A questão da objectividade da ética é tão velha quanto a própria filosofia. Na antiguidade, os cépticos sentiram-se atraídos pela ideia de que a moralidade não é mais do que um conjunto de convenções sociais. Heródoto, depois de passar em revista as crenças morais de várias culturas, declarou que “O costume predomina sobre todas as coisas”, e que alguém que pense o contrário é simplesmente ingénuo: “Qualquer pessoa sem excepção acredita que os seus costumes de origem, e a religião em que foi educado, é a melhor”.(1) Na República de Platão Sócrates encontra Trasímaco, que deu à ideia um aspecto sinistro. O bem e o mal, disse Trasímaco, são invenções dos mais fortes que os ajudam a dominar os mais fracos:
Certamente que cada governo estabelece as leis de acordo com a sua conveniência: a democracia, leis democráticas; a monarquia, monárquicas; e os outros, da mesma maneira. Uma vez promulgadas essas leis, fazem saber que é justo para os governos aquilo que lhes convém, e para castigarem os transgressores, a título de que violaram a lei e cometeram uma injustiça. Aqui tens, meu excelente amigo, aquilo que eu quero dizer, ao afirmar que há um só modelo de justiça em todos os estados — o que convém aos poderes constituídos.(2)
Os partidários desta posição pressupõem que não há factos morais — nada há na natureza das coisas que torne uma acção específica um bem e outra um mal. Pirro deixou esta posição clara. De acordo com Diógenes, Pirro ensinou que “Nada era honesto ou desonesto, justo ou injusto. Logo, universalmente, ele defendeu que não existe mais do que costume e convenção a governar a acção humana; nada mais há do que isso”(3).
Os cépticos modernos, concordando embora que não há factos morais, sentiram-se atraídos pela ideia que a moral tem origem nos desejos e emoções do indivíduo. Thomas Hobbes reparou que seja qual for o objecto de desejo ou apetite do homem, será a isso que chamará bom; e o objecto de ódio e aversão, mau, e desagradável, vil e de pouca consideração. Estas palavras, bom, mau e desagradável dependem da pessoa que as utiliza, nada mais do que isso; assim não se pode criar qualquer lei a partir da natureza dos próprios objectos [...] (4)
Mas é David Hume, mais do que qualquer outra figura do pensamento moderno, que está associado a esta ideia: “quando consideramos uma acção ou carácter mau ou vicioso”, escreveu Hume, “isso significa apenas que segundo a nossa natureza temos a impressão ou um sentimento de culpa quando reflectimos sobre o assunto”. (5)
Estas ideias parecem negar a nossa compreensão comum da ética. Quando julgamos algo como um bem ou um mal não pensamos que estamos apenas a dar livre expressão às nossas emoções — se fosse essa a nossa vontade, bastava apenas dizer se gostamos disso ou não. Nem nos vemos simplesmente a aplicar os padrões da nossa sociedade — apesar de tudo, sabemos que os padrões da nossa sociedade podem estar errados. Em vez disso, queremos afirmar algo que seja objectivamente verdadeiro, independente dos nossos sentimentos ou dos padrões da nossa sociedade. Uma forma de expressarmos o nosso entendimento comum é afirmar que há factos morais. Pensamos, por exemplo, que a escravatura é uma injustiça e que quem pensa o contrário tem de estar enganado.
Mas não é fácil defender este ponto de vista do senso comum. Podemos começar apenas por três problemas, todos identificados por Hume. Primeiro, o problema ontológico. Será que realmente existem “factos morais”? Se realizarmos um inventário do mundo, encontramos plantas e animais, rochas, átomos e estrelas. Descobrimos que a Antárctica é maior do que a Inglaterra, que os dinossauros viveram há 65 milhões de anos e que fumar causa o cancro. Mas será que encontramos o bem e o mal? Suponhamos que analisamos um acto que é indubitavelmente um mal — um assassínio, por exemplo.
Vemos um homem com uma faca; vemo-lo lutar; vemos a vítima cair; vemos sangue e, depois, um corpo sem vida. Mas onde, de entre estes factos, está o facto moral? Este foi o argumento de Hume: “Pense-se em qualquer acção malévola: um assassínio premeditado, por exemplo. Examinemo-lo sob todos os prismas e veja-se se conseguimos a questão de facto ou a existência real para aquilo a que chamamos vício. Seja qual for o modo como o fizermos, apenas acharemos certas paixões, motivos, volições e pensamentos. Não existe qualquer outra questão de facto neste caso” (6).
Relacionado com isto está o problema epistemológico: como reconhecemos os factos morais? Em ciência distingue-se a existência de coisas pela observação e experimentação, ou talvez através da inferência a partir de observações e experiências. Em matemática há demonstrações. Na vida comum confiamos na percepção comum. Mas os factos morais não são acessíveis através de qualquer um destes métodos familiares: para defender a existência de factos morais temos de ser capazes de dizer como os discernimos.
Em terceiro lugar, há o problema da motivação. As crenças morais parecem ser necessariamente motivadoras. Isto é, quando uma pessoa tem uma crença moral — a crença de que certo tipo de comportamento é correcto ou incorrecto, ou de que algo deve ou não ser feito — isto implica necessariamente que a pessoa tenha, no mínimo, alguma motivação para agir em conformidade. Suponhamos, por exemplo, que eu digo que jogar é errado. Esperar-se-ia que eu evitasse jogar. Contudo, e se o leitor descobrir que eu aposto muito no poker todas as sextas-feiras à noite? O meu comportamento contradiz a minha afirmação. O que se pode concluir daqui?
Há várias possibilidades. 1) Talvez tenha mentido; eu não acredito realmente que jogar é errado. Eu posso ter estado a gozar ou a falar sarcasticamente. 2) Outra possibilidade é que eu estava só a relatar o que as outras pessoas dizem — eu só queria dizer qualquer coisa como “a maior parte das pessoas pensam que jogar é errado”. Eu não tive intenção de expressar qualquer ponto de vista pessoal. 3) Ou pode ser que eu seja moralmente fraco. Apesar de achar que é errado, e resolver não jogar, quando a sexta-feira chega sou dominado pela tentação. De seguida, recrimino-me por ter sucumbido à tentação.
Ou talvez se possa tentar qualquer outra explicação. Mas o que conta é que a minha conduta requer algumas explicações. Não posso jogar contente, como se nada tivesse acontecido, e reflectir sobre a minha conduta sem qualquer sentido de auto-recriminação, se for verdade que acredito que jogar é errado. Claro que não é necessário que eu faça sempre aquilo que penso ser correcto, mas é necessário que, pelo menos, tenha alguma motivação para o fazer. Esta motivação não precisa ser tão poderosa que não possa ser dominada por outros desejos. Mas deve fornecer alguma inclinação, por muito leve que seja, de modo a permitir que os outros desejos a suplantem.
Podemos resumir esta ideia dizendo que há uma conexão interna entre a crença moral e a motivação. Por que razão é isto importante? Por um lado, coloca um problema à ideia de que há factos morais. Não há conexão interna entre crenças factuais comuns e a motivação.
Se eu disser que a Antárctica é maior que a Inglaterra, isto não cria nenhuma expectativa em relação ao modo como me irei comportar. É só um facto face ao qual posso ser completamente indiferente. Claro, se a minha afirmação for considerada a par de outra informação sobre mim, tal como eu querer desesperadamente visitar um lugar maior que a Inglaterra, poder-se-á concluir que tenho alguma motivação para visitar a Antárctica. Mas é esta informação adicional sobre os meus desejos que fornece o poder à motivação. Na crença moral o poder da motivação parece intrínseco à própria crença.
A conclusão é que as crenças morais parecem diferentes das crenças factuais comuns, de um modo que é desencorajante para com a ideia dos factos morais e apropriada à teoria de que os factos morais são fundamentalmente questões de “emoções ou sentimentos”. Eis Hume outra vez:
Uma vez que a moral tem influência nas acções e emoções, segue-se que não podem ser derivadas da razão; e porque a razão sozinha, como já provámos, não pode ter nunca essa influência. A moral incita as paixões e produz ou impede acções. A própria razão é completamente impotente neste caso. Assim, as regras da moral não são conclusões da nossa razão.(7)
Os cépticos defenderam que a moralidade é uma área em que reina a discórdia. Na ciência, dizem, há um acordo comum em relação aos assuntos fundamentais; e quando há disputas, há métodos estabelecidos para as resolver. Mas em ética há um constante desacordo mesmo acerca das questões mais simples, e essas discordâncias são impossíveis de resolver racionalmente. Deste modo, o argumento leva-nos à conclusão de que a ética não é como a ciência. A ética é só uma questão de opinião e mais nada.
Apesar de este argumento ser popular, ambas as premissas parecem falsas. Em primeiro lugar, o padrão de acordo e desacordo em ética é semelhante em ciência. Em ética, tal como em ciência, estamos de acordo sobre uma grande maioria de coisas básicas: que assassinar, roubar e violar são coisas erradas; que as crianças devem ser protegidas; que as promessas devem ser cumpridas; que a honestidade, coragem e a generosidade são virtudes; e muitas outras coisas. Se alguém afirmar que, pelo contrário, há muita gente que não aceita tudo isto, nós podemos relembrá-los do igual número de pessoas que não aceitam a ciência. E em ambas, ética e ciência, há um pequeno número de questões controversas em que o consenso ainda não foi alcançado. Se não há um acordo generalizado sobre a moralidade do aborto, também não há consenso geral sobre alguns temas da mecânica quântica. A ilusão de que as discordâncias na ética estão mais difundidas que na ciência deve-se talvez à nossa tendência para citar alguns tipos de exemplos: quando pensamos em ética temos a tendência em pensar automaticamente nos temas mais difíceis por resolver; por outro lado, quando pensamos em ciência, pensamos em temas sobre os quais há maior consenso.
Além disso, não é verdadeiro que não há meios racionais para resolver as disputas na ética. Esses métodos são fáceis de encontrar. Não são idênticos aos métodos “científicos”, mas não são piores por isso. As disputas em ética são resolvidas apelando a razões e princípios. Se o leitor disser que o João é um homem mau, e eu negar, o leitor pode provar que tem razão mostrando que ele é um mentiroso crónico e um aldrabão, que ele é desnecessariamente cruel com as pessoas e por aí fora. Mais uma vez, a ilusão de que não há “provas” em ética deve-se talvez à nossa falta de atenção aos factos do raciocínio moral tal como este ocorre na vida real.
A existência de discordância em ética não fornece qualquer apoio especial às teorias subjectivistas da ética. Pelo contrário, o facto de existir tal discordância tem sido usado como argumento contra algumas formas de subjectivismo ético. “As palavras como “bom”, “demoníaco” e “desprezível””, disse Hobbes, “são sempre utilizadas em relação à pessoa que as usa”. Suponhamos que interpretamos isto para dizer que, cada vez que alguém disser que algo é um bem, isto nada mais quer dizer a não ser que ele ou ela têm uma atitude positiva com respeito a isto (e, igualmente, afirmar que algo é um mal significa que o orador tem uma atitude negativa). Podemos chamar a isto subjectivismo simples. Esta é uma maneira natural de entender o ponto de vista subjectivista. Mas, como demonstrou G. E. Moore, se é isto que o subjectivismo diz, então é impossível ter razão porque nos deixa incapazes de explicar a discordância na ética.
Suponhamos que eu digo que algo é bom e o leitor diz que é mau. Se o subjectivismo simples estivesse correcto, então eu estaria a descrever os meus sentimentos e leitor os seus; assim, não haveria discordância entre nós. (Eu concordaria que o leitor tem uma atitude negativa e o leitor, da mesma maneira, reconhecerá a minha atitude positiva). Mas isto é absurdo; claro que discordamos. Por esta razão, e outras semelhantes, Moore concluiu que o subjectivismo ético não é defensável e que devemos procurar noutro lado uma teoria adequada para a ética.
Mas estas críticas limitaram-se a conduzir mais rapidamente a uma versão melhorada do subjectivismo. O emotivismo, que se tornou a mais influente teoria em ética em meados do século XX, foi desenvolvido pelos positivistas lógicos — sendo os mais notáveis Moritz Schlick e A. J. Ayer — e o filósofo americano Charles L. Stevenson. Era uma teoria mais aprofundada e sofisticada que o simples subjectivismo porque integrava um ponto de vista mais sofisticado sobre a linguagem da moral.
O emotivismo começou com a observação de que a linguagem é usada de diversas maneiras. Um dos seus principais usos é em declarações factuais ou, no mínimo, naquilo que entendemos ser factos. Deste modo, podemos dizer que Marte é o quarto planeta solar e que os pinguins não podem voar. Em cada caso, estamos a dizer o que é verdadeiro ou falso, e o objectivo de dizer tal coisa é, normalmente, para transmitir informação ao ouvinte.
A linguagem pode, no entanto, ser usada com outros propósitos. Suponhamos que digo a alguém que está a pensar em suicídio: “Não, não o faças”. Esta elocução não é verdadeira nem falsa. Não é uma afirmação de qualquer tipo; é um pedido, ou uma solicitação, que é uma coisa completamente diferente. O propósito não é transmitir informação. Pelo contrário, o objectivo é influenciar o comportamento. Uma vez mais, considere-se elocuções como “Hurra!” e “Bolas!”, as quais não são nem afirmações factuais nem pedidos. O seu propósito é expressar (e não relatar) atitudes. A diferença entre relatar uma atitude e expressar uma atitude é de suprema importância. Se eu digo “Gosto da Pequena Dorrit”, estou a relatar o facto de ter uma atitude positiva face à história de Dickens. A minha afirmação é uma declaração factual, que pode ser verdadeira ou falsa. Por outro lado, se eu gritar “Viva Dickens!”, não estou a expressar qualquer facto. Estou a expressar uma atitude, mas não a relatar que a tenho.
De acordo com o emotivismo, a linguagem da moral não é usada para afirmar factos, nem mesmo factos sobre a atitude do orador. É usada, primeiro, como um meio para influenciar o comportamento das pessoas: se alguém diz “Não devias fazer isso”, está a tentar impedir-nos de o fazer. Logo, a elocução é mais um pedido do que uma afirmação factual: é como se tivesse dito “Não o faças!”. E, em segundo lugar, a linguagem moral é utilizada para expressar (mas não relatar) atitudes. Dizer “O racismo é errado” não é como dizer “Eu desaprovo o racismo”, mas é como dizer “Racismo — bah!”.
Ao interpretar juízos morais numa nova forma, o emotivismo criou um lugar para a discordância em ética e tornou possível uma compreensão mais clara disso mesmo. Stevenson enfatizou que há mais de uma maneira em que as pessoas podem discordar. Se eu pensar que Lee Harvey Oswald agiu sozinho no assassinato de John Kennedy, e o leitor pensar que houve uma conspiração, é uma discordância factual — eu penso que algo é verdadeiro e o leitor que é falso. Mas, suponhamos que, por outro lado, eu sou a favor de legislação de controlo da posse de armas, enquanto o leitor é contra. Aqui discordamos, mas num sentido diferente. Não são as nossas crenças que estão em conflito, mas os nossos desejos. (O leitor e eu podemos concordar sobre todos os factos relacionados com o controlo de posse de armas e, ainda assim, querermos que aconteçam coisas diferentes.) No primeiro caso de discórdia acreditamos em coisas diferentes, em que ambas não podem ser verdadeiras. No segundo, queremos coisas diferentes, e ambas podem não acontecer. Stevenson chama a isto discordância de atitude em contraste com a discordância sobre atitudes. As discordâncias morais são discordâncias de atitude.
Em meados do século XX muitos filósofos pensaram que a verdade sobre a ética teria sido, finalmente, encontrada. O emotivismo, pensaram, tinha resolvido todos os problemas. O problema epistemológico era fácil: não havia necessidade de uma explicação sobre o modo como reconhecemos verdades morais porque não há verdades morais para serem conhecidas. O emotivismo também tinha uma explicação simples para a relação interna entre crenças morais e motivação: ter uma crença moral é ter um certo tipo de atitude e atitudes são disposições para agir.
Obviamente, os emotivistas negaram a existência de factos morais e, assim, o problema ontológico também foi posto de lado. Mas, ao mesmo tempo, os emotivistas foram capazes de oferecer uma explicação da razão pela qual a crença em factos morais parece tão natural. Os factos são cópias das afirmações verdadeiras: o facto de que Buster Keaton fez filmes é o que faz a afirmação “Buster Keaton fez filmes” ser verdadeira. Pensamos que há factos morais porque erradamente pressupomos que as afirmações morais são tipos de elocuções que podem ser verdadeiras. Se ao dizer que Hitler é fraco estamos a dizer algo que é verdade, tem de haver um facto correspondente, Hitler fraco, que torne a afirmação verdadeira. No entanto, mal compreendemos que as “afirmações” morais não são realmente afirmações nem sequer, de facto, tipos de elocuções que possam ser verdadeiras, a tentação para pensar que existem factos morais desaparece. Assim, a crença em factos morais pode ser agora entendida não apenas como a herança de perspectivas científicas e religiosas abandonadas mas também como um sintoma de um pressuposto errado sobre a linguagem moral.
Os juízos morais têm de se basear em boas razões. Se eu disser que uma dada acção é incorrecta, o leitor tem o direito de perguntar por que razão é incorrecta; e se eu não tiver uma boa resposta, o leitor pode considerar que o meu juízo não tem fundamento. Isto é o que separa os juízos morais de meras declarações de preferência. Se eu digo que gosto de queijo, não preciso de uma razão: pode ser apenas um facto sobre mim que eu gosto de queijo, e é tudo o que há a dizer sobre isso. Mas seu eu digo que o leitor deve comer queijo, tenho de ter alguma razão que sustente a minha afirmação. Uma teoria adequada sobre a natureza da ética tem, assim, de fornecer uma explicação plausível de forma que as razões apoiem os juízos morais. A principal debilidade do emotivismo era que não podia fazer isso.
O que poderiam os emotivistas dizer sobre a natureza do raciocínio moral? Recorde-se que, do ponto de vista deles, se eu disser que uma dada acção é incorrecta não estou a tentar alterar as crenças das outras pessoas; estou a tentar influenciar as suas atitudes. Assim, se o leitor me desafiar a explicar por que razão essa acção é incorrecta, vou querer tecer considerações que irão influenciar as suas atitudes na direcção desejada. A actividade de fornecer razões acaba, assim, por ser um exercício de manipulação psicológica.
Isto pode parecer-nos uma perspectiva realista, ainda que algo cínica, sobre o raciocínio moral. Qual mal há nisso? O problema é que se este ponto de vista for correcto, então qualquer facto que influencie as atitudes pode contar como a razão para a atitude apresentada. Se o pensamento de que Smith é um professor de Oxford leva a que alguém o desacredite, então “Smith é um professor de Oxford” tornar-se-ia uma razão de apoio ao juízo de que ele não é de confiança. Pode esta possibilidade estar correcta? Stevenson adoptou esta consequência, do seu ponto de vista, sem vacilar: “Qualquer afirmação”, disse, “sobre qualquer facto que o orador considere provável de alterar atitudes pode ser incluído como razão a favor ou contra um juízo ético”. (8) Mas, no fim de contas, esta perspectiva das razões acabaram por ser o maior problema do emotivismo.
Há alguma maneira de reformular a ideia básica do emotivismo de modo a fornecer uma melhor explicação do raciocínio moral? Em 1952 R.M. Hare fez isto no seu livro The Language of Morals. (9) Os emotivistas tinham razão, argumentou Hare, em pensar que a linguagem moral é prescritiva em vez de descritiva. Mas, de acordo com Hare, os emotivistas erraram ao omitirem um importante aspecto lógico de palavras como “certo” e “dever”. Quando utilizamos estas palavras para fazer juízos morais comprometemo-nos implicitamente com princípios universais. Se, por exemplo, dizemos numa ocasião particular que uma dada pessoa não devia mentir, estamos a comprometer-nos com o princípio geral que mentir é errado. Isto, por sua vez, leva-nos a juízos similares noutras ocasiões. É uma questão de lógica: se pretendemos ser consistentes, não podemos apelar a um princípio em determinado momento que não possa ser aceite noutros. Hare chamou a esta característica do juízo moral “universalizabilidade” e chamou “Prescritivismo Universal” à sua perspectiva.
A exigência de universalizabilidade impôs as necessárias restrições sobre o que podia contar como uma razão moral. A universalizabilidade significa, por exemplo, que temos de aplicar a nós os mesmos princípios que usamos para julgar os outros. Como um autor disse, não posso dizer que uma dada pessoa está errada quando bebe a minha cerveja quando eu tenho em mira beber a dela. (10) Ou considere-se a história sobre o Rei David relatada em II Samuel:
David apaixonou-se por Betsabé, a mulher de Urias, um soldado do seu exército. Após uma visita ao palácio, Betsabé ficou grávida de David e, para encobrir o que tinha feito, David fez Urias ser morto em batalha. Depois, Betsabé tornou-se mulher de David. Mas, o profeta Natan sabia o que tinha acontecido e confrontou David no dia em que o Rei estava a administrar justiça. Natan apresentou a David o seguinte caso para que ele o julgasse:
Numa cidade havia dois homens, um rico e um pobre. O homem rico tinha muitos rebanhos e manadas; mas o homem pobre nada tinha a não ser uma pequena ovelha que tinha comprado. E ele criou-a, e ela foi criada com ele e com os filhos; ela costumava comer do seu prato, beber do seu copo e descansar no seu peito, e era como uma filha para ele. E então chega um viajante ao homem rico, e ele não estava na disposição de abater um animal do seu rebanho ou manada para servir ao caminhante que até ele tinha chegado, mas tirou a do homem pobre e serviu-a ao viajante.(11)
Quando David ouviu isto, ficou indignado e declarou que “O homem que fez isto merece morrer”; e então Natan disse-lhe: “Tu és esse homem”. Então, David reconheceu que era, de facto, culpado da mesma ofensa que acabara de condenar.
Natan levou David a raciocinar de uma determinada maneira. Primeiro, trouxe à superfície os princípios pelos quais David estava comprometido ao apresentar-lhe este caso. Depois, levou David a perceber que estes princípios, quando aplicados ao seu próprio comportamento, levariam à sua condenação. Assim, David foi levado a ajuizar a sua conduta como errada, não por existirem “factos morais” que foi forçado a admitir, mas porque a consistência assim o exigia. Hare sustenta que todo o raciocínio moral é, no fim de contas, assim.
Podemos distinguir dois sentidos em que a ética poderia ser “objectiva”:
Na teoria de Hare a ética é objectiva neste sentido. A moral não é apenas uma “questão de opinião”. Pelo contrário, um acto é correcto na medida em que é justificável por métodos sólidos de raciocínio.
Os partidários do contrato social também concebem a ética como objectiva neste sentido. Do seu ponto de vista as regras morais são regras que as pessoas racionais acordam em estabelecer para seu benefício mútuo. Cada um de nós, por exemplo, estará melhor numa sociedade onde o assassínio seja proibido e as promessas se cumpram. Assim, cada um de nós tem uma boa razão para aceitar regras, desde que as outras pessoas também as aceitem. (A nossa obediência às regras é o preço justo que pagamos para assegurar a obediência dos outros.) Por esta razão, mostra-se que a proibição do assassínio e da quebra de promessas, assim como outras regras, são racionalmente defensáveis.
Estas teorias tornam a moral realmente objectiva, pelo menos, neste primeiro sentido. Mas o problema que mencionámos no início mantém-se: estas perspectivas continuam a parecer radicalmente incompatíveis com o senso comum sobre o que estamos a fazer quando emitimos juízos morais. Isto é o problema da fenomenologia moral: a nossa teoria do que a moral é deve ser compatível com a experiência de fazer juízos ou raciocínios morais. Quando ajuizada por estes padrões, qualquer teoria que veja a moralidade como algo essencialmente ligado a sentimentos ou convenções sociais está condenada a ser insatisfatória. O juízo moral parece ter um carácter absoluto que escapa a estas teorias. Deste modo, podemos querer uma teoria que torne a moral realmente objectiva num segundo sentido e mais forte:
O realismo moral é a perspectiva de que a ética é objectiva neste sentido. Mas no que se traduz isto exactamente? Como seria se existissem propriedades morais “reais” das coisas? Em que consistem essas propriedades? Podemos distinguir três abordagens.
1. Uma perspectiva é que as propriedades morais são propriedades especiais, separadas de outras qualidades dos objectos. Quando, depois de relatar todos os outros factos sobre um assassínio, incluindo factos sobre as reacções emocionais, normas sociais vigentes e afins, dizemos que o assassínio foi um mal, estamos a mencionar um facto novo e adicional.
Mas este é exactamente o tipo de facto moral que Hume pensou não existir e outros partilharam o seu cepticismo. J. L. Mackie argumentou que, se existissem tais propriedades, elas seriam absolutamente estranhas, diferentes de tudo o resto na natureza. Teriam que nos dizer o que fazer e, a seguir, motivar-nos para tal — e que tipo de “propriedade” podia fazer isso? Além do mais, para detectar tais propriedades precisaríamos de capacidades cognitivas diferentes de qualquer outra que nos seja familiar. Todavia, Mackie sugere que é fácil perceber por que razão as pessoas acreditam facilmente que existem tais propriedades. A nossa maneira vulgar de pensar e falar sobre a moral pressupõe que essas propriedades existem. Isto levou Mackie a propor uma “teoria do erro” em ética: o nosso pensamento e discurso vulgares sobre a ética envolvem um erro sistemático sobre a natureza da realidade.
Um tipo diferente de argumento céptico é sugerido por Gilbert Harman. Harman sublinha que os factos desempenham um papel no modo como explicamos as observações. Se alguém observa que há um cavalo de madeira no portão e nós nos perguntamos o porquê dessa observação, a nossa explicação vai, inevitavelmente, referir em algum ponto o cavalo e o portão. A explicação será algo como: o observador tem um certo tipo de aparato perceptivo (olhos, ouvidos, cérebro) que interage com o mundo externo de determinadas formas complexas. O mundo externo contém um cavalo de madeira próximo de um portão; e, assim, nesta ocasião, o resultado da interacção entre o aparato perceptivo do observador e o ambiente é a observação de que existe um cavalo de madeira no portão. A questão a referir é que a nossa melhor explicação da observação envolve o facto que está a ser observado.
Mas quando pensamos nas observações morais, as coisas são diferentes. Suponhamos que alguém vê um assassino em acção e observa que o que faz é perverso. Podemos explicar esta observação sem nos referirmos sequer ao facto da perversidade. Há um assassino, uma vítima e um acto que causa a morte; o observador vê tudo isto da forma usual e, depois, tem uma reacção negativa sobre o que vê. Para explicar a “observação” apenas precisamos de referir a psicologia do observador e, talvez, as normas sociais e formação que ajudaram a formar essa psicologia. O “facto” da conduta do assassino ser realmente perversa não precisa de entrar sequer neste quadro. Deste modo, os factos morais acabaram por se revelar apêndices metafísicos que não funcionam.
Finalmente, há uma razão mais geral para duvidar que existam factos morais deste tipo: é difícil encaixar estes “factos” no quadro do mundo apresentado pela ciência moderna. Existem, é claro, outras formas de compreender a natureza do mundo que são mais adequadas aos factos morais. Considere-se, por exemplo, o ponto de vista aristotélico. Aristóteles pensava que o mundo é um sistema racional hierárquico com valores e fins inerentes na sua própria natureza. Pensava que tudo tem uma finalidade — tal como a finalidade da faca é cortar, e a finalidade do coração é bombear sangue, a finalidade da chuva é fornecer água às plantas. E as plantas também têm uma finalidade:
temos de pensar, primeiro que as plantas existem para bem dos animais, segundo que todos os outros animais existem para bem do Homem, que os animais domésticos servem para o uso que o Homem lhes dá e também pela comida que fornecem; e quanto a animais selvagens, muitos pensam que não podem ser utilizados como alimentação mas podem ser úteis de outras maneiras; deles podemos fazer vestuário e instrumentos. Se, depois, temos como certo pensar que a natureza nada faz sem um fim em vista, sem qualquer propósito, então é porque a natureza fez, especificamente, todas as coisas para bem do Homem.(12)
É uma hábil organização hierárquica, com tudo no seu lugar e o seu propósito — e, não por coincidência, uma organização bastante favorável aos seres humanos. Ora, suponhamos que esta combinação de ideias forma o núcleo da nossa melhor teoria da natureza do mundo. Seria então natural olhar para os “factos morais” como uma parte da arquitectura geral das coisas.
Em tempos, a mundivisão aristotélica do mundo pode ter sido a melhor à nossa disposição. Mas agora foi substituída pela ciência moderna e esta fornece-nos um quadro completamente diferente. A chuva não cai para que as plantas possam crescer; se assim parece é apenas porque as plantas evoluíram, por selecção natural, para tirarem vantagem de um clima chuvoso. Nem os animais foram feitos “para bem do Homem”; nem os seres humanos têm algum lugar privilegiado na arquitectura geral das coisas. Hume foi um dos primeiros a perceber esta implicação da nova concepção do universo quando comentou que “A vida do Homem não é mais importante para o Universo do que a de uma ostra”. (13) A razão pela qual os factos morais parecem tão “estranhos” e não fazem parte da nossa melhor explicação sobre as observações morais é que agora vemos o mundo através ciência moderna. A ciência fornece a melhor compreensão geral do mundo que agora temos, e nenhuma parte da filosofia, incluindo a ética, pode ser inconsistente com ela.
2. Uma segunda possibilidade é que as propriedades morais não são especiais e peculiares, mas antes idênticas a propriedades comuns. Por exemplo, a propriedade de ser um bem pode ser idêntica à de ser agradável. Esta aproximação tem a grande virtude de tirar o mistério das propriedades morais. Nada há de estranho numa coisa ser agradável; sabemos exactamente o que é isso e como reconhecê-lo. E nada haverá nessa perspectiva incompatível com a compreensão científica.
Mas que propriedades comuns são idênticas às propriedades morais? Tudo depende de saber qual das teorias éticas substanciais é a correcta. Se o hedonismo egoísta é a melhor dessas teorias, então “bem” é o mesmo que “prazer”. Se a teoria do mandamento divino estiver correcta, “bem” é idêntico a “aprovado por Deus”. E se o utilitarismo clássico acabar por ser a melhor teoria, a propriedade relevante é “produzir a maior felicidade para o maior número de pessoas”. Claro que os filósofos não concordam sobre qual das teorias substanciais é a correcta (se é que há alguma), mas isso não é agora importante. Se a filosofia moral ainda não progrediu até ao ponto de sabermos qual das teorias é a melhor, tudo isso significa que ainda não sabemos quais das propriedades comuns são idênticas às propriedades morais.
Durante muito tempo após a publicação de Principia Ethica, de Moore, em 1903, pensou-se que esta abordagem é insustentável. Moore argumentou que qualquer perspectiva deste género comete a “falácia naturalista”. Primeiro, afirma, se concentrarmos a atenção no que queremos dizer com “bem” e, por exemplo, “prazer”, veremos claramente que não são a mesma coisa. Além disso, há um argumento — o “argumento da questão em aberto”, como veio a ser conhecido — que parece mostrar que o bem não pode ser idêntico a qualquer outra coisa que não a ele próprio. A questão “São as coisas que dão prazer um bem?” é uma questão em aberto, e dizer que o prazer é um bem é uma afirmação significativa. Mas, continua o argumento, se o bem e o prazer fossem o mesmo, isto seria como perguntar “É o prazer prazer?”. Um argumento análogo pode ser dado a respeito de qualquer outra propriedade comum com a qual o bem se identifique.
Moore cometeu um erro fundamental. O seu argumento, se fosse sólido, teria mostrado que a Estrela da Manhã não pode ser idêntica à Estrela da Tarde. Se concentrarmos a atenção no que queremos dizer com estes termos, veremos claramente que não são o mesmo — a primeira é uma estrela vista de manhã, enquanto a segunda é vista ao entardecer. E a pergunta “É a Estrela da Manhã a Estrela da Tarde?” foi uma questão em aberto cuja resposta foi desconhecida durante muitos séculos. Mas, de facto, as duas são idênticas. Hoje diríamos que Moore se enganou, pois não distinguiu a identidade necessária da identidade contingente. Dificilmente podemos deitar as culpas a Moore; a importância desta distinção não se tornou visível a não ser muito depois da sua carreira ter terminado.
Outra ideia de Moore acabou por ter um valor duradouro. Moore descobriu a sobreveniência das propriedades morais (ou, se não houver propriedades morais, dos conceitos morais). Se alguma coisa é um bem ou um mal, isso é sempre inteiramente determinado por aquilo que as suas outras propriedades são. Por exemplo, suponhamos que existem duas caixas de correio exactamente iguais — têm o mesmo tamanho, a mesma cor, feitas do mesmo material, igualmente à prova de água, e por aí fora. Agora suponhamos que seja sugerido que uma destas caixas de correio é melhor que a outra. Isto não faria sentido porque os objectos não podem diferir apenas na sua qualidade — se X é melhor que Y, tem de haver outra diferença entre eles. Uma caixa de correio é boa porque tem um certo tamanho, forma, resistência e por aí fora; assim, qualquer caixa de correio com estas mesmas qualidades tem de ser igualmente boa. Isto pode ser expresso dizendo que a qualidade sobrevém das suas outras propriedades. Neste sentido, uma propriedade como “amarelo” não é sobreveniente. Dois objectos podem apenas diferir no facto de um ser amarelo e o outro não.
Qualquer ponto de vista sobre a natureza das propriedades morais tem de ter em conta a sua sobreveniência, e a abordagem agora sob consideração consegue fazê-lo facilmente.
Se o bem é o mesmo que o prazer, ou qualquer outra propriedade comum, então é óbvio que duas coisas não podem diferir apenas quanto ao facto de serem um bem — isto é, duas coisas não podem ser exactamente iguais em todos os outros aspectos, e no entanto uma delas ser um bem e a outra não.
No entanto, isto não quer dizer que esta perspectiva não tenha dificuldades. Mesmo que evite os problemas epistemológicos e metafísicos, o problema da motivação é ainda preocupante. Se algo ser um bem é idêntico a um facto vulgar, por que razão não podemos ser indiferentes a este facto, como o somos em relação a qualquer outro? Não é óbvio como poderemos, nesta perspectiva, dar conta da conexão entre as crenças morais e a conduta.
3. Finalmente, há a perspectiva que as propriedades morais são semelhantes ao que John Locke chamou “qualidades secundárias”. A distinção entre qualidades primárias e secundárias é uma questão intrincada e disputável, mas para os nossos propósitos basta dizer, parafraseando Locke, que as qualidades secundárias são poderes que os objectos têm para produzir efeitos na consciência dos observadores. A cor é o exemplo clássico (ainda que disputável) de uma qualidade secundária. Um objecto físico, como uma caixa, tem uma forma e uma massa cuja existência é independente dos observadores. (A forma e a massa são qualidades primárias.) A forma de uma caixa e a massa seriam a mesma ainda que não existissem seres conscientes no Universo. Mas e a sua cor? A cor não é uma coisa espalhada por cima da caixa como uma camada de tinta. A superfície da caixa reflecte, de uma dada maneira, ondas de luz. Depois, esta luz atinge os olhos dos observadores e, como resultado, os observadores têm determinadas experiências visuais. Se as ondas de luz que atingem a caixa fossem diferentes, ou se o aparato visual do observador fosse diferente, a caixa pareceria ter uma cor diferente; e esta não seria uma cor mais “verdadeira” da caixa do que qualquer outra. A “vermelhidão” da caixa consiste, então, no seu poder para, sob certas condições, causar num certo tipo de observador uma determinada experiência visual.
Podemos alargar esta análise para incluir outros poderes de coisas que produzem outro tipo de experiências em nós. O que quer dizer uma coisa ser azeda? Um limão é azedo porque quando o colocamos na nossa língua sentimos um certo sabor. O que é azedo para os seres humanos pode não ser para animais com diferentes órgãos sensoriais, e se fôssemos feitos de maneira diferente, os limões poderiam não ser azedos para nós. Além de mais, o que é azedo para um ser humano pode não ser azedo para outro — apesar de termos uma noção do que é, a este respeito, “normal” para a nossa espécie. Mas, apesar de tudo, dizer que os limões são azedos não é uma observação subjectiva. É um facto perfeitamente objectivo que os limões têm um poder de produzir uma certa sensação em nós. Se eles são azedos não é só uma questão de opinião.
As propriedades morais podem ser propriedades deste tipo — podem ser poderes que nos levem a ter certos tipos de atitudes ou emoções. Ser um mal pode consistir em ter seja o que for que faz uma pessoa conscenciosa odiá-la, opor-se-lhe e desprezá-la. Quando pensamos no assassino e na sua vítima, os factos (vulgares) em questão são tais que provocam em nós sentimentos de horror; o “mal” é apenas o poder de provocar esta reacção. Analogamente, ser um bem consistiria em ser conscencioso até ao ponto de evocar o nosso apoio e aprovação.
Isto é uma forma promissora de realismo moral. Mas não é uma perspectiva fortemente realista. Como é evidente, é um compromisso entre a perspectiva objectiva e subjectiva da ética. É objectiva porque identifica o bem e o mal com algo que está realmente “lá fora” no mundo exterior mas, ao mesmo tempo, o que está lá fora é só o poder de produzir sentimentos em nós — os mesmos sentimentos que Hume descreveu quando escreveu que “Quando consideramos uma acção ou carácter mau ou vicioso isso significa apenas que segundo a tua natureza tens a impressão ou um sentimento de culpa quando reflectes sobre o assunto”. Não seria difícil interpretar Hume como um partidário das qualidades secundárias.
Esta perspectiva parece promissora porque parece satisfazer as várias condições de adequação que discutimos. Essas condições são, uma vez mais, as seguintes:
Uma teoria adequada tem de resolver o problema epistemológico: se sabemos o que é o bem e o mal, a teoria tem de explicar como adquirimos esse conhecimento. Descobrimos que um limão é azedo ao prová-lo; a prova do azedo é o sabor na nossa boca. Analogamente, descobrimos que algo é um mal ao contemplar isso e sentir, em consequência, sentimentos de desaprovação. Contudo, surgem complicações porque tais sentimentos podem ter outras origens — um sentimento pode ser produto de preconceito ou condicionamento cultural em vez de proceder do que Hume chamou “um discernimento correcto do seu objecto”. Portanto, o processo de deliberação tem de ser conduzido de tal maneira que elimine as outras fontes — temos de tentar pôr de parte o preconceito e outras influências e ter uma visão objectiva sobre o assunto em causa. Tal como Hume sabia, fazer isto pode exigir um grande consumo de energia cognitiva: “Mas, de maneira a abrir o caminho para tal sentimento e discernir adequadamente o seu objecto, descobrimos que tantas vezes é necessário fazer muitos raciocínios, traçar muitas distinções, retirar conclusões justas, formar comparações distantes, examinar relações complicadas, e estabelecer e apurar factos gerais”.(14) Um sentimento indica a presença de qualidades morais apenas na medida em que resultar deste tipo de pensamento. De outro modo, não podemos inferir que o objecto em si tem o que é necessário para provocar o sentimento.
Uma teoria adequada tem de explicar a natureza da discórdia ética. Há, é claro, uma vasta concordância ética, e a perspectiva das qualidades secundárias dá facilmente conta disto. Concordamos sobre o que é o bem e o mal da mesma maneira que concordamos sobre o que é azedo. Os limões afectam a maioria de nós da mesma maneira porque temos os mesmos órgãos dos sentidos; e o assassínio afecta-nos da mesma maneira porque somos semelhantes naquilo a que Hume chamou “a constituição da nossa natureza”. A semelhança não é difícil de entender: evoluímos por selecção natural, tal como certos tipos de criaturas, com desejos e necessidades comuns. Todos queremos e apreciamos amigos. Temos prazer com nos nossos filhos. Somos sensíveis à música. Somos curiosos. Todos temos razões para desejar uma sociedade pacífica e segura porque só no contexto de sociedades dessas os nossos desejos podem ser satisfeitos. Tais factos sustentam a enorme concordância quanto ao respeito pela vida e pela propriedade, quanto à honestidade, ao cumprimento de promessas, à amizade e muito mais.
Tudo isto é, no entanto, compatível com um certo grau de discordância. Tal como já observámos, o que é azedo para um ser humano pode não ser para outro — apesar de termos noção do que é “normal” para a nossa espécie no que a isto diz respeito. Na prática, contudo, não temos de pressupor que os desacordos morais exprimem diferenças profundas entre pessoas. Mais mundana e frequentemente, a discordância resulta do facto de a maioria das pessoas ser influenciada pela ignorância; preconceitos; auto-engano; uma recusa voluntária de enfrentar factos que contradigam aquilo em que queremos acreditar; falta de seriedade; ou apenas simples erros lógicos de raciocínio. A nossa hipótese de trabalho deve ser a de que somos suficientemente parecidos para podermos ser levados a concordar na maioria dos casos, bastando para isso que estas fontes de erro pudessem ser eliminadas.
Uma teoria adequada tem de ser consistente com o carácter sobreveniente dos conceitos valorativos. As qualidades secundárias são sobrevenientes relativamente às primárias: se um limão for azedo e houver um segundo idêntico a este, molécula a molécula, então também este tem de ser azedo. Analogamente, se X tem o poder de nos provocar uma certa resposta emocional e Y é exactamente igual a X, então Y também terá o necessário para provocar essa resposta.
E, finalmente, uma teoria adequada sobre a ética tem de ter em conta a fenomenologia da experiência moral. A força das perspectivas realistas da ética é que parecem mais fiéis à natureza da experiência moral do que as perspectivas subjectivistas. Se eu digo que algo é um mal e o leitor responde “Isso é apenas o que você sente”, eu pensarei que o leitor está a desvalorizar a minha afirmação, e não meramente a descrevê-la, porque pretendo dizer algo mais do que o facto de ter um determinado sentimento. Uma teoria da ética tem de explicar este “algo mais”. A perspectiva das qualidades secundárias tem isto em comum com outras teorias realistas: explica o “algo mais” em termos de o objecto ter realmente a propriedade de ser um mal — apesar de, quando nos diz que propriedade é essa, a resposta poder ser um pouco decepcionante.
Mas há uma diferença entre a) o que consideramos estar a fazer quando emitimos um juízo moral, e b) o carácter da experiência que temos quando “vemos” algo como um bem ou um mal. Como é exactamente a experiência moral? Quais são os fenómenos a que as teorias morais devem ser fiéis? Não há uma resposta simples. A experiência moral inclui variadíssimos itens: o sentido íntimo de que certas coisas têm de ser feitas, ou de que não podem ser feitas; e sentimentos de culpa, embaraço, admiração, ultraje e indignação. Algumas pessoas acrescentariam que sentimentos como o amor e a devoção são “morais”. Mas, pelo menos no que diz respeito à experiência da perversão em si, não vale a pena fingir que temos experiência dessas coisas do mesmo modo como temos experiência das propriedades vulgares: não as podemos ver nem tocar. Hume parece ter tido razão. Se prestarmos atenção à nossa experiência, quando confrontados, por exemplo, com um assassínio, o que encontramos, além das percepções sensoriais vulgares, são os nossos pensamentos e emoções. Não devemos esperar que uma teoria, realista ou não, sugira que há algo mais.