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Crítica
19 de Março de 2002   Ética

Contra a teoria ética dos mandamentos divinos

Simon Blackburn
Tradução de Pedro Galvão e Desidério Murcho

O desafio clássico à ideia de que a ética pode ter um fundamento religioso é fornecido por Platão (c. 429-347 a.C.), no diálogo conhecido como Êutífron. Neste diálogo, Sócrates, que está prestes a ser julgado por impiedade, encontra um tal Êutífron, que se apresenta como alguém que sabe exactamente o que é a piedade ou a justiça. De facto, Êutífron está tão seguro de si mesmo que está prestes a instaurar uma acção contra o seu próprio pai por ter causado uma morte.

ÊUT. Sim, eu diria que o que os deuses amam é pio e sagrado, e que o oposto, que eles odeiam, é ímpio.

SÓC. Devemos investigar a verdade disso, Êutífron, ou aceitar simplesmente a mera afirmação com base na nossa própria autoridade, ou na autoridade alheia? Que dizes?

ÊUT. Devemos investigar; e penso que a afirmação irá resistir ao teste da investigação.

SÓC. Assim o veremos, meu bom amigo, já de seguida. O primeiro aspecto que eu gostaria de começar por compreender é se o pio ou sagrado é amado pelos deuses por ser sagrado, ou se é sagrado por ser amado pelos deuses.

Uma vez colocada esta questão Sócrates não tem dificuldade em chegar a uma das suas alternativas:

SÓC. E que dizes da piedade, Êutífron? Não será a piedade, de acordo com a tua definição, amada por todos os deuses?

ÊUT. Sim.

SÓC. Por ser pio ou sagrado, ou por outra razão?

ÊUT. Não, a razão é essa.

SÓC. É amado por ser sagrado, e não é sagrado por ser amado?

ÊUT. Sim.

SÓC. E o que é apreciado pelos deuses é por eles amado e está num estado que lhe permite ser por eles amado?

ÊUT. Sem dúvida.

SÓC. Então o que é apreciado pelos deuses, Êutífron, não é sagrado, nem o que é sagrado é amado pelos deuses, como afirmas; mas estas são duas coisas diferentes.

ÊUT. Que queres dizer, Sócrates?

SÓC. Quero dizer que reconhecemos que o sagrado é amado por Deus por ser sagrado, e não que é sagrado por ser amado.

A ideia é que Deus, ou os deuses, não devem ser concebidos como algo arbitrário. Os deuses têm de ser encarados como seres que seleccionam as coisas certas para permitir e proibir. Têm de captar o que é sagrado ou justo, exactamente como nós o fazemos. Eles não podem fazer isto simplesmente por serem poderosos, ou por terem criado tudo, ou por terem o dom de prescrever castigos horríveis e recompensas deliciosas. Isso não faz deles bons. Além disso, obedecer aos seus mandamentos só por causa do seu poder seria servil e interesseiro. Suponha-se, por exemplo, que eu tenho em mente fazer algo mau, como trair a confiança de alguém. Não basta que eu pense “Bom, vejamos, os ganhos são estes, mas agora tenho de ter em conta a hipótese de Deus me castigar fortemente se eu o fizer. Por outro lado, Deus é indulgente e é bastante provável que eu o consiga trapacear através da confissão, ou arrependendo-me mais tarde, à hora da morte…” Estes não são os pensamentos de quem tem um bom carácter. Quem tem um bom carácter é de esperar que pense “Seria uma traição, por isso não o vou fazer”. Fim da história. Entrar numa análise de custo-benefício religioso é, numa expressão que o filósofo moral contemporâneo Bernard Williams tornou famosa, ter “um pensamento a mais”.

Assim, o desvio pelos caminhos de um deus externo parece pior do que irrelevante. Parece distorcer a própria ideia de um padrão de conduta. Como o filósofo moral Immanuel Kant (1724–1804) afirma, encoraja-nos a agir de acordo com uma regra, mas apenas por medo do castigo ou por causa de outro incentivo qualquer; mas o que realmente queremos é que as pessoas escolham agir por respeito com a regra. Isto é o que a verdadeira virtude exige.

Simon Blackburn
Being Good (Oxford University Press, Oxford, 2001), pp. 14–17.
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ISSN 1749-8457