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21 de Abril de 2007   Filosofia política

Nietzsche apolítico?

José Pedro Teixeira Fernandes
Nietzsche Contra Democracy
de Fredrick Appel
Cornell University Press, 1999, 174 pp.

Já tem alguns anos a sua edição nos Estados Unidos, mas vale a pena ler ou reler este livro. Fredrick Appel assumiu a difícil tarefa de mostrar como a imagem que hoje tende a prevalecer sobre o pensamento de Friedrich Nietzsche, particularmente nas Humanidades e Ciências Sociais — onde este aparece, quase angelicamente, como um pensador amoral, com meras preocupações estéticas e literárias, um espírito sublime afastado da “política mesquinha” — é uma imagem superficial e distorcida.

Num texto de relativamente curta dimensão, baseado, parcialmente, em artigos que foram anteriormente publicados em diversas revistas académicas da área da filosofia e da ciência política, o autor analisa, ao longo de seis capítulos, de modo incisivo, e, sobretudo, fundamentado, as ideias e implicações políticas do pensamento do filósofo germânico novecentista. Na introdução, o autor começa por se referir às razões que estão por detrás da actual difusão de uma vulgata sobre Nietzsche, como pensador da “emancipação” e do “progressismo”:

Teóricos políticos e filósofos morais que se consideram democratas radicais, cresceram acostumados a verem Nietzsche como um recurso útil para os seus esforços de promoverem os interesses daqueles que são desfavorecidos e marginalizados. Como os esforços para apresentarem Nietzsche ao serviço da democracia radical se multiplicaram, esta associação popular com emancipação e “progressismo” enraizou-se ainda mais e o seu patente projecto político não igualitário foi ignorado ou sumariamente negado. (p. 2)

Em seguida, Fredrick Appel empreende aquilo a que, ironicamente, podemos chamar uma “genealogia” ou “desconstrução” de uma imaginação colectiva particularmente benigna sobre Nietzsche, feita na academia anglo-americana, sobretudo sob influência da French theory de Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Paul de Man, etc. (cujos efeitos, naturalmente, se detectam facilmente Portugal, dada a nossa apetência acrítica por produtos importados). Nesta “genealogia” quem encontramos em primeiro lugar? Walter Kaufmann — um alemão de ascendência judaica, nascido em Friburgo, educado na infância como Luterano (como Nietzsche), que emigrou para os Estados Unidos na altura segunda guerra mundial — e que, aparentemente, se viu a si próprio como uma espécie de alter ego de Nietzsche, revendo-se na trajectória e crise espiritual que afectou o filósofo germânico ao longo da sua vida.

Este primeiro “evangelizador” — como pode ser adjectivado num sarcasmo bem nietzschiano — teve um papel central na tradução, comentários e publicação do trabalho do filósofo sobretudo através do livro Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist (1950). A importância da sua acção é fácil de compreender. Como fora do espaço cultural germânico não são muitos os que sabem o suficiente de alemão para lerem as suas obras na língua original — isto, supondo, já um pouco benignamente, que lêem as obras de Nietzsche e não o conhecem apenas por interpostos autores —, percebe-se como Kaufmann pôde ter um papel importante na formação da actual vulgata. Nessa época, a sua principal preocupação foi

contrariar a imagem prevalecente no pós-guerra de Nietzsche como um protonazi, imagem encorajada por Elisabeth Föster-Nietzsche — irmã do filósofo — e pela sua edição selectiva dos seus trabalhos não publicados, bem como pela adesão dos Nazis (p. 8)

às ideias bem nietzschianas de uma elite de übermensch (“superhumanos”).

Mas as leituras selectivamente filtradas do pensamento de Nietzsche não ficaram por aqui. Uma segunda vaga de “hermeneutas-evangelizadores” surgiu entre os anos 60 e 80 do século passado, primeiro em França (sobretudo Michel Foucault e Jacques Derrida) e depois, numa versão já anglicizada nos Estados Unidos (por exemplo, Richard Rorty e Alexandre Nehamas). Esta nova vaga “tendeu a seguir a perspectiva ligeira de Foucault na interpretação de textos” (p. 8). Como este dizia numa conhecida entrevista ao Magazine Littéraire, “o único sinal de reconhecimento que se pode ter para com Nietzsche é, precisamente, utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo ranger e gritar. Que os comentadores digam se é ou não fiel, isso não tem o menor interesse”. Fredrick Appel faz notar que esta argumentação de Foucault em prol de um “anything goes” (vale tudo) interpretativo, forneceu o argumento de autoridade e deu “cobertura conveniente a todos aqueles que, apressadamente, pretendem proclamar a irrelevância do iliberalismo e anti-igualitarismo de Nietzsche”.

Mas é sobretudo nos dois últimos capítulos do livro de Fredrick Appel que os contornos eminentemente políticos do pensamento de Nietzsche se tornam particularmente visíveis. Como Appel sublinha, a estrutura da ordem política delineada por Nietzsche baseia-se “em dois círculos concêntricos”, com um primeiro círculo restrito de seres humanos elevados (qualificados como uma elite de übermensch ou “superhumanos”), tendo, à sua volta, um círculo muito maior representando a maioria da população, “ambos subordinados ao governo da minoria e instrumentos para o seu florescimento” (p. 136). Curiosa e bem demonstradora dos ideais “radicalmente democráticos” nietzschianos, é a forma de encarar a lei — um instrumento útil para disciplinar a maioria, ao serviço dos übermensch. Como explica Fredrick Appel, Nietzsche é extremamente crítico das democracias liberais parlamentares e do estado de direito (p. 139), “pela sua insistência em que os sistemas jurídicos se deviam aplicar e constranger todos — mesmo os mais fortes e os mais vitais”. A aplicação universal de tal igualitarismo é “hostil à vida, um agente de dissolução e destruição do homem”, pois este funciona para “vantagem dos morbidamente fracos”, para vantagem daqueles que “conspiram para salvaguarda de direitos de forma a beneficiarem da segurança, e conforto de uma vida mais fácil”. Na óptica nietzschiana,

as noções complementares de “direitos iguais” e “governo da lei” foram utilizadas historicamente pelos inferiores para controlar os mais fortes: fala-se de “direitos iguais” — como ainda não se ganhou superioridade, quer-se prevenir os competidores de aumentarem o poder.

Todavia, nada disto parece perturbar a recepção pós-moderna de Nietzsche nas humanidades e ciências sociais, e o seu uso para fins de “emancipação” e “progressismo” social:

Apesar destas dificuldades, muitos filósofos contemporâneos e teorizadores, têm sido rápidos a reclamar o agon nietzschiano para propósitos políticos igualitários. Mesmo com a repetida insistência de Nietzsche que uma hierarquia natural de tipos humanos é uma das inalteráveis “verdades duras” da existência, asseguram-nos que o seu radicalismo aristocrático é tudo menos um módulo facilmente destacável, num projecto filosófico amplo e subversivo que pode ser direccionado para o serviço de fins democráticos radicais. (p. 161)

Como Fredrick Appel nota, a terminar, o seu

desmascarar da desonestidade, hipocrisia e ressentimento das classes governantes e a sua primazia do político, da luta de classes e da contestação, são vistos como tropos úteis para aqueles que estão interessados em celebrar o facto do pluralismo, da diversidade e da diferença, e que estão interessados — mais especificamente — em promover os interesses dos marginalizados e desfavorecidos (idem).

De facto, nada parece mostrar melhor o estranho (não igualitarista e iliberal) substrato filosófico das políticas pós-modernas da identidade, que pretendem “celebrar a diversidade” dando “voz aos que não têm voz”, do que esta reflexão de Nietzsche sobre o bom, o mau, os fracos e os falhados:

O que é bom? — Tudo aquilo que aumenta no homem o sentimento de poder, a vontade de poder, o próprio poder. O que é mau? — Tudo o que nasce da fraqueza. O que é a felicidade? — O sentimento de que o poder cresce — de que a resistência é vencida. Não o contentamento, mas mais poder. Não a paz, finalmente, mas a guerra; não a virtude mas a excelência (virtude, no estilo do renascimento, virtù, virtude isenta de moralismos). Os fracos e os falhados devem perecer: primeiro princípio da nossa caridade. E há mesmo que os ajudar a desaparecer! (O Anticristo, 2)

Não é esse o sentido do pensamento de Nietzsche? Por que não argumentar, como Foucault, que o único sinal de reconhecimento que podemos ter é “deformá-lo, fazê-lo ranger e gritar”? Se a interpretação “é ou não fiel, isso não tem o menor interesse” (desde que sirva os nossos objectivos ideológicos, claro). Por isso, o que importa que no meio desta “contestação perpétua” os princípios centrais da democracia liberal e igualitária, como o sufrágio universal, o respeito igual e os direitos humanos — os verdadeiros alicerces da protecção dos mais fracos e oprimidos — sejam também eles varridos, abrindo o caminho a novas formas de totalitarismo?

José Pedro Teixeira Fernandes

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ISSN 1749-8457