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Crítica
22 de Junho de 2019   História da filosofia

Introdução à história da filosofia

A. C. Grayling
Tradução de Desidério Murcho

A história da filosofia, tal como hoje é vista por estudantes e professores de filosofia, é uma construção retrospectiva. É escolhida a partir do fluxo mais vasto da história das ideias de modo a fornecer os seus antecedentes às preocupações filosóficas de hoje. Tem de se fazer notar este facto mais que não seja para evitar confusões com as próprias palavras “filosofia” e “filósofo”. Ao longo de quase toda a sua história, “filosofia” tinha como significado geral “investigação racional” apesar de, a partir do início dos tempos modernos, na Renascença, e até ao século XIX, ter passado mais em particular a significar aquilo a que agora chamamos “ciência”, apesar de um “filósofo” ser ainda alguém que investigava fosse o que fosse. Daí o que o Rei Lear diga a Edgar: “Deixai-me primeiro falar com este filósofo: o que causa a trovoada?” Na lápide de William Hazlitt, entalhada em 1820, o famoso ensaísta é descrito como “o primeiro (sem rival) Metafísico do seu tempo”, porque nessa altura o que agora chamamos “filosofia” chamava-se “metafísica”, para distingui-la do que agora chamamos “ciência”. Esta distinção era muitas vezes assinalada pelos rótulos “filosofia moral”, para significar o que agora chamamos “filosofia”, e “filosofia natural” para significar o que agora chamamos “ciência”.

A palavra “cientista” foi introduzida muito recentemente, em 1833, dando à palavra relacionada “ciência” o sentido comum que agora tem. Depois dessa data, as palavras “filosofia” e “ciência” assumiram os seus significados actuais, à medida que as ciências se afastavam mais e mais da investigação geral ao se especializarem e se tornarem cada vez mais técnicas.

Na filosofia contemporânea, as áreas principais de investigação são a epistemologia, a metafísica, a lógica, a ética, a estética, a filosofia da mente, a filosofia da linguagem, a filosofia política, a história dos debates nestas áreas de investigação, e o exame filosófico dos pressupostos, métodos e teses de outros campos de investigação na ciência e na ciência social. Na sua maior parte, e certamente no caso das três primeiras, estas são o grosso do estudo da filosofia nas universidades do mundo anglófono e na Europa actual.

E correlativamente, estes são os campos de investigação que determinam que vertentes da história geral das ideias são seleccionadas como a “história da filosofia” actual, deixando assim de lado a história da tecnologia, da astronomia, da biologia e da medicina, da Antiguidade em diante, a história da física e da química a partir do século XVII, e a emergência das ciências sociais como disciplinas definidas a partir do século XVIII.

Para ver o que determina as vertentes da história das ideias que são seleccionadas como “história da filosofia”, precisamos consequentemente de deitar um olhar retrospectivo através das lentes dos vários ramos da filosofia contemporânea anteriormente elencados, e isto exige um entendimento preliminar do que eles são.

A epistemologia ou “teoria do conhecimento” é a investigação da natureza do conhecimento e de como este é adquirido. Investiga as distinções entre conhecimento, crença e opinião, procura especificar as condições em que é justificado afirmar que se sabe algo, e examina e oferece respostas aos desafios cépticos ao conhecimento.

A metafísica é a investigação da natureza da realidade e da existência. O que existe, e qual é a sua natureza? O que é a existência? Quais são os tipos mais fundamentais de seres? Há tipos diferentes de existência ou de coisa existente? Existem entidades abstractas fora do espaço e do tempo, como os números e os universais, além das coisas concretas no espaço e no tempo, como as árvores e as pedras? Existem entidades sobrenaturais como as divindades além do domínio natural? A realidade é uma coisa ou várias? Se os seres humanos são na sua totalidade parte da ordem causal natural do universo, poderá haver algo como o livre-arbítrio?

A metafísica e a epistemologia são centrais para a filosofia como um todo; são, digamos, a física e a química da filosofia; compreender os problemas e questões destas duas áreas de investigação é básico para a discussão de todas as outras áreas da filosofia.

A lógica — a ciência do raciocínio válido e sólido — é o instrumento geral da filosofia, como a matemática é o instrumento da ciência. No Apêndice apresento um esboço das ideias básicas da lógica e explico os seus termos principais.

A ética, como disciplina do currículo de filosofia, é a investigação dos conceitos e teorias do bem, do correcto e do incorrecto, da escolha e acção morais. A expressão “como disciplina do currículo de filosofia” é usada aqui porque a palavra “ética” tem múltiplas aplicações. Mesmo quando é usada como rótulo de uma área da filosofia serve para denotar duas questões separáveis: o exame dos conceitos e do raciocínio éticos — isto descreve-se mais precisamente como “metaética” — e o exame das morais “normativas” que procuram dizer-nos como viver e como agir. Distingue-se a moral normativa da investigação metaética mais teórica descrevendo-a como uma empresa de “primeira ordem”, e a metaética como uma empresa de “segunda ordem”. Por natureza, a filosofia é uma investigação de segunda ordem, de modo que “ética”, no contexto do estudo filosófico, quer normalmente dizer metaética.

Porém, a palavra “ética” também denota, ainda que indirectamente, a perspectiva e as atitudes dos indivíduos ou das organizações com respeito aos seus valores, à maneira como agem e como se vêem a si próprios. Este é um uso habitual e adequado do termo; e — o que é interessante — a reflexão sobre esta questão mostra que a palavra “ética” e “moral” não querem dizer o mesmo. Isto compreende-se mais facilmente quando se repara nas etimologias dos termos: “ética” vem do grego ethos, que significa “carácter”, ao passo que “moral” deriva da sua introdução, por parte de Cícero, a partir do latim mos, moris (plural mores), que significa “costume” e até “etiqueta”. A moral, deste modo, é acerca das nossas acções, deveres e obrigações, ao passo que a ética é acerca do “género de pessoa que se é”, e apesar de os dois estarem obviamente conectados, são também obviamente distintos.

Esta distinção aparece também naturalmente nas arenas da discussão metaética e normativa. Ao identificar o locus do valor, algumas teorias metaéticas centram-se no carácter do agente, outras nas consequências das acções, e outras ainda na conformidade da acção ao dever. Quando é o carácter do agente que conta, estamos a discutir a ética no sentido de ethos já descrito; quando é a consequência das acções ou a conformidade ao dever que conta, é o âmbito mais restrito da moral que se tem em vista.

A estética é a investigação da arte e da beleza. O que é a arte? Será a beleza uma propriedade objectiva das coisas naturais ou feitas pelos seres humanos, ou é subjectiva, existindo apenas nos olhos do observador? Poderá uma coisa ser esteticamente valiosa independentemente de ser bela ou não e independentemente de ser ou não uma obra de arte? Serão os valores estéticos das coisas naturais (uma paisagem, um pôr-do-sol, um rosto) diferentes dos que atribuímos aos artefactos (uma pintura, um poema, uma peça musical)?

A filosofia da mente é a investigação da natureza dos fenómenos mentais e da consciência. Já fez parte integrante da metafísica porque esta última, ao investigar a natureza da realidade, tem de considerar se esta é apenas material, ou se além disso tem aspectos não-materiais como a mente, ou se é apenas mental como defendem os filósofos “idealistas”. Mas à medida que cresceu o consenso em torno da perspectiva de que a realidade é fundamental e exclusivamente material, e que os fenómenos mentais são produtos da actividade material do cérebro, compreender estes fenómenos, e em particular a natureza da consciência, tornou-se um tópico de interesse intenso.

A filosofia da linguagem é a investigação de como se atribui significado a sons e marcas de um modo que permite a comunicação e dá corpo ao pensamento, tornando até possível, talvez, na verdade, o pensamento, acima de um certo nível rudimentar. Qual é a unidade do significado semântico — uma palavra, uma frase, um discurso? O que é o próprio “significado”? O que sabemos — ou sabemos como fazer — quando “sabemos o significado” de expressões de uma linguagem? Há realmente uma linguagem como o inglês, ou há tantos idiolectos de inglês quantas as pessoas que os falam, tornando assim uma linguagem de facto uma colecção de idiolectos que não são completamente coincidentes? Como interpretamos ou compreendemos o uso alheio da linguagem? Quais são as implicações epistemológicas e metafísicas da nossa compreensão da linguagem, significado e uso da linguagem?

Por boas razões, as filosofias da mente e da linguagem unificaram-se numa única investigação geral na filosofia académica mais recente, o que é ubiquamente atestado pelos títulos dos livros e cursos universitários.

A filosofia política é a investigação sobre os princípios da organização social e política, e sua justificação. Pergunta-se qual é a melhor maneira de organizar e administrar uma sociedade, o que legitima as formas de governo, em que bases se apoiam as reivindicações de autoridade no estado ou numa sociedade, e quais são as vantagens e desvantagens da democracia, comunismo, monarquia e outras formas de organização política.

A história da filosofia, tal como é vista retrospectivamente através das lentes das investigações anteriores é uma parte essencial da própria filosofia, porque todas essas investigações evoluíram ao longo do tempo como uma grande conversa — digamos — entre pensadores que vivem em diferentes séculos e em diferentes circunstâncias, mas que contudo se entregam às mesmas questões fundamentais; e portanto conhecer o historial destes debates é crucial para compreendê-los. Isto poupa-nos o trabalho de reinventar a roda uma vez e outra, ajuda-nos a evitar erros e a reconhecer ciladas, permite-nos ganhar com os trabalhos dos nossos predecessores, e dá-nos materiais para usar ao tentar compreender o tema em questão, e para formular as perguntas certas.1

O exame filosófico dos pressupostos, métodos e teses dos outros campos de investigação é o que se quer dizer com rótulos como “filosofia da ciência”, “filosofia da história”, “filosofia da psicologia” e afins. Toda a investigação repousa em pressupostos e usa metodologias, e é necessário ter consciência de ambos. As questões filosóficas sobre a ciência, por exemplo, são formuladas pelos próprios cientistas e não apenas pelos filósofos; as questões filosóficas sobre o estudo da história são igualmente levantadas por historiadores ao discutir os seus métodos e objectivos. Considere-se mais em particular cada uma por sua vez, como se segue.

Deve a ciência ser entendida em termos realistas ou instrumentalistas — isto é, são as entidades referidas pelos termos técnicos da ciência realmente coisas que existem, ou são apenas construções úteis que ajudam a organizar a compreensão dos fenómenos que são objecto de estudo? O raciocínio científico é dedutivo ou indutivo? Há algo como um conhecimento científico ou, entendendo-se que toda a ciência está aberta à refutação com base em provas ulteriores, deve-se concebê-la como um sistema de teorias poderosamente provadas que são contudo intrinsecamente derrotáveis?

Quanto à história: se não houver provas a favor ou contra uma tese sobre algo que ocorreu no passado, é a tese apesar disso definitivamente verdadeira ou falsa, ou não é uma coisa nem outra? A história é escrita no presente com base em provas — diários, cartas, vestígios arqueológicos — que sobreviveram até ao presente (ou pelo menos é o que pensamos): são parciais e fragmentárias, e muitos dos rastos do passado perderam-se; há por isso algo como conhecimento do passado, verdadeiramente, ou há apenas reconstrução interpretativa na melhor das hipóteses — e talvez, demasiado frequentemente, apenas conjectura?

A reflexão sobre os tipos de investigações, e os tipos de questões que essas investigações suscitam, mostra que a filosofia é a tentativa de dar sentido às coisas, de alcançar compreensão e perspectiva, em relação às muitas áreas da vida e do pensamento nas quais a dúvida, dificuldade, obscuridade e ignorância prevalecem — o que é dizer as fronteiras de todas as nossas empresas. Descrevo o papel da filosofia aos meus estudantes deste modo: nós, humanos, ocupamos apenas um trecho de luz nas imensas trevas da ignorância. Cada uma das disciplinas especiais tem o seu lugar num arco da circunferência desse trecho de luz, esforçando-se para ver na direcção das sombras, para entrever figuras, e assim alargar um pouco mais o horizonte de luz. A filosofia patrulha toda a circunferência, esforçando-se em especial naqueles arcos onde não há ainda qualquer disciplina especial, tentando encontrar as perguntas certas a fazer para que possa haver a possibilidade de formular respostas.

Esta tarefa — fazer as perguntas certas — é na verdade crucial. Até aos séculos XVI e XVII os filósofos não faziam com suficiente frequência as perguntas certas e da maneira certa sobre a natureza; quando o fizeram, as ciências da natureza nasceram, desenvolvendo-se em campos magníficos e poderosos de investigação que trouxeram à existência o mundo moderno. A filosofia deu assim à luz a ciência naqueles séculos; no século XVIII deu à luz a psicologia, no XIX a sociologia e a linguística empírica, no século XX desempenhou papéis importantes no desenvolvimento da inteligência artificial e da ciência cognitiva. As suas contribuições para alguns aspectos da neurociência e da neuropsicologia estão ainda em curso.

Mas o núcleo de questões em epistemologia, metafísica, ética, filosofia política, as “filosofias de”, entre outras, persistem; são perenes e são perguntas perenemente urgentes, porque os esforços para lhes responder fazem parte da grande aventura do esforço da humanidade para se compreender a si mesma e para compreender o seu lugar no universo. Algumas dessas questões não parecem ter resposta — ainda que agir com base na ideia de que não a têm seja desistir demasiado depressa. Além disso, como disse Paul Valéry, Une difficultè est une lumière. Une difficultè insurmontable est un solleil: “Uma dificuldade é uma luz. Uma dificuldade inultrapassável é um Sol”. Maravilhosa expressão! Pois ensina-nos que se aprende muitíssimo com o esforço para resolver até o que não parece ter solução — como o atesta a história da filosofia.

O que se segue é, pois, a história da filosofia no sentido actual da palavra “filosofia”, mostrando como o tema das investigações filosóficas actuais começou e se desenvolveu. É sobretudo a história da filosofia ocidental que é descrita nestas páginas, mas ofereço panorâmicas das filosofias indiana, chinesa e árabe persa (e uma ponderação da filosofia em África) para fazer notar algumas conexões e diferenças entre as grandes tradições do pensamento: veja-se as páginas iniciais da Parte V. Em todos os casos, centrei-me por necessidade nas principais figuras e ideias, e no caso das tradições não-ocidentais escrevo como um espectador que observa do outro lado de uma barreira linguística, pois tenho um acesso muitíssimo limitado ao sânscrito, páli e chinês antigo, e nenhum ao árabe.

A diferença entre esta e outras histórias da filosofia é que esta não envereda pelo que a maior parte das outras oferece, nomeadamente tratamentos das teologias de Agostinho, alguns dos padres da igreja do cristianismo primitivo e dos “escolásticos” dos tempos medievais tardios como Tomás e Duns Escoto. Este livro é uma história da filosofia e não da teologia e da religião. Um aspecto estranho das histórias da filosofia que incluem teólogos entre os filósofos é que não há melhores razões para incluir teólogos cristãos quando se exclui os judaicos ou islâmicos; e não há melhores razões para incluir a teologia numa história da filosofia do que para incluir uma história da ciência (na verdade, há até mais razões para incluir esta última). Uma diferença fundamental entre a filosofia e a teologia é que a primeira é a tarefa de tentar dar sentido a nós próprios e ao nosso mundo de um modo que se pergunta o que devemos pensar e porquê, ao passo que a teologia é a tarefa de explorar e expor ideias sobre um certo tipo de coisa ou coisas que se considera que existem efectiva ou possivelmente, nomeadamente um deus ou deuses — um ser ou seres supostamente diferentes de nós próprios de maneiras significativas e operativas. Como escrevo na Parte V ao lidar com este aspecto em conexão com a filosofia árabe persa, “se o ponto de partida da reflexão é a aceitação de uma doutrina religiosa, então a reflexão que se segue é teologia, ou teodiceia, ou exegese, ou casuística, ou apologética, ou hermenêutica, mas não filosofia”: e esse é o princípio de demarcação que aplico em todo o livro.

Uma maneira de dramatizar polemicamente este ponto é dizer que a filosofia está para a teologia como a agricultura para a jardinagem: é uma empresa muito maior, mais abrangente e mais variada do que a empresa particular, local e centrada de “falar ou teorizar sobre um deus” (que é o que theo-logos quer dizer). Claro que em filosofia a questão de as entidades ou agências sobrenaturais existirem, ou não, e que diferença se seguiria para a nossa imagem do mundo e de nós se uma ou mais existissem, emerge de tempos a tempos; e há filósofos que, com base numa concepção de divindade oriunda da “teologia natural” (ou seja, de considerações gerais sobre uma mente ou agência sobrenatural), a usam para garantir a possibilidade do conhecimento (como fez Descartes) ou como base da existência (como Berkeley fez, e não estava de modo algum sozinho). Estas perspectivas são discutidas nos lugares apropriados nas páginas seguintes. Mas os esforços emaranhados para dar sentido a algo como uma divindade tal como as religiões tradicionais querem que seja entendida — como um ser, ou seres, omnipotente, eterno, omnisciente, etc. — não são senão tangencialmente uma parte frutífera do trajecto da filosofia, sendo por isso deixados aos seus próprios historiadores.

A. C. Grayling
Uma História da Filosofia (Lisboa: Edições 70, 2020)

Nota

  1. Tudo na filosofia e na história da filosofia é objecto de debate. A tese de que toda a tradição filosófica é uma longa conversa seria contestada por quem pensa que não conseguimos compreender o pensamento de um filósofo do passado sem o colocar firmemente no contexto do seu tempo. Isto é verdadeiro; mas não impede que se veja a continuidade entre as suas ideias e preocupações e as nossas. As nossas emergiram muitas vezes das deles, ou das mesmas coisas que as suscitaram.↩︎
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