28 de Setembro de 2025   História da filosofia

Auto-retrato

John Searle
Tradução de Vítor Guerreiro

A maior parte do meu trabalho em filosofia foi dedicado a diferentes aspectos de uma única questão: como conciliamos aquilo que sabemos acerca de como é o mundo, o mundo de factos em bruto descrito pela física e pela química, com uma concepção que temos de nós próprios enquanto animais conscientes, cientes, intencionais, racionais, sociais, que executam actos de fala e têm livre-arbítrio? Trabalhei neste problema em pelo menos quatro conjuntos diferentes de questões.

1. Significado e actos de fala

O problema essencial na filosofia da linguagem é simplesmente este: quando falo, a minha boca emite uma carga acústica. Também executo actos de fala com significado, como fazer afirmações, promessas, perguntas, etc. Como passamos dos factos em bruto da física para os factos semânticos do acto de fala? Respondo a esta pergunta e outras relacionadas no livro Speech Acts: An Essay in the Philosophy of Language (1969). Esse livro deixou sem resposta uma série de perguntas acerca da metáfora, de actos de fala indirectos, ironia, ficção, etc., que abordo num segundo livro, Expression and Meaning: Studies in the Theory of Speech Acts (1979).

2. A mente: consciência e intencionalidade

Usando resultados da minha teoria dos actos de fala, abordei o problema da intencionalidade, a propriedade da mente que a faz visar objectos ou estados de coisas no mundo, ou ser acerca deles, em Intentionality: An Essay in the Philosophy of Mind (1983). Nesta obra, trato a intencionalidade como um fenómeno biológico, natural, no mesmo sentido em que a fotossíntese e a digestão são fenómenos biológicos naturais. Isto permitiu-me apresentar, de passagem, uma solução para o problema da mente-corpo. Os estados mentais são simultaneamente efeitos de processos neurobiológicos no cérebro e realizados nestes. Chamo “naturalismo biológico” a esta tese, que tanto rejeita o dualismo como o materialismo. A discussão conduz naturalmente a uma análise da consciência, e escrevi diversos livros que discutem a consciência, entre eles The Rediscovery of the Mind (1992) e The Mystery of Counsciousness (1997).

Enquanto trabalhava nestas questões, descobri quão intensamente as minhas teses estavam em desacordo com a filosofia da mente dominante. Na sua maioria, os meus contemporâneos negaram a irredutibilidade da consciência e da intencionalidade e aceitaram várias formas de “materialismo”, como o comportamentalismo, o fisicismo, o funcionalismo e o computacionismo. Penso que todas estas perspectivas são falsas, e, na verdade, assentam todas no mesmo erro de aceitar as categorias cartesianas. Discuti estes tópicos em The Rediscovery of the Mind e noutros livros, dos quais Minds, Brains and Science (1984) é talvez o mais conhecido. Também levanto estas questões em Mind: A Brief Introduction (2004).

3. Realidade social

Pressupondo que apresentara pelo menos as linhas gerais de uma solução para os problemas que me preocupavam acerca da linguagem e da mente, passei para a realidade social e institucional. Que modos de existência têm fenómenos sociais como o dinheiro, a propriedade, o governo e o casamento, num mundo que consiste inteiramente de partículas físicas e campos de forças? Procurei resolver esta questão em The Construction of Social Reality (1995). Afirmo que a noção crucial na compreensão da realidade social é a de uma função de estatuto, uma função que uma pessoa ou um objecto pode desempenhar, não em virtude da sua estrutura física, mas em virtude de a sua comunidade aceitar colectivamente que tem um certo estatuto, como ser presidente ou ser uma nota de vinte dólares.

4. Racionalidade

Num livro mais recentemente publicado, Rationality in Action (2001), critico aquilo a que chamo “modelo clássico de racionalidade”, segundo o qual todas as acções racionais são efeitos de crenças e desejos. Proponho uma concepção alternativa, que sublinha o papel do livre-arbítrio, daquilo a que chamo “o hiato” (e o papel) na compreensão do comportamento racional humano, de razões para a acção que são independentes de desejos.

O meu principal objectivo na filosofia foi sempre construtivo, e não polémico. Penso que a filosofia numa era pós-cartesiana, pós-céptica deve ser teórica, sistemática e abrangente. Todavia, encontrei uma série do que me parecem perspectivas falsas, e empenhei-me em determinados debates amplamente publicitados. Talvez o mais conhecido destes seja o argumento do quarto chinês, em que procuro refutar as afirmações daquilo a que chamo inteligência artificial forte, a tese de que ao criar o tipo correcto de programa de computador estamos automaticamente a criar uma mente, que a computação é constitutiva da consciência e da intencionalidade.

Tive debates com pragmatistas, pós-modernistas, desconstrucionistas e multiculturalistas. Destes, o mais importante, creio, tem a ver com o ensino superior. Defendo uma certa concepção tradicional de ensino superior como uma questão de procurar a correcção intelectual e não política. Escrevi um livro sobre a revolta estudantil, The Campus War (1971).

Iniciei a minha formação universitária na Universidade do Wisconsin, e com dezanove anos fui para Oxford na qualidade de bolseiro da Rhodes Trust. Recebi quase toda a minha formação filosófica em Oxford, e quando acabei a graduação tornei-me leitor em Christ Church, Oxford. A partir de 1959, leccionei em Berkeley.

John Searle
Dicionário de Filosofia, ed. Thomas Mautner (Lisboa: Edições 70, 2010), pp. 676–677.
InícioDonativosSubmissões
Copyright © 2025 criticanarede.com
ISSN 1749-8457