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1 de Janeiro de 1998   Filosofia da mente

O pensamento dos animais

Robert M. Martin
Traduzido e adaptado por Luís Filipe Bettencourt

Os cães são feitos de carne e osso como nós. Podem eles pensar? Podem atribuir significado às coisas através daquilo que “dizem”? Será que dizem alguma coisa? Poderão mentir? Serão demasiado honestos para isso? Tentar fornecer uma resposta séria a estas questões leva-nos a compreender algumas das complexidades do que significa para os seres humanos ter uma linguagem na qual mentir é possível.

Podemos começar por notar que para um cão poder mentir ele necessita de possuir alguma forma de discurso. Bem, o nosso Fiel emite uma série de sons e em diferentes ocasiões e, ainda que o discurso de Fiel não seja tão complexa quanto o de Saramago, é talvez uma forma de linguagem primitiva. Vamos supor que Fiel ladra de uma forma específica sempre que o carteiro se aproxima da porta.

Será que o ladrar de Fiel significa “Dono, o carteiro chegou!”? Será que para que tal som pudesse significar isso o Fiel teria que saber alguma coisa sobre o correio? Compreender o que é o correio requer alguma sofisticação, talvez um pouco mais além daquela que é permitida pelo cérebro de um cão. Uma associação regular entre o ladrar do cão e a chegada do carteiro parece indicar que o ladrar significa alguma coisa, num certo sentido da palavra “significar”. Mas talvez a mera associação entre um som e um determinado acontecimento exterior não seja suficiente para que esse som “signifique” esse acontecimento — pelo menos no sentido em que as palavras na nossa linguagem têm significado.

Para que o ladrar possa ter significado linguístico tem de ser mais do que uma simples resposta à chegada do carteiro. Tem de ser usado pelo Fiel como um símbolo abstracto que representa essa chegada. No caso do Fiel parece que o facto de ele ladrar é apenas um som instintivo que qualquer cão faz sempre que algo se aproxima do seu território. Há outros “signos linguísticos” que se podem ensinar ao Fiel e que não são meramente instintivos; por exemplo, poderíamos treiná-lo para ladrar três vezes como resposta a um aceno da nossa mão. Mas mesmo assim, para que fosse um signo abstracto genuíno, teria de ser usado pelo Fiel em contextos mais afastados do estímulo inicial. Quando pensamos, falamos, ou escrevemos sobre, por exemplo, aquilo que comemos ontem ao pequeno-almoço ou sobre aquilo que esperamos comer amanhã, estamos a manipular símbolos abstractos que usamos para substituir as suas distantes representações.

No século XVII John Locke afirmou: “podemos conjecturar que os animais não têm o poder de elaborar conceitos abstractos das coisas — conceitos que sejam distintos de representações sensíveis determinadas simplesmente por associação automática”; muitos filósofos modernos tendem a concordar com ele. Contudo, há indícios recentes que em certas circunstâncias os “animais” — pelo menos os mais inteligentes — podem recordar e usar de forma complexa um grande número de símbolos abstractos. Por exemplo, experiências feitas com chimpanzés, mostram que eles não só são capazes de aprender muitos símbolos da linguagem gestual como são capazes de os usar para formar frases novas que nunca tinham encontrado antes.

Apesar disso, mesmo que o Fiel tivesse um símbolo abstracto que representasse a chegada do carteiro, mais do que isso é necessário para que ele possa mentir. O que mais então? Se Fiel ladrasse daquela maneira particular quando o carteiro não estivesse por perto, então isto poderia ser um erro, mas não se poderia concluir que fosse uma mentira.

Suponhamos que imediatamente após a chegada do carteiro, nós abrimos a porta e dirigimo-nos para a caixa do correio para recolher a correspondência. Sempre que fazemos isso o Fiel gosta de escapar-se rapidamente pela porta e de correr pelo pátio. Um dia, está o Fiel junto à porta fechada, à espera de uma oportunidade para sair. Subitamente ele tem uma ideia (digamos): ele ladra como se o carteiro estivesse a chegar, ainda que ninguém esteja lá fora e não existam sinais que possam levar o Fiel a pensar que alguém poderá estar a chegar. Tomando isto como a chegada do carteiro, abrimos a porta e o Fiel escapa-se para dar o seu passeio. Será correcto dizer que ele nos enganou, isto é, que nos disse que o carteiro estava lá fora quando isso era mentira?

Vamos ver o que é que temos de atribuir ao Fiel para que tal acto possa contar como uma mentira. O cão tem que saber que ladrar daquela maneira significa que o carteiro está a chegar, e que significa isso não apenas para ele mas também para nós. Ele tem de saber que aquela forma de ladrar nos faz acreditar que o carteiro chegou e que, por causa disso, abriremos a porta. Em suma, o Fiel tem de pensar que temos uma mente, que temos crenças e que algumas dessas crenças são erradas. Ele teria de ser capaz de nos querer induzir uma crença errada. Seria necessário (para colocar a questão em palavreado filosófico pesado) que o Fiel tivesse uma teoria sobre as outras mentes.

Talvez isto seja esperar demasiado de um canino.

Robert M. Martin
There Are Two Errors In The The Title Of This Book (Broadview Press, Peterborough, 1995).
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ISSN 1749-8457