Atualmente, tendências pós-modernas presentes em alguns círculos acadêmicos, sobretudo em alguns setores das humanidades e das ciências sociais, colocam em causa várias concepções da tradição intelectual ocidental, concepções como a de verdade objetiva e racionalidade. Muitos antropólogos, por exemplo, afirmam que não há qualquer racionalidade que tenha validade universal, mas apenas diferentes racionalidades de diferentes culturas.
Segundo essa doutrina, a que podemos chamar “relativismo”, a verdade é múltipla e depende do ponto de vista do sujeito ou do contexto em que é formulada. Assim, todas as afirmações, sejam científicas, filosóficas, religiosas, etc., seriam diferentes “narrativas”, que deveriam ser compreendidas em seus respectivos contextos históricos, culturais e lingüísticos, pois apenas revelariam os preconceitos culturais de diferentes narradores. Os critérios de verdade, dizem-nos, são relativos às diferentes práticas e culturas e não há qualquer juiz ou padrão de racionalidade imparcial e superior capaz de avaliar essas diferentes narrativas.
Penso que esse relativismo pós-moderno não é apenas incoerente, mas também tem conseqüências absurdas, verdadeiros contra-sensos que não condizem com a realidade. Uma afirmação factual não pode ser considerada verdadeira ou falsa apenas dentro de um certo sistema de crenças particular. Se por um lado é necessário um certo “relativismo” no procedimento do antropólogo que estuda o papel de diferentes costumes em várias culturas, disso não se segue um relativismo cognitivo que afirma ser a verdade apenas uma questão de diferentes práticas culturais, de diferentes maneiras de “conhecer” o mundo.
Esse relativismo também é pernicioso por tornar a discussão de idéias vazia de sentido. Se cada qual tem sua verdade, não há necessidade de levar a sério os argumentos de outrem ou de justificar as nossas próprias idéias, que também seriam apenas pontos de vista. Um desleixo intelectual que é problemático, pois se todos os discursos se equivalem como meras “narrativas”, então somos levados a admitir que mesmo os preconceitos racistas, sexistas e toda forma de fundamentalismos religiosos são igualmente legítimos.
O objetivo que me proponho nesse texto é examinar várias possibilidades que evidenciariam as conseqüências absurdas desse relativismo pós-moderno a fim de refutarmos tal ponto de vista. Em filosofia essa forma de raciocínio é denominada de redução ao absurdo.
A redução ao absurdo é uma das maneiras de avaliarmos criticamente diferentes teorias e afirmações e consiste em ensaiar uma possível refutação dessas teorias e afirmações a partir de suas conclusões. O processo de raciocínio se dá do seguinte modo: se derivarmos uma conclusão contraditória de um conjunto de suposições, então temos boas razões para considerar insustentável esse conjunto de suposições. Em outras palavras, se uma teoria p nos leva a uma conclusão contraditória q, então concluímos que a teoria p é insatisfatória. É deste modo que refutaremos o relativismo pós-moderno.
Farei também alguns breves comentários acerca das contradições internas desse relativismo. O relativismo pós-moderno é insustentável e não tem um pingo de lógica — afirma que não há verdades não relativas quando essa mesma afirmação pretende ser encarada como não relativa.
São inúmeros os exemplos que evidenciam os contra-sensos do relativismo pós-moderno. Imaginemos, como primeiro exemplo, o caso de uma criança que é violentada e assassinada. Temos dois candidatos para resolver o crime e punir o culpado. De um lado temos uma tribo e todos seus velhos preceitos míticos passados de geração para geração, do outro lado, temos um tribunal do homem ocidental com todos seus conceitos de prova e investigação. O pajé da tribo pretende descobrir o culpado por meio de um ritual, pois as entranhas de um pássaro, diz o pajé, não mentem nunca. Ao passo que o homem ocidental, por meio de um detetive que utiliza outros métodos para descobrir o autor do crime, afirma saber quem é o criminoso devido a uma série de indícios, sendo o principal deles o exame de DNA, que comprova que o esperma encontrado no corpo da criança é o mesmo do principal suspeito, que foi visto perto da cena do crime. A tribo chega à conclusão de que o assassino é o pai da criança, enquanto o detetive descobre que se tratava de um vizinho da criança.
Quem está com a razão? De acordo com os relativistas seremos obrigados a aceitar ambas as explicações, pois são formas diferentes de verdades com critérios próprios. Mas o assassino da criança seriam as duas pessoas ao mesmo tempo? Repare que não podemos dizer simplesmente que os dois agiram conjuntamente para matar a criança, isso seria uma possibilidade trivial que ninguém pretende negar. Na verdade, o relativista quer dizer algo bem diferente. Mas nesse caso somos obrigados a afirmar que o assassino é “relativo” ao critério de investigação? O assassino muda de acordo com o critério? Repare que esse modo de pensar traz também sérias implicações éticas, pois os responsáveis pelo crime serão punidos tanto a partir dos critérios da tribo quanto a partir dos critérios de prova ocidentais. Neste caso ambos deveriam ser punidos, segundo os diferentes critérios?
A verdade, como ainda nos lembram os relativistas, por ser relativa a diferentes critérios também varia de acordo com o tempo. Assim, enquanto para o homem medieval a sua existência representava a suprema criação de um Deus criador de todas as coisas e ele descendia de Adão e Eva, para o moderno o homem poderia muito bem ser entendido como um mamífero que é um mero produto de processos naturais sem propósito algum. Mais uma vez eu pergunto, quem está certo? De acordo com os relativistas, ambos. Ora, isso quer dizer que o homem de fato era o filho de Deus enquanto acreditávamos nisso? E que agora esse mesmo Deus cristão não existe caso o homem moderno não acreditar mais na sua existência? Em outras palavras, o Deus cristão existe ou deixa de existir de acordo com nossas crenças, de modo que ele tanto existe quanto não existe? Somos mamíferos e produtos de uma natureza cega ao mesmo tempo em que somos descendentes de Adão e Eva?
A partir do discurso relativista também podemos nos perguntar: se para os medievais aristotélicos a Terra era plana por que motivo agora ela deveria ser redonda? Quer dizer que a Terra era chata naquela época enquanto agora é redonda? Ou será que a Terra é tanto chata quanto redonda? Afinal de contas, a verdade é relativa e depende dos critérios que utilizamos? Será que a revolução copernicana seria apenas uma narrativa? Portanto, o modelo geocêntrico no qual a Terra é o centro do universo seria tão verdadeiro quanto o modelo heliocêntrico? Se a Terra gira ou não em torno de si mesma é uma verdade que poderia variar de comunidade para comunidade, de uma época para outra?
Já o nazismo foi, entre outras coisas, uma forma de racismo que defendeu o ideal da superioridade ariana. Na atualidade a maioria de nós encara tal ponto de vista como absurdo, mas se admitimos o relativismo pós-moderno seremos obrigados a afirmar que a adoração nazi de um povo ariano racialmente puro é tão verdadeira quanto a idéia de que os arianos não seriam naturalmente superiores a quem quer que seja. Portanto os nazi estavam certos, isso era verdade “para eles” em seu contexto, enquanto não é uma verdade “para nós”? A superioridade ariana é verdadeira para quem assim o considerar de modo que é falsa para quem não pensa deste modo? Ou existia uma raça ariana superior enquanto agora não existe mais?
Poderíamos também citar como exemplo uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) que está a investigar um caso de corrupção. Um deputado chamado José é convocado a depor para esclarecer um “dinheiro a mais” que aparece na sua conta bancária. O José afirma que recebeu o dinheiro de um outro deputado, o Almeida, e que tudo faz parte de um processo corrupto do governo com vistas a ganhar apoio político da oposição. O Almeida nega categoricamente que tenha dado algum dinheiro para José e os dois deputados são chamados pela CPI para ficarem frente a frente numa acareação, com o intuito de descobrir quem fala a verdade. De acordo com o relativismo teremos de dizer que ambos falam a verdade, já que a verdade depende do ponto de vista do sujeito. Isso quer dizer que o José recebeu o dinheiro do Almeida ao mesmo tempo em que não recebeu? A causa do dinheiro aparecer na conta do José depende do ponto de vista?
Um caso interessante é apresentado por Alan Sokal (2001) sobre a origem das populações nativas americanas e pontos de vista concorrentes a seu respeito. O “ponto de vista” científico, com base em uma série de indícios arqueológicos, afirma que os primeiros humanos chegaram na América vindos da Ásia por meio do estreito de Bering, em torno de 10 ou 20 mil anos atrás. Já segundo alguns mitos tradicionais indígenas, sua população sempre viveu nas Américas uma vez que seus ancestrais teriam emergido da superfície da Terra vindos de um mundo subterrâneo repleto de espíritos.
Os dois pontos de vista são mutuamente incompatíveis, o que quer dizer que sendo um deles verdadeiro o outro necessariamente será falso, mas segundo o relativismo teremos de admitir que são ambos verdadeiros. Quer dizer que os nativos americanos emergiram da terra ao mesmo tempo em que migraram de outra região do planeta? O ponto de vista arqueológico sobre o que é a pré-história é apenas um diferente sistema de crença dos mitos indígenas? Seriam diferentes formas de “conhecer” o mundo, igualmente verdadeiras?
Outro exemplo: há algo de diferente em determinado vidro, algumas manchas estranhas. Frente a isso as explicações rivais logo surgem: “essas manchas no vidro”, dizem os cientistas, “são apenas manchas, que podemos explicar naturalmente recorrendo à física”. “Nada disso”, dizem os católicos, “a macha no vidro representa uma imagem de uma Santa! É um milagre!” Qual das explicações está correta? Ambas? Seria uma imagem de Santa e um milagre ao mesmo tempo em que seria apenas uma mancha? Ou será que a mancha é somente uma mancha enquanto investigada por cientistas e se transformaria num milagre e numa representação de uma santa enquanto vista por cristãos? Neste caso o vidro se transformaria de acordo com nossos desejos e critérios?
Levando-se em conta tal exemplo não poderia deixar de mencionar uma idéia muito difundida entre relativistas, a teoria dos “jogos de linguagem” O pai dessa teoria foi o filósofo Ludwig Wittgenstein (1889–1951). Em sua obra Investigações Filosóficas, Wittgenstein defende que a linguagem seria apenas um instrumento e existiriam diferentes tipos de instrumentos para diferentes propostas, todas mutuamente intraduzíveis e incomensuráveis. Assim, não caberia falar, por exemplo, de um conflito entre a ciência e a religião uma vez que ambas teriam propósitos diferentes e por consequência jogos diferentes.
O primeiro problema com essa teoria, como toda postura relativista, é que ela é auto-refutante. Se as diferentes explicações fazem parte de diferentes jogos de linguagem, por que motivo a teoria dos jogos de linguagem que faz parte do território filosófico teria um lugar privilegiado? Por que a verdade dessa teoria deveria ser encarada como não relativa? Ou essa teoria apenas faz parte de mais um jogo de linguagem ou é uma verdade não relativa. Se a teoria dos jogos de linguagem apenas faz parte de mais um jogo de linguagem, ela acaba por se tornar uma posição inócua e que cai na vacuidade, pois sem qualquer pretensão de objetividade ela é incapaz de excluir as pretensões dos que não acreditam nesse relativismo. Se ao contrário, a teoria dos jogos de linguagem é uma verdade não relativa, então é falsa, pois existe ao menos uma verdade não relativa. Deste modo o relativismo dos jogos de linguagem elimina as suas próprias bases de sustentação por se aplicar a si mesmo.
O segundo problema, como foi ilustrado pelo exemplo anterior, é que essa teoria não condiz com a realidade: a religião e a investigação científicas ficaram várias vezes em conflito ao longo da história. A religião entra no território científico e secular, pois dá declarações que seriam, pelo menos em princípio, testáveis.
Espero ter demonstrado a partir desses exemplos que o relativismo pós-moderno nos leva inevitavelmente a conseqüências absurdas e que isso constitui uma boa razão para o refutarmos. Digo que essas conseqüências constituem um bom motivo para refutarmos o discurso relativista porque os partidários dessas idéias poderão rebater que essas teorias são absurdas do ponto de vista da lógica, mas essa é só mais uma perspectiva que não seriam obrigados a aceitar. Assim o relativista não se veria na obrigação de admitir nossa conclusão uma vez que duvida dos princípios da própria lógica que utilizamos na nossa argumentação.
Contudo essa reivindicação é incoerente: poderíamos perguntar por que motivo esses mesmos princípios seriam válidos na argumentação relativista, mas inválidos nas críticas que fazemos a essa doutrina. O relativismo pretende se basear nos mesmos princípios da lógica que os seus críticos. Caso contrário, não deveríamos levar a sério suas reivindicações, uma vez que suas conclusões não se seguiriam de suas premissas por qualquer necessidade lógica, mas de maneira arbitrária e irracional.
A partir das conseqüências do relativismo pós-moderno podemos verificar que é falsa a noção de que o conhecimento é apenas uma questão de crença. No caso do assassinato da criança, por exemplo, partimos do equívoco de que há duas vias para se chegar á verdade, mas ao verificamos o “método” da tribo nos damos conta de que este nada teria a ver com a investigação da verdade, sendo apenas um preconceito de seus costumes. Quanto à ciência e aos dogmas de fé, eles entram necessariamente em conflito, como foi ilustrado pelo exemplo das manchas do vidro, porque ambos tentam explicar o mesmo mundo físico, mas as hipóteses religiosas nunca são comprovadas e não representam qualquer método ou critério para se chegar à verdade, não passam de ilusão. E é impossível que Deus exista e não exista, visto que é uma mera verdade que nada pode existir e não existir. Essa proposição se contradiz a si mesma porque afirma e nega o mesmo fato: afirma que Deus existe e simultaneamente afirma que Deus não existe. Pelo mesmo motivo, duas teorias mutuamente excludentes não podem ser ambas verdadeiras. É exatamente por não reconhecer esse fato que o discurso relativista gera tantas contradições absurdas e contra-intuitivas.
As diversas atividades intelectuais desenvolvem diferentes tipos de teoria: filosóficas, físicas, matemáticas, etc., que visam resolver problemas diferentes e por isso têm características diferentes. A filosofia não tem o caráter empírico da física e sim um caráter conceitual, mas também é diferente da matemática, por não dispor de métodos formais de demonstração e por se ocupar de problemas diferentes. O que interessa saber é que somente nesse sentido a idéia de que haveria diferentes “critérios” para diferentes atividades intelectuais pode ser entendida de maneira razoável, pois do contrário teremos que admitir um relativismo metodológico inaceitável, que é típico do discurso pós-moderno e suas conseqüências absurdas. Ressaltar a diferença entre as atividades intelectuais não é o mesmo que dizer que a maneira de avaliarmos uma determinada prática tem que ser totalmente determinada pelo método que escolhemos, sem qualquer justificativa racional. É nesse ponto que entra o relativismo ao defender que discursos pseudocientíficos, como a Astrologia ou as terapias Nova Era, são tão verdadeiros quanto a Astronomia e a Física, pois utilizariam métodos diferentes com critérios próprios. Assim bastaria escolher seu mito predileto e utilizar um “método” próprio para justificá-lo. Mas isso é falso, pois para além da diferença entre métodos, qualquer pretensão de se chegar à verdade é avaliada pelo mesmo critério; seja um historiador que investiga acerca do passado, um detetive que pretende descobrir o autor de um crime, um químico que pesquisa em seu laboratório ou um filósofo que está a avaliar diferentes afirmações, o critério é o mesmo: avaliação crítica e justificação racional. Isso quer dizer que devemos ficar atentos e ter uma atitude crítica perante esses diferentes métodos, pois não se trata apenas de uma questão de escolher o método predileto sem qualquer justificação adicional. É por esse motivo que um “método” dogmático e completamente fechado ao debate racional, como é o caso das práticas pseudocientíficas que são incapazes de justificar o que dizem, não representa método algum, mas apenas embuste.
Matheus Martins Silva