sentido, podemos seguir o percurso desta história até à época medieval e antiga, quando, além dos ataques à actividade empresarial que encontramos na filosofia e na religião, pensadores tão práticos como Cícero prestaram uma atenção cuidada à questão da equidade nas transacções comerciais correntes. Mas para muita desta história também, a atenção centrou-se quase totalmente sobre esse tipo de transacções particulares, rodeando este campo de um forte sentido de ad hoc, uma prática alegadamente não filosófica e afastada a maior parte das vezes por ser “casuística”.

Assim, a disciplina da ética empresarial tal como é praticada hoje em dia não tem mais do que uma década. Há apenas dez anos, era ainda uma amálgama duvidosa de uma revisão rotineira de teorias éticas, algumas considerações gerais acerca do carácter justo do capitalismo e de uma série de casos tornados paradigmáticos — a maior parte deles desgraças, escândalos e desastres mostrando o mundo empresarial no que tem de pior e de mais irresponsável. A ética empresarial era um tópico sem credenciais na filosofia mais corrente, sem conteúdo conceptual próprio. Era um assunto demasiado virado para a prática, até para a “ética aplicada”, e, num mundo filosófico encantado por ideias transcendentes e mundos apenas “possíveis”, a ética empresarial estava demasiado preocupada com a vulgar moeda corrente das trocas quotidianas — o dinheiro.

Mas a própria filosofia virou-se outra vez para o “mundo real”, e a ética empresarial encontrou ou fez o seu lugar na junção entre os dois. Novas aplicações e uma renovada sofisticação na teoria dos jogos e na teoria da decisão social permitiram a introdução de análises mais formais na ética empresarial e, o que é muito mais importante, a interacção com, e a imersão dos, praticantes da ética empresarial no mundo activo dos executivos das grandes empresas, sindicatos de trabalhadores e pequenos empresários consolidou aquilo que tinham sido elementos duvidosamente amalgamados da ética empresarial numa disciplina, atraiu o interesse e atenção dos líderes empresariais e transformou praticantes “académicos” em participantes activos no mundo empresarial. Por vezes, podemos acrescentar, até lhes dão ouvidos.

2. Uma história concisa da ética empresarial

Num sentido amplo, a actividade empresarial existe pelo menos desde os antigos sumérios que há cerca de seis mil anos (de acordo com Samuel Noah Kramer) levavam a cabo uma grande quantidade de trocas comerciais, mantendo registos. Mas o comércio nem sempre foi visto como uma actividade fundamental e respeitável, tal como acontece nas sociedades modernas, e a perspectiva ética sobre o comércio ao longo da maior parte da história tem sido quase totalmente negativa. Aristóteles, que merece ser reconhecido como o primeiro economista (dois mil anos antes de Adam Smith) distinguia dois sentidos diferentes daquilo a que chamava “economia”; o oikonomikos ou economia doméstica, que ele aprovava e considerava essencial para o funcionamento de qualquer sociedade ainda que pouco complexa, e a chrematisike, a troca que tem como objectivo o lucro. Aristóteles acusou esta actividade de ser completamente destituída de virtude e chamou “parasitas” àqueles que se entregavam a tais práticas puramente egoístas. O ataque de Aristóteles à prática repugnante e improdutiva da “usura” manteve a sua força praticamente até ao século XVII. Apenas os marginais, nas franjas da sociedade, e não os cidadãos respeitáveis, se dedicavam a tais actividades. (O Shylock de Shakespeare no Mercador de Veneza era um marginal e um usurário.) Esta é, a traços largos, a história da ética empresarial — o ataque indiscriminado ao comércio e às suas práticas. Jesus expulsou os vendilhões do templo, e os moralistas cristãos de S. Paulo a S. Tomás de Aquino e Martinho Lutero seguiram o seu exemplo, condenando rotundamente a maior parte daquilo a que hoje prestamos homenagem como “o mundo dos negócios”.

Mas se a ética empresarial como condenação foi levada a cabo pela filosofia e pela religião, o mesmo aconteceu com a dramática viragem em relação ao comércio que teve lugar no início da idade moderna. Calvino e, em seguida, os Puritanos Ingleses, pregaram as virtudes da poupança e da iniciativa, e Adam Smith canonizou a nova fé em 1776 na sua obra-mestra, A Riqueza das Nações. A nova atitude em relação ao comércio não surgiu, claro está, da noite para o dia; ao invés, baseou-se em tradições com uma longa história. As guildas medievais, por exemplo, tinham estabelecido os seus próprios códigos de “ética empresarial”, específicos para cada ofício, muito antes de o comércio se tornar a instituição fundamental da sociedade. Mas a aceitação geral do comércio e o reconhecimento da economia como uma estrutura fundamental da sociedade dependeu de uma maneira completamente nova de pensar acerca da sociedade que exigiu não apenas uma mudança na sensibilidade filosófica e religiosa, mas também, e subjacente a ela, um novo sentido da sociedade e até da natureza humana. Esta transformação pode ser explicada parcialmente em termos de urbanização, de sociedades maiores e mais centralizadas, da privatização de grupos familiares enquanto consumidores, do rápido desenvolvimento tecnológico, do crescimento da indústria e do concomitante desenvolvimento de estruturas, necessidades e desejos sociais. Com a obra clássica de Adam Smith, a chrematisike tornou-se a instituição fundamental e a principal virtude da sociedade moderna. Mas a versão popular degradada da tese de Smith (a cobiça é boa) não era de molde a desembocar na disciplina da ética empresarial (não será isto uma contradição nos termos?), e os discursos moralizadores acerca do comércio mantiveram o seu preconceito antigo e medieval. Homens de negócios como Mellon e Carnegie faziam conferências públicas acerca das virtudes do sucesso e da noblesse oblige dos ricos, mas a ética empresarial enquanto tal foi na sua maior parte desenvolvida por socialistas, como uma diatribe contínua contra a amoralidade do modo empresarial de pensar. Só muito recentemente começou a dominar no discurso acerca do comércio uma perspectiva mais moral e respeitável acerca desta actividade, o que arrastou consigo a ideia de estudar os valores e ideais subjacentes. Podemos facilmente compreender como a liberdade do mercado pode sempre ser uma ameaça aos valores tradicionais e hostil ao controlo governamental, mas já não concluímos de forma tão sofística que o próprio mercado não tem valores ou que os governos servem melhor o bem público do que os mercados.

3. O mito do lucro como objectivo

A ética empresarial já não se preocupa apenas ou fundamentalmente com a crítica do comércio e da sua prática. Os lucros já não são condenados juntamente com a “avareza” em sermões moralizantes e as grandes empresas já não são vistas como monólitos sem rosto e sem alma. A nova preocupação diz respeito a como deve o lucro ser concebido no contexto mais amplo da produtividade e da responsabilidade social, e como podem as grandes empresas, enquanto comunidades complexas, servir tanto os seus empregados como a sociedade na qual se encontram. A ética empresarial evoluiu de um ataque totalmente crítico ao capitalismo e ao “objectivo do lucro”, para um exame mais produtivo e construtivo das regras e práticas subjacentes ao comércio. Mas o antigo paradigma — aquilo a que Richard DeGeorge chamou “o mito dos negócios amorais” — persiste, não apenas num público desconfiado e em alguns filósofos de pendor socialista, mas também entre muitas pessoas que se dedicam ao comércio. Posto isto, a primeira tarefa da ética empresarial é abrir caminho por entre alguns mitos e metáforas altamente incriminatórios que, mais do que esclarecer, obscurecem o espírito subjacente que torna a actividade empresarial possível.

Cada disciplina tem o seu próprio vocabulário de autoglorificação. Os políticos deliciam-se com os conceitos de “serviço público” ao mesmo tempo que procuram o poder pessoal, os advogados defendem os nossos “direitos” na base de pagamentos chorudos — e os professores descrevem aquilo que fazem em termos da nobre linguagem da “verdade e do conhecimento”, enquanto gastam a maior parte do seu tempo e energia em política de bastidores. Mas, no caso do comércio, a linguagem de autoglorificação é frequente e particularmente pouco lisonjeira. Por exemplo, os executivos ainda falam acerca daquilo que fazem em termos do “lucro como objectivo”, sem se aperceberem de que a expressão foi inventada pelos socialistas do século XIX como um ataque ao comércio e à sua busca redutora de dinheiro com exclusão de todas as outras considerações e obrigações. É verdade que um negócio visa obter lucros, mas só o faz fornecendo bens e serviços de qualidade, criando empregos e “inserindo-se” na comunidade. Seleccionar os lucros em detrimento da produtividade ou do serviço público como o objectivo central da actividade empresarial é simplesmente provocatório. Os lucros não são, em si, o fim ou o objectivo da actividade empresarial: os lucros são distribuídos e reinvestidos. Os lucros são um meio para montar o negócio e recompensar os empregados, os executivos e os investidores. Para algumas pessoas os lucros podem ser um meio de registar os ganhos, mas mesmo nestes casos o objectivo é o estatuto e a satisfação de “ganhar” e não os lucros em si.

Uma imagem de si que alguns executivos têm, mais sofisticada mas não muito diferente, afirma que os gestores empresariais estão acima de tudo vinculados a uma e apenas uma obrigação: maximizar os lucros dos seus accionistas. Mas não é preciso inquirir se este é de facto o objectivo por detrás da maior parte das decisões de gestão para chamar a atenção para que, ainda que os gestores reconheçam que os seus próprios papéis nos negócios são definidos mais por obrigações do que pelo “objectivo do lucro”, esta imagem pouco lisonjeira foi simplesmente transferida para os accionistas (isto é, para os proprietários). Será verdade que os investidores/proprietários se preocupam apenas com a maximização dos seus lucros? Será, afinal, o accionista a encarnação daquele desumano homo economicus completamente destituído de responsabilidade e orgulho cívico, sem qualquer preocupação com as virtudes da empresa de que ele ou ela é proprietário para além das responsabilidades que podem torná-lo vulnerável a processos judiciais onerosos? E se alguns investidores fortuitos, que investem apenas por quatro meses, podem realmente não estar senão interessados em aumentar os seus investimentos em 30 %, como podemos ter tanta certeza de que os gestores da empresa têm alguma obrigação para com eles além de não derreter ou esbanjar intencionalmente o seu dinheiro? A procura do lucro não é o objectivo último e muito menos é o objectivo único dos negócios. É antes um dos muitos objectivos e ainda assim é-o enquanto um meio e não enquanto um fim em si.

É assim que compreendemos mal o comércio: adoptamos uma perspectiva demasiado redutora daquilo que o comércio é, por exemplo, a procura do lucro, e depois retiramos conclusões anti-éticas ou amorais. É este enfoque redutor e injustificado sobre, por exemplo, os “direitos dos accionistas” que tem sido usado para defender alguns dos “takeovers hostis”, extremamente destrutivos e certamente improdutivos, de grandes empresas nos últimos anos. Não estou com isto a negar os direitos dos accionistas a um retorno justo, nem as “responsabilidades fiduciárias” dos gestores de uma empresa. Quero apenas dizer que estes direitos e responsabilidades só têm sentido num contexto social mais vasto e que a própria ideia do “lucro como objectivo” como um fim em si — em oposição a uma concepção do lucro como um meio para encorajar e recompensar o trabalho árduo e o investimento, construindo um negócio melhor e servindo melhor a sociedade — é um obstáculo sério à compreensão do rico tecido de objectivos e actividades que compõem o mundo dos negócios.

4. Outros mitos e metáforas dos negócios

Entre os mitos e metáforas mais prejudiciais que encontramos no discurso acerca dos negócios estão aqueles conceitos “darwinistas” másculos como “a sobrevivência do mais apto” e “aquilo lá fora é uma selva” (para a origem destes conceitos, veja-se artigo 44, “O Significado da Evolução”). A ideia subjacente, claro está, é a de que a vida dos negócios é competitiva, e nem sempre justa. Mas estas duas observações óbvias são muito diferentes das imagens de “comer ou ser comido” e “cada um por si” que são vulgares no mundo empresarial. É verdade que o comércio é e deve ser competitivo, mas não é verdade que seja uma actividade assassina, canibal, onde “se faz aquilo que for preciso para sobreviver”. Por mais competitiva que uma dada indústria possa ser, assenta sempre sobre uma fundação de interesses partilhados e regras de conduta consensuais, e a competição tem lugar não numa selva mas numa comunidade, a qual presumivelmente serve e da qual depende. A vida empresarial é, antes de mais, fundamentalmente cooperativa. A competição só é possível nos limites de preocupações que são mutuamente partilhadas. E, contrariamente à metáfora da selva de “cada animal por si”, o comércio envolve sempre grandes grupos de cooperação baseados na confiança mútua, não apenas as próprias empresas, mas também redes de fornecedores, serviços, clientes e investidores. A concorrência é essencial para o capitalismo, mas confundir isto com concorrência “desenfreada” é minar a ética e também não compreender a natureza da concorrência. (Do mesmo modo, devemos olhar com desconfiança para a metáfora familiar da “guerra” que é popular em tantos conselhos de administração e para a corrente metáfora do “jogo” e a ênfase em “ganhar” que tem tendência para transformar a actividade séria de “ganhar a vida” em qualquer coisa como um desporto autocontido.)

A metáfora mais persistente, que parece resistir apesar da quantidade de provas acumuladas contra ela, é a do individualismo atomista. A origem da ideia segundo a qual a vida empresarial consiste simplesmente em transacções sobre as quais há acordo mútuo entre cidadãos individuais (evitando a interferência do governo) pode ser encontrada em Adam Smith e na filosofia que dominou a Grã-Bretanha no século XVIII. Mas a maior parte da vida empresarial de hoje consiste em papéis e responsabilidades em empreendimentos cooperativos, sejam eles pequenos negócios familiares ou empresas multinacionais gigantescas. O governo e as empresas são tão frequentemente parceiros quanto opositores (por mais frustrante que por vezes possa parecer o labirinto da “regulação”), seja por meio de subsídios, tarifas e incentivos fiscais ou sob a forma de empreendimentos em estreita cooperação (“Japan, Inc”. e projectos tão grandiosos como o do vaivém espacial da NASA). Mas o individualismo atomista não é apenas inadequado perante a complexidade empresarial do mundo dos negócios de hoje; é também ingénuo ao supor que não há quaisquer regras e práticas institucionais subjacentes à mais simples promessa, contrato ou troca. O comércio é uma prática social, e não uma actividade levada a cabo por indivíduos isolados. Só são possíveis porque têm lugar numa cultura com um conjunto de procedimentos e expectativas estabelecidos e estes (à excepção de detalhes) não estão abertos à manipulação individual.

Assim, é um sinal de considerável progresso que um dos modelos dominantes do pensamento empresarial corrente seja a ideia de uma “cultura empresarial”. Como em qualquer analogia, não há, claro, uma correspondência estrita, mas é importante considerar as virtudes desta metáfora. É social, e rejeita o individualismo atomista. Reconhece que o lugar das pessoas na organização é a estrutura fundamental da vida empresarial. Aceita abertamente a ideia de uma ética. Reconhece que os valores partilhados são o que mantém uma cultura coesa. Ainda deixa lugar para o individualista rebelde, o empreendedor, mas este ou esta só é possível na medida em que há um papel (e um papel importante) para a excentricidade e a inovação. Mas o problema da metáfora da “cultura” é que também ela tende a ser demasiado autocontida. Uma empresa não é como uma tribo isolada das Ilhas Trobriand. Uma cultura empresarial é uma parte inseparável de uma cultura mais vasta, é no máximo uma sub-cultura (ou uma sub-sub-cultura), uma unidade funcional especializada que está num órgão que está num organismo. Aliás, o que caracteriza todos estes mitos e metáforas é a tendência para ver o comércio como uma actividade isolada e separada, com valores diferentes dos valores da sociedade circundante. Acabar com esta perspectiva de isolamento é a primeira tarefa da ética empresarial.

5. Ética micro, macro e molar

Podemos muito bem distinguir três (ou mais) níveis de comércio e de ética empresarial, desde o micronível — as regras para uma troca justa entre dois indivíduos, até ao macronível — as regras institucionais ou culturais do comércio para toda uma sociedade (“o mundo dos negócios”). Devemos também circunscrever uma área a que podemos chamar o nível molar da ética empresarial, e que diz respeito à unidade básica do comércio nos nossos dias — a empresa. A micro-ética nos negócios é, claro, uma parte integrante da ética tradicional — a natureza das promessas, as consequências e outras implicações das acções de um indivíduo, o fundamento e a natureza dos diversos direitos individuais. O que é específico da micro-ética dos negócios é a ideia de troca justa e, juntamente com ela, a noção de um salário justo, de tratamento justo, do que pode ser considerado uma “pechincha” e do que, pelo contrário, constitui um “roubo”. A noção aristotélica de justiça “comutativa” é aqui particularmente útil, e mesmo os antigos se preocupavam já, de tempos a tempos, com a questão de saber se, por exemplo, o vendedor de uma casa estava obrigado a informar o potencial comprador de que o telhado tinha chegado ao seu limite e podia deixar entrar água às primeiras chuvas fortes.

Por seu lado, a macro-ética tornou-se uma parte integrante das questões mais vastas acerca da justiça, da legitimidade e da natureza da sociedade que constituem a filosofia social e política. Qual é a finalidade do “mercado livre” — ou é este em algum sentido um bem em si mesmo, com o seu próprio telos? São os direitos de propriedade privada básicos, precedendo de algum modo a convenção social (como John Locke ou, mais recentemente, Robert Nozick, defenderam) ou deve o mercado ser também concebido como uma prática social complexa da qual os direitos são apenas um ingrediente entre outros? Será o sistema de mercado livre “justo”? Será a maneira mais eficiente de distribuir bens e serviços numa sociedade? Prestará suficiente atenção a casos de necessidade desesperada (onde uma “troca justa” nem sequer está em causa)? Prestará suficiente atenção ao mérito, nos casos em que não está garantido que haja procura suficiente de virtude para que esta seja recompensada? Quais são as funções legítimas (e ilegítimas) do governo na vida dos negócios, e qual é a função da regulação governamental? Por outras palavras, a macro-ética é uma tentativa de ter uma imagem global, de compreender a natureza do mundo dos negócios e das suas funções próprias.

Mas a unidade “molar” definitiva do comércio moderno é a empresa, e as questões centrais da ética empresarial tendem a dirigir-se declaradamente aos directores e empregados daqueles poucos milhares de empresas que determinam a maior parte da vida comercial mundial. São, especificamente, questões que dizem respeito ao papel da empresa na sociedade e ao papel do indivíduo na empresa. Assim, não é de surpreender que os assuntos mais estimulantes se encontrem nos interstícios dos três níveis de discurso ético, por exemplo, a questão da responsabilidade social da empresa — o papel da empresa na sociedade mais vasta —, e questões de responsabilidades definidas pelo cargo — o papel do indivíduo na empresa.

6. A empresa na sociedade: a ideia de responsabilidade social

O conceito central na maior parte da ética empresarial mais recente é a ideia de responsabilidade social. É também um conceito que tem irritado muitos dos entusiastas do mercado livre tradicional e promovido alguns argumentos incorrectos ou enganadores. O mais famoso será talvez a diatribe do prémio Nobel da Economia Milton Friedman, no New York Times (13 de Setembro de 1970), intitulada “A responsabilidade social dos negócios é aumentar os seus lucros”. Neste artigo, Friedman chamava aos homens de negócios que defendiam a ideia de responsabilidade social da empresa “fantoches involuntários das forças intelectuais que estão a minar as bases de uma sociedade livre” e acusava-os de “pregar um socialismo puro e duro”. O argumento de Friedman consiste essencialmente em afirmar que os gestores de uma empresa são empregados dos accionistas e, enquanto tais, têm uma “responsabilidade fiduciária” de maximizar os seus lucros. Dar dinheiro para caridade ou outras causas sociais (excepto enquanto actividades de relações públicas visando aumentar os negócios) e envolver-se em projectos comunitários (que não aumentem os negócios da empresa) é equivalente a roubar os accionistas. Mais ainda, não há qualquer razão para supor que uma empresa ou os seus empregados têm alguma competência ou conhecimento especial no âmbito das políticas públicas, logo, quando se envolvem em actividades comunitárias (enquanto gestores da empresa, não enquanto cidadãos privados agindo em seu próprio nome), estão não só a ultrapassar as suas competências, como também a violar as suas obrigações.

Algumas das falácias presentes neste raciocínio têm a ver com a perspectiva redutora do comércio como se estivesse orientado para o lucro, e com o retrato unidimensional e muito pouco lisonjeiro do accionista que foi mencionado anteriormente; outras (“socialismo puro e duro” e “roubar”) são simplesmente excessos retóricos. O argumento da “competência” (também defendido por Peter Drucker no seu influente livro sobre gestão, Management) só faz sentido para casos em que as empresas levem a cabo projectos de engenharia social que estejam de facto para além das suas capacidades; mas será que é preciso competências especiais ou conhecimentos profundos para ter preocupações acerca do emprego discriminatório, ou das práticas de promoção dentro da empresa, ou dos efeitos devastadores dos lixos industriais sobre a paisagem envolvente? A resposta geral a argumentos do tipo do de Friedman que recentemente se tornou popular na ética empresarial pode ser sintetizada num modesto jogo de palavras: em vez do “accionista” (stockholder), os beneficiários das responsabilidades sociais da empresa são as partes interessadas (stakeholders), de que os accionistas são apenas uma subclasse. Os stakeholders de uma empresa são todos os que são afectados e que têm direitos e expectativas legítimos em relação às actividades da empresa, o que inclui os empregados, os consumidores e os fornecedores, assim como a comunidade envolvente e a sociedade no seu conjunto. A vantagem deste conceito é que ele permite expandir muito o enfoque das preocupações empresariais sem perder de vista as virtudes e capacidades particulares da própria empresa. Considerada deste modo, a responsabilidade social não é um fardo adicional sobre a empresa, mas uma parte integrante das suas preocupações essenciais, servir as necessidades e ser justo não apenas para com os seus investidores ou proprietários, mas também para com aqueles que trabalham, compram, vendem, vivem perto ou são de qualquer outro modo afectados pelas actividades que são exigidas e recompensados pelo sistema de mercado livre.

7. Obrigações para com os stakeholders: consumidores e comunidade

Os gestores das empresas têm obrigações para com os seus accionistas, mas também têm responsabilidades para com outras partes interessadas (stakeholders). Em particular, têm obrigações para com os consumidores e também para com a comunidade circundante, assim como para com os seus próprios funcionários (ver secção 8). O objectivo da empresa é, afinal de contas, servir o público, seja fornecendo produtos e serviços desejados e desejáveis, seja não prejudicando a comunidade e os seus cidadãos. Não se pode dizer, por exemplo, que uma empresa está a cumprir o seu objectivo público se está a poluir o ar ou as reservas de água, se está a estrangular o trânsito ou a açambarcar recursos comuns, se está (ainda que indirectamente) a promover o racismo ou o preconceito, se está a destruir a beleza natural do ambiente, ou se está a ameaçar o bem-estar financeiro ou social dos cidadãos locais. Em relação aos consumidores, a empresa tem a obrigação de fornecer bens e serviços de qualidade. Tem a obrigação de garantir que os seus produtos e serviços são seguros, através de investigação e de instruções adequadas, de avisos contra eventuais utilizações incorrectas. Os produtores são e devem ser responsáveis pelos efeitos perigosos e pela má utilização previsível dos seus produtos, por exemplo, a probabilidade de uma criança engolir uma peça pequena e facilmente destacável de um brinquedo feito especialmente para o grupo etário a que ela pertence; e hoje alguns grupos de defesa do consumidor sugerem que tal responsabilidade não deve ser excessivamente qualificada pela alegação de que “se trata de adultos que sabiam ou deviam saber os riscos do que estavam a fazer”. Esta última exigência aponta, no entanto, para uma série de preocupações problemáticas correntes, especificamente, a presunção geral de maturidade, inteligência e responsabilidade por parte do consumidor e a questão dos limites razoáveis da responsabilidade por parte do produtor. (É óbvio que às crianças se aplicam considerações especiais.) Em que medida deve o produtor tomar precauções contra utilizações dos seus produtos que sejam claramente idiossincráticas ou idiotas? Que restrições devem ser impostas a produtores que vendem e distribuem produtos comprovadamente perigosos, por exemplo, cigarros e armas de fogo — ainda que haja uma considerável procura desses produtos por parte dos consumidores — e deve o produtor ser responsável por aquilo que é claramente um risco previsível para o consumidor? De facto, cada vez mais se coloca a questão de saber se e em que medida devemos reinstalar aquele aviso agora antigo, “Consumidor, tem cuidado”, para contrariar a tendência descontrolada em direcção à irresponsabilidade do consumidor e à responsabilização empresarial indiscriminada.

A inteligência e a responsabilidade do consumidor estão também em causa no tópico muito discutido da publicidade, contra a qual algumas das mais sérias críticas das práticas e negócios correntes têm sido dirigidas. A defesa clássica do sistema de mercado livre consiste em afirmar que ele satisfaz a procura. Mas se forem os produtores a criar de facto a procura para os produtos que produzem, então esta defesa clássica perde o seu fundamento. Efectivamente, afirma-se que publicidade é em si coerciva, na medida em que interfere com a livre escolha do consumidor, o qual deixa de estar numa posição em que decide a melhor maneira de satisfazer as suas necessidades e é em vez disso submetido a um bombardeamento de influências que podem muito bem ser irrelevantes ou até contrárias a essas necessidades. E mesmo quando a desejabilidade do produto não está em causa, há questões muito reais acerca da publicidade de certas marcas e da criação artificial de “diferenciação de produtos”. E há ainda aquelas questões já familiares acerca do gosto — na fronteira (e por vezes para além dela) entre a ética e a estética. Há o uso do sexo — muitas vezes tentador e por vezes declarado — para aumentar o poder de atracção de produtos que vão da pastilha elástica aos automóveis; há as promessas implícitas, mas obviamente falsas, de sucesso e aceitação social se comprarmos este sabonete ou aquela pasta de dentes; e há as representações ofensivas das mulheres ou de minorias e muitas vezes da natureza humana enquanto tal, apenas para vender produtos que a maior parte de nós podia perfeitamente dispensar. Mas será que este consumo supérfluo e o gosto (ou falta dele) que o vende é uma questão ética? Será que se pode realmente esperar que alguém acredite que a sua vida irá mudar com uma pitadinha de mentol ou um chão de cozinha que não precisa de ser encerado?

Uma questão muito mais séria é, claro está, a mentira pura e simples em publicidade. Mas aquilo que constitui uma “mentira” não é de todo evidente neste mundo da sedução, do kitsch e da hipérbole. Talvez ninguém acredite realmente que uma certa pasta de dentes ou um par de calças de ganga de marca possa garantir o seu sucesso com a namorada dos seus sonhos (embora milhões estejam dispostos a arriscar, porque nunca se sabe), mas quando um produto tem efeitos que podem muito bem ser fatais, a exactidão da publicidade é considerada com muito mais cuidado. Quando um produto médico é publicitado com base em informação técnica enganosa, incompleta ou simplesmente falsa, quando um “remédio para a constipação” é vendido ao balcão com a promessa, mas sem qualquer prova concreta, de que pode aliviar os sintomas e evitar complicações, quando efeitos secundários conhecidos e perigosos são ocultados sob a afirmação genérica “Como no caso de qualquer outro medicamento, consulte o seu médico”, então a aparentemente simples “verdade na publicidade” torna-se um imperativo moral e alguns princípios éticos (se não mesmo a lei) foram violados.

Tem-se argumentado frequentemente que, num mercado livre funcionando idealmente, a única publicidade que devia ser necessária ou permitida seria a pura informação relativa à utilidade e qualidade do produto. Mas, em algumas circunstâncias, o consumidor médio pode não ter nem ser capaz de compreender a informação relevante acerca do produto em causa. No entanto, em muitos casos, os consumidores assumem muito pouca responsabilidade pelas suas próprias decisões e não se pode com justiça culpar a publicidade pela sua irresponsabilidade ou irracionalidade. As empresas têm responsabilidades para com os seus clientes, mas os consumidores também têm responsabilidades. A ética empresarial não é uma questão de responsabilidade empresarial apenas, mas de um conjunto interligado de responsabilidades mútuas.

8. O indivíduo na empresa: responsabilidades e expectativas

A parte interessada (stakeholder) mais maltratada no padrão das responsabilidades empresariais será talvez o empregado da empresa. Na teoria tradicional do mercado livre, o trabalho do empregado é ele próprio mais uma mercadoria, sujeita às leis da oferta e da procura. Mas enquanto que podemos vender a preço de saldo alfinetes ou peças de máquina que já não têm procura, ou simplesmente desfazermo-nos deles, o empregado é um ser humano, com necessidades e direitos muito reais e distintos do seu papel na produção ou no mercado. Um espaço de trabalho apertado e desconfortável ou longas e duras horas de trabalho podem reduzir as despesas ou aumentar a produtividade, e pagar salários de sobrevivência a empregados que, por uma razão ou outra, não podem, não se atrevem ou não sabem como queixar-se, pode aumentar os lucros, mas tais condições e práticas são hoje em dia reconhecidas por todos menos pelo mais empedernido “darwinista” como altamente anti-éticas e legalmente injustificáveis. Mesmo assim, o modelo do trabalho como “mercadoria” ainda tem uma forte influência em muito do pensamento empresarial, tanto no que diz respeito a gestores e executivos como a trabalhadores, tanto especializados como indiferenciados. É por esta razão que muita da mais recente ética empresarial centrou a sua atenção em noções como os direitos dos empregados e, a partir de uma perspectiva bastante diferente, é também por esta razão que a velha noção de “lealdade à empresa” voltou a merecer atenção. Afinal, se uma empresa trata os seus empregados como meras peças descartáveis, ninguém pode ficar surpreendido se os empregados começarem a tratar a empresa com uma mera fonte transitória de salários e benefícios.

No entanto, a outra face deste quadro perturbador é a também renovada ênfase dada à noção de papéis e responsabilidades do empregado, uma das quais é a lealdade à empresa. Nunca é demais sublinhar que “lealdade” aqui é uma preocupação que funciona nos dois sentidos; o empregado pode, em virtude do seu emprego, ter obrigações especiais para com a empresa, mas a empresa tem por sua vez obrigações para com o empregado. Mas é perigoso colocar ênfase em conceitos como “lealdade” sem esclarecer muito bem que a lealdade está ligada não apenas ao emprego em geral mas também ao papel e responsabilidades particulares de cada um. Um papel, segundo R.S. Downie, é “um aglomerado de deveres e direitos com algum tipo de função social” — neste caso, uma função na empresa (Roles and Values. p. 128). Há certos aspectos do papel e das responsabilidades de cada um que podem ser especificados num contrato de trabalho e na lei, mas muitos deles — por exemplo, os costumes locais, os padrões de deferência e outros aspectos daquilo a que há pouco chamámos “cultura empresarial” — só se tornam evidentes com o tempo e através do contacto com outros empregados. Mais ainda, não se trata simplesmente de “fazer o nosso trabalho” mas, por razões de ética e de economia, de fazer o nosso trabalho o melhor possível. A este respeito parece-me correcto o que diz Norman Bowie: “Um trabalho nunca é apenas um trabalho”. Tem também uma dimensão moral: orgulho no nosso produto, cooperação com os colegas e preocupação com o bem-estar da empresa. Mas, é claro, estas obrigações decorrentes do papel têm os seus limites (por mais que certos gestores tentem negar isto para sua conveniência). O comércio não é um fim em si, está ao invés inserido e é sustentado por uma sociedade que tem outras e mais importantes preocupações, normas e expectativas.

Ouvimos muitas vezes empregados (e até mesmo executivos de alto nível) queixarem-se de que os seus “valores empresariais estão em conflito com os seus valores pessoais”. O que isto normalmente significa é que, sugiro eu, certas exigências feitas pelas empresas são anti-éticas ou imorais. Aquilo a que a maior parte das pessoas chama os seus “valores pessoais” são de facto os valores mais profundos e amplos da sua cultura. E é neste contexto que devemos compreender a já familiar figura trágica da vida empresarial contemporânea — o denunciante. Este não é simplesmente um excêntrico que não consegue adaptar-se à organização que ameaça denunciar. O denunciante reconhece não ser capaz de tolerar a violação da moral ou da confiança pública e sente-se na obrigação de fazer alguma coisa. As biografias da maior parte dos denunciantes não são uma leitura agradável, mas a sua existência e ocasional sucesso testemunham amplamente as obrigações interligadas das empresas, dos indivíduos e da sociedade. Aliás, talvez o resultado particular mais importante da emergência da ética empresarial no espaço público tenha sido chamar a atenção para esses indivíduos e dar uma nova respeitabilidade àquilo que os seus empregadores vêem incorrectamente como nada mais do que falta de lealdade. Mas quando a exigência de fazer negócio entra em conflito com a moral ou o bem-estar da sociedade, são os negócios que têm que ceder, o que é, talvez, o fundamental da ética empresarial.

Robert C. Solomon
A Companion to Ethics, ed. por Peter Singer (Blackwell, 1993)

Referências

Leitura complementar

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ISSN 1749-8457