Início Menu
1 de Janeiro de 1998   História da filosofia

Filosofia continental

Anthony Quinton
Tradução de Paulo Ruas

A expressão “filosofia continental” adquiriu o seu significado corrente apenas a seguir à Segunda Guerra Mundial, quando o acelerado processo de mútua exclusão entre a filosofia praticada nos países de língua inglesa e no continente europeu, cuja origem se situa no início do século, finalmente foi reconhecido como tão profundo quanto de facto é. Na Idade Média a filosofia era praticada por pessoas que, independentemente do seu local de nascimento, se expressavam numa língua universal, o latim, considerada a única língua culta, e se deslocavam incessantemente de um centro de ensino para outro. Esta unidade manteve-se durante o Renascimento e sobreviveu ao escritos filosóficos de Bacon e Descartes, em vernáculo. O vernáculo alargou-se bastante tardiamente à Alemanha, e constituiu o veículo das três Críticas de Kant. O seus primeiros escritos foram em latim, tal como os de Leibniz, que também utilizava o francês. Christian Wolf, um discípulo de Leibniz, em cuja escola de pensamento Kant se formou, publicou os seus trabalhos em latim e na língua alemã.

O próprio Locke, cujos escritos foram bastante influentes em França, foi influenciado por Descartes e Gassendi, tendo estudado Malebranche. Hume, que despertou Kant do seu “sono dogmático” leu Bayle (e foi acusado por Samuel Johnson de escrever como um francês). A filosofia escocesa do senso comum foi um elemento central no eclectismo oficial de Victor Cousin durante o período da monarquia de Orleães. Mill estudou Comte e escreveu sobre ele. Green, Bradley e os idealistas absolutos de Inglaterra e da Escócia, estudaram cuidadosamente Kant e Hegel, tendo sido defensores entusiásticos de Lotze. Os filósofos de língua inglesa manifestaram, no entanto, um interesse reduzido pelo neo-kantismo prevalecente na Alemanha do século XIX ou pelo “espiritualismo” dos filósofos franceses do mesmo período. Russell e Moore estudaram, respectivamente, Frege e Brentano, ambos as fontes principais do pensamento de Husserl, ainda que nenhum deles ou qualquer dos seus compatriotas revelasse interesse por Husserl. William James leu Renouvier e Bergson. Contudo, no final da Primeira Guerra Mundial, as ruptura entre as filosofias da Europa continental e da Inglaterra e Estados Unidos, estava já razoavelmente bem estabelecida.

A ruptura foi completa após a Segunda Guerra Mundial. Bergson ainda foi objecto de um breve culto entre alguns filósofos britânicos e Russell levou-o suficientemente a sério para o criticar com algum detalhe. Croce esteve na moda durante um período ainda mais curto, apesar de ter conquistado um discípulo distinto, R. G. Collinwood, que o reconheceu superficialmente. Houve também um brevíssimo interesse por Husserl, mas as restantes luminárias filosóficas do continente europeu durante o período entre as duas guerras foram ignoradas: Brunschvicg, Nicolai Hartmann (um dos seus trabalhos periféricos foi traduzido), Dilthey (que morreu em 1911 mas cuja fama foi em larga medida póstuma), Scheler, Gilson e Cassirer atraíram a atenção dos interessados em história da filosofia; Maritain a dos católicos; Mach, Poincaré e Duhem, para regressar um pouco atrás, a dos filósofos da ciência (Russell reconheceu a sua dívida por Mach e Poincaré no prefácio de Our Knowledge of the External World).

A descoberta de Sartre aquando da libertação da França chamou a atenção geral para o existencialismo e a fenomenologia, à qual estava associado. Heidegger não era totalmente desconhecido. Ryle escrevera respeitosamente, mas sem ocultar um elemento de suspeita, acerca de Sein und Zeit em 1918, e quatro anos depois, num espírito penetrantemente mais crítico, sobre fenomenologia, ainda que, na altura, não houvesse já entre os filósofos britânicos qualquer interesse pela fenomenologia que conviesse repelir. Nos anos trinta, os filósofos da Europa continental lidos atentamente pertenciam ao Círculo de Viena, a maioria dos quais veio a estabelecer-se em países de língua inglesa. Havia a consciência de outros grupos que trabalhavam num espírito semelhante, na Polónia e na Escandinávia, ainda que Twardowski, Hägerström, Kotarbinski e Marc-Wogau fossem pouco mais que nomes para os filósofos britânicos.

Desde 1945, o inicialmente restrito grupo de filósofos de língua inglesa interessados em filosofia continental tem-se alargado lentamente. Um certo número de filósofos alemães e franceses associaram-se a um ou outro ramo da filosofia analítica praticada no estilo anglo-americano. Não existe, todavia, qualquer convergência perceptível entre estes dois universos filosóficos. O existencialismo, o estruturalismo e a teoria crítica são bastante diferentes entre si. O primeiro exalta o indivíduo humano como criador de sentido num mundo de outro modo privado de significado; o segundo proclama a morte do homem e atribui as suas características humanas a certas estruturas mentais, como a linguagem, que define o que o homem é e faz; o terceiro visa libertar a consciência, de forma bastante abstracta, da “existência social” onde o marxismo ortodoxo a mergulhou. Mas, em diferentes graus, todos atribuem maior credibilidade a afirmações dramáticas, e até melodramáticas, que a argumentos racionalmente sustentados.

O existencialismo possui uma longa e distinta tradição. Descende, por um lado, de Kierkegaard e Nietzsche; o primeiro afirma o carácter irredutível dos indivíduos particulares e a ininteligibilidade de Deus, bem como a sua inevitabilidade, o segundo sustenta que o intelecto humano é uma arma na luta pela sobrevivência e pelo poder, não um meio para a contemplação de verdades objectivas. Os existencialistas associaram esta atitude cósmica de grande efeito à fenomenologia de Husserl. Husserl aplicara a sua técnica de inspecção directa da consciência, liberta de pressupostos, principalmente a actividades cognitivas. Os existencialistas aplicaram-na ao homem considerado como agente e portador de desejos e emoções. Heidegger, após ter reunido ambas as coisas num conjunto único em Sein und Zeit, adoptou uma perspectiva meditativa, segundo a qual compete ao filósofo aguardar passivamente as intimações que o Ser possa dirigir-lhe. Sartre acrescentou um grão de pimenta literária e sensibilidade urbana francesa ao primeiro Heidegger. Merleau-Ponty reinstalou o eu cartesiano no corpo de que continuamente tem consciência e sem o qual é incapaz de percepcionar e agir.

O estruturalismo tem uma proveniência mais recente e humilde. Nasceu na Genebra do linguista Ferdinand de Saussure, chegou a França através do antropólogo Lévi-Strauss e proliferou impregnando a crítica literária de Barthes, a psiquiatria de Lacan e o marxismo de Althusser. Podemos dizer que alcançou o seu ponto culminante com Foucault, tendo-se transcendido, em direcção a um espaço supra-lunar intelectual, com Derrida. Saussure sustentou que a linguagem não consiste numa acumulação de convenções independentes mas num sistema de interligações no qual cada elemento é o que é em virtude do conjunto de relações que mantém com todos os outros no sistema. Nas mãos de Lévi-Strauss isto conduziu à conclusão de que nada existe de realmente primitivo nas linguagens até então supostamente primitivas e nos povos supostamente primitivos que as falam. Foucault viu na mente humana o predomínio de diferentes formas de representar o mundo em épocas sucessivas, cada uma das quais consistiria num estratagema nietzschiano impessoal para dominar as restantes.

A teoria crítica foi inspirada pela rejeição de Georg Lukács da doutrina marxista ortodoxa, segundo a qual as ideias e crenças dos indivíduos humanos são determinadas totalmente pelas circunstâncias socio-económicas. Os especialistas propriamente ditos da teoria crítica — Horkheimer, Adorno, Marcuse e, na geração subsequente, Habermas — puseram de parte a identificação positivista da racionalidade com o espírito científico, pelo menos na sua aplicação ao homem e à sociedade. Pensaram, neste domínio, que é indispensável apreender as coisas, à maneira de Hegel, como uma totalidade, e não em função dos seus fragmentos abstractos. A influência de Nietzsche está ainda presente, ao defenderem que a linguagem e as ideias podem ser empregues como instrumentos de dominação, porque criadoras de uma “falsa consciência”.

Existiram algumas afinidades entre a ética da decisão existencialista e as teorias éticas não cognitivistas, pelo menos em algumas das suas versões mais iconoclastas. A linguística estrutural de Chomsky tinha um certo número de aspectos em comum com a de Saussure, mas, ao contrário dos seguidores de Saussure, combinou-a com um extremismo radical acerca dos costumes e em política. As evidentes intenções políticas da teoria crítica tornaram-na desinteressante para os filósofos analíticos, comprometidos com uma posição neutral. Em caso algum existiu uma conexão suficiente para que se estabelecesse qualquer reaproximação. O desconstrucionismo de Derrida, segundo o qual tudo é texto, um texto susceptível de infindáveis interpretações livres, representa para os filósofos analíticos uma reductio ad absurdum da filosofia, dada a sua incompatibilidade com padrões de verdade, justificação ou consistência lógica. Transforma a filosofia não apenas num jogo, mas num jogo sem regras.

Anthony Quinton
Oxford Companion to Philosophy, org. por Ted Honderich (Oxford University Press, 1995), pp. 666-670.

Bibliografia

Copyright © 2024 criticanarede.com
ISSN 1749-8457