Richard Taylor em seu ensaio “O Sentido da Vida”, afirma que saber se a vida tem sentido é uma questão de difícil interpretação que parece se tornar menos inteligível à medida que nos concentramos mais nela. É difícil imaginar um exemplo do que seria uma vida com sentido. Taylor acredita que para responder a essa questão é mais fácil se partirmos de sua antítese, ou seja, do que não é uma vida com sentido, porque nesse caso ao menos podemos encontrar exemplos elucidativos que nos ajude a obter uma resposta para o problema. E o exemplo mais elucidativo de uma vida sem sentido que Taylor nos apresenta está no mito de Sísifo. Segundo esse mito, Sísifo, após trair os deuses revelando os segredos divinos aos mortais, foi condenado pelos primeiros a carregar uma pedra imensa até o cume de uma montanha — mas, quando se aproximava do cume, a pedra caía, rolando para seu início, de onde ele deveria carregá-la novamente. E esse processo deveria se repetir pela eternidade. Para Taylor, nessa condição, a vida de Sísifo é totalmente desprovida de sentido porque é apenas um ciclo vicioso que não resulta em nada.
Partindo desse exemplo, Taylor chega à conclusão de que nenhuma vida tem sentido. E nenhuma vida tem sentido porque, assim como acontece com Sísifo, uma vida é uma sequência sem fim de atividades que não resultam em nada duradouro. Cada produto de uma atividade humana, por exemplo, é algo efêmero que serve apenas de ponto de partida para mais atividades efêmeras e assim sucessivamente até ao fim da vida. Porém, apesar de chegar a essa conclusão, Taylor não descarta totalmente a possibilidade de existir algum sentido na vida. Para ele, quando analisamos a vida olhando de fora, digamos que objetivamente, não há mesmo nada que possamos fazer; a vida não tem sentido. Mas se olharmos de dentro, da perspectiva de quem a vive, a vida pode ter sentido. Richard Taylor defende que quando estamos mergulhados em uma atividade que valorizamos, entramos em um estado mental e emocional que por si é capaz de criar sentido. E que esse sentido só acaba quando cumprimos nossos objetivos e não há mais trabalhos a serem feitos. Esta tese de Taylor parece ter algum fundo de verdade; quantas vezes não perdemos a hora envolvidos com algo que valorizamos?
Para deixar mais clara essa questão, vamos imaginar que uma pessoa decida dedicar toda a sua vida a construir um castelo de areia numa praia. Enquanto essa pessoa estiver envolvida nessa construção, a sua vida terá um sentido. Não importa se esse castelo sempre é destruído pelos ventos e ondas do mar e que seja irracional essa pessoa continuar dedicando a sua vida a isso. O que importa é que ela estaria envolvida em uma atividade que valoriza, e isso evitaria a falta de sentido na sua vida. Porém, no momento que essa pessoa conseguisse terminar o seu castelo de areia e ele não fosse mais destruído, toda aquela atividade que dava sentido à sua vida deixaria de existir, e consequentemente o sentido da sua vida também desapareceria.
Partindo desse exemplo, podemos inferir da tese de Taylor que não são os nossos objetivos em si que realmente dão sentido às nossas vidas, mas sim as coisas que fazemos e vivemos entre o seu início e o seu término. Para Taylor, nada pode ser pior do que uma situação onde todos os objetivos de alguém são cumpridos e não resta mais nada para fazer além do tédio absoluto de contemplar os seus próprios feitos. Para este filósofo, isso seria uma imagem perfeita do inferno. Por outro lado, ele também acredita que podemos nos afastar desse inferno e nos aproximarmos mais do céu, se vivermos uma vida repleta de atividades que valorizamos. Uma vida onde possamos começar a trabalhar por um novo objetivo mal terminamos o anterior. Onde continuamos construindo nossos castelos de areia um após o outro até chegar o momento da nossa morte. Isso é o mais próximo de um sentido da vida a que possamos chegar, segundo Richard Taylor.
Agora que sabemos qual é a resposta que Richard Taylor dá à questão de saber se a vida tem sentido, parece interessante imaginar outra versão do mito de Sísifo, onde a sua vida passe a ter sentido. E para fazer isso, é preciso antes estabelecer algumas mudanças na versão do mito apresentado por Taylor. A primeira mudança que estabeleceremos é que, assim como acontece na versão de Taylor, os deuses descobririam a traição de Sísifo e o condenariam a carregar uma pedra até ao cume de uma montanha. Porém, ao contrário da sua versão, em que não se fala sobre a possibilidade de Sísifo conseguir cumprir essa tarefa, nesta existiria essa possibilidade. Neste caso, os deuses diriam a Sísifo que se ele conseguisse levar a pedra até ao cume da montanha, estaria perdoado e poderia voltar a viver a sua vida normalmente. A segunda mudança que é preciso estabelecer é que os deuses enganariam Sísifo. Sem que Sísifo soubesse, os deuses lançariam um feitiço sobre a pedra de forma que ele nunca conseguisse chegar ao cume da montanha com ela. São essas as mudanças necessárias para construir a nossa versão do mito de Sísifo, que é então como se segue:
Sísifo, após trair os deuses revelando os segredos divinos aos mortais, é condenado por eles a carregar uma pedra até o cume de uma montanha para pagar pelo seu erro. E para cumprir essa pena, os deuses concedem a Sísifo o tempo de uma vida eterna. Eles também determinam que quando Sísifo conseguir cumprir sua pena, poderá voltar para casa e para sua vida normal, sem mais complicações. Porém, sem que Sísifo o saiba, numa artimanha, os deuses enfeitiçam a pedra de forma que seja repelida pelo cume da montanha sempre que chegue por perto, voltando a rolar para o seu início. Dessa forma, os deuses condenam Sísifo a carregar a pedra pela eternidade sem que ele tenha consciência disso.
Uma pergunta que pode ser feita agora é: de que forma essa versão do mito faz a vida de Sísifo passar a ter sentido? Mas para responder essa pergunta, primeiro precisamos expor a nossa interpretação do mito de Sísifo. Como o próprio Taylor escreve, ao mito de Sísifo pode-se atribuir vários significados e o mais comum é o de que o mito representaria a determinação constante para voltar a tentar diante do fracasso. Essa também é a interpretação que fazemos e é ela que vamos representar em nossa própria versão do mito. Em nossa versão, Sísifo, após receber a promessa de liberdade, continuaria tentando repetidamente cumprir a sua tarefa mesmo fracassando em todas as tentativas. Sem saber que a sua tarefa é impossível de ser cumprida, ele acreditaria que a única forma de se ver livre de tudo aquilo seria continuar tentando, fracasso após fracasso. Aqui também é natural que surja a seguinte pergunta: Sísifo em algum momento não se cansaria de tentar e desistiria de tudo? E a resposta para essa pergunta é que se isso acontecesse, seria muito pior para Sísifo. Se ele desistisse, a única coisa que lhe restaria seria ficar sentado na pedra que deveria carregar, se lamentando pela eternidade do seu fracasso. E essa opção, segundo a tese de Taylor — a qual adotamos aqui — seria mil vezes pior do que continuar tentando o que parece impossível. Seria o fim das atividades e o fim de qualquer possibilidade de sentido para a sua vida. Nos parece que a melhor atitude para Sísifo, nesse caso, fosse a de continuar tentando pela eternidade conquistar sua liberdade.
Até aqui foram adotadas algumas premissas que, se forem aceitas, vão nos permitir a responder à pergunta sobre como a nova versão do mito de Sísifo dá sentido à vida de Sísifo. A primeira premissa que adotamos é a tese Richard Taylor. Segundo essa tese, a vida pode ter sentido se olharmos da perspectiva de quem a vive e esse sentido nasce do nosso envolvimento constante em atividades que valorizamos. A segunda, são as mudanças apresentadas em nossa própria versão do mito; a promessa de liberdade dada a Sísifo pelos deuses caso ele cumpra sua pena e a artimanha dos deuses que impede que a sua pena seja cumprida. A terceira e última premissa é a interpretação do mito de Sísifo que nossa versão representa. Ela representa a determinação constante para voltar a tentar diante do fracasso.
Explicitadas as nossas premissas, podemos finalmente responder à pergunta já formulada: de que forma a nossa versão do mito de Sísifo faz a vida de Sísifo passar a ter sentido? Bem, a primeira premissa que adotamos diz que a vida de alguém pode ter sentido se essa pessoa estiver envolvida constantemente em alguma atividade que ela valorize. Pois bem, o que a segunda premissa nos oferece é justamente isso. Ela traz a promessa de liberdade dada a Sísifo pelos deuses. O que poderia ter mais valor para Sísifo que trabalhar para reconquistar a sua liberdade e poder voltar a viver a sua vida normalmente? Em nossa versão do mito, esse é o seu grande objetivo, e é isso que torna a atividade na qual está envolvido — carregar a pedra até o cume da montanha — uma atividade tão valorizada por ele. Sabemos também que Sísifo nunca irá atingir seu objetivo, pois os deuses lançaram um feitiço sobre a pedra que torna a sua pena impossível de ser cumprida. Essa artimanha dos deuses pode parecer muito perversa num primeiro momento; afinal de contas, eles enganaram Sísifo fazendo-o trabalhar incessantemente por um objetivo que nunca irá atingir. Porém, se observarmos de uma certa perspectiva, percebemos que essa atitude foi mais benevolente que perversa. Com ela, os deuses concederam a Sísifo a possibilidade de ter um objetivo que ele valoriza. Dessa maneira, Sísifo estará constantemente envolvido em uma atividade que ele valoriza, e é assim que a sua vida passa a ter sentido na nossa versão do mito. Sísifo trabalha constantemente para reconquistar a sua liberdade e, olhando do seu ponto de vista, esse é o sentido da sua vida.
Algumas objeções poderão surgir a partir daqui. Alguém ainda pode insistir, por exemplo, que depois de tanto trabalhar e nunca conseguir chegar ao cume da montanha, Sísifo desista de tentar reconquistar sua liberdade e acabe por pôr fim ao que dá sentido à sua vida. Isso com certeza tornaria a nossa versão do mito um fracasso. Porém, a terceira premissa que adotamos aqui diz que a nossa versão do mito representa a determinação constante para continuar a tentar diante do fracasso, e é isso que Sísifo encarna. Ele não pode imaginar, nem por um segundo, que a sua pena é impossível de ser cumprida; a condição que criamos para ele não permite que isso aconteça. Por isso, Sísifo nunca irá desistir daquilo que dá sentido à sua vida. Alguns também podem pensar que a situação de Sísifo não se alterou de verdade, que apenas colori com cores vivas e alegres uma imagem trágica e desesperançosa, como os fabricantes de cigarros fazem ao criar cigarros com sabor de cereja, por exemplo. E que se olharmos de fora, a vida de Sísifo continua não tendo sentido, que ainda é um ciclo vicioso que não resulta em nada — assim como os cigarros com sabor de cereja, que apesar de mais agradáveis, não são menos nocivos à saúde. Isso é verdadeiro, porém em minha defesa digo que esta versão do mito de Sísifo foi criada a partir da resposta que Richard Taylor dá à questão do sentido da vida; ora, segundo essa resposta, essa é a única coisa que pode ser feita. Como ele mesmo afirma, isso é o mais próximo do céu que podemos chegar. Outra objeção que também poderá ser feita é a de que o caminho trilhado para dar sentido à vida de Sísifo foi arbitrário, que escolhi premissas muito convenientes ao resultado que esperava. Isso pode ter o seu fundo de verdade, mas se pararmos para refletir um pouco, veremos que a condição em que Sísifo se encontra na nossa versão do mito é mais comum que imaginamos. Quantos de nós não vivemos as nossas vidas baseadas em promessas que não sabemos se poderão se concretizar? Quantos de nós não têm como força motriz da vida uma crença falsa de que é possível conseguir algo melhor para si?
Em seu ensaio, Richard Taylor afirma que as nossas vidas são como a punição que Sísifo recebe dos deuses; um ciclo vicioso que não resulta em nada. Que tudo que fazemos irá se transformar em poeira e memórias e depois disso em nada. E que nem mesmo as mais monumentais construções e os mais heróicos feitos resistem a isso. Porém, o próprio Taylor acredita que isso pouco importa. Segundo ele, não importa se todo o esforço feito por alguém para aprender outro idioma, para escalar o monte do Everest, ou mesmo para escrever um ensaio como este, não signifiquem nada daqui a alguns milhares de séculos. O que importa é que essas atividades significam algo importante para quem as faz, enquanto as faz. É isso que importa, segundo Richard Taylor: que em nossas vidas estejamos sempre envolvidos em projetos que valorizamos. Isso nos faz pensar que talvez a única coisa que nos diferencia de Sísifo é que nós podemos tentar averiguar se os projetos nos quais estamos envolvidos realmente vão dar naquilo que estamos buscando, ou se precisamos tentar algo diferente. São os nossos objetivos possibilidades reais ou apenas ilusões?