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Crítica
19 de Março de 2002   Metafísica

Notas sobre a teoria coerentista da verdade

António Costa

0. Introdução

O problema da verdade suscita uma das mais estimulantes e persistentes reflexões filosóficas, elegendo-se, sem dificuldade, como um dos temas perenes da filosofia. A sua presença em várias províncias filosóficas (como, por exemplo, a metafísica, a epistemologia, a filosofia da linguagem ou a filosofia da acção) implicou que a tradição filosófica o tivesse discutido de maneira variavelmente autónoma, pois a sua conexão com outros problemas fez que, frequentemente, o afastasse para um plano meramente subsidiário ou, em outros casos, nem sequer o tratasse como um tópico filosófico independente.

O aparecimento de novas perspectivas sobre a verdade nos últimos dois séculos, de que as teorias pragmatistas e deflacionistas são exemplo, bem como a sua conexão com a filosofia da linguagem contemporânea, revitalizaram o problema da verdade enquanto problema filosófico, centrando as atenções de muitos autores, particularmente no universo intelectual anglo-saxónico. Em Portugal, o tema é focado predominantemente em certas disciplinas dos cursos universitários e, muito raramente, no ensino secundário. A isto não será alheia a ausência de uma bibliografia introdutória ao tópico da verdade, em língua portuguesa, nem o consequente desconhecimento dos principais problemas, teorias e argumentos associados ao debate existente em torno da verdade.

Nestas notas(1), começarei por apresentar sumariamente as principais teorias acerca da verdade e os problemas metodológicos envolvidos na sua discussão. Seguidamente, discutirei os pontos fortes e fracos de uma dessas teorias, pouco conhecida entre nós — a teoria coerentista. Com elas pretendo dar a conhecer, especificamente, a formulação da teoria, as variantes existentes, os argumentos que as sustentam e as objecções correlativas. Finalizarei pela apresentação, igualmente sumária, da versão da teoria coerentista proposta por Donald Davidson. O destaque dado à versão davidsoniana fundamenta-se no facto de, na minha perspectiva, ser esta a versão que parece mais robusta face às objecções, que entretanto apresentarei, postas à teoria coerentista.

A actividade filosófica desenvolve-se, classicamente, em três vectores — a formulação rigorosa de problemas, a elaboração sistemática de teorias e a discussão dos vários argumentos. O desenvolvimento destas notas manterá presente este pressuposto metafilosófico, afastando-se quaisquer preocupações exegéticas e usando as referências históricas de forma pontual.

1. Um relance sobre a noção de verdade

Problema

O tópico filosófico da verdade nasce com as tentativas de elaboração sistemática de soluções para o problema de saber o que é a verdade. Este problema admite outras formulações linguísticas — por exemplo, “o que significa “ser verdadeiro”?” — mas a cada tipo de formulação corresponderá quer a preocupação com uma direcção específica da discussão do tópico, quer a assunção de um conjunto de pressupostos filosóficos particular. Perguntas como “que entidades são portadoras de valores de verdade?” ou “quando é que se pode dizer que uma frase é verdadeira?”, que estão intimamente envolvidas com o problema central de saber o que é a verdade, constituem formulações comprometidas com outros aparatos conceptuais que não são imediatamente evidentes. Nestas notas não me deterei na análise das variantes de formulação do problema, assumindo que as todas as teorias de verdade têm como escopo responder à questão “o que é a verdade?”.

Teorias

A bibliografia filosófica(2) identifica pelo menos quatro teorias da verdade com relevância histórica e, para cada uma delas, algumas variantes. São elas:

  1. a teoria da verdade como correspondência;
  2. a teoria pragmatista;
  3. a teoria deflacionista;
  4. a teoria coerentista.

Vejamos cada uma delas nos seus traços essenciais.

A teoria da verdade como correspondência defende que a verdade de uma dada frase, proposição ou crença se deve à circunstância de essa frase, proposição ou crença corresponder a um certo estado do mundo ou realidade, concebido(a) como algo que é independente da mente ou da linguagem: caso o conteúdo de uma dada frase corresponda a um dado estado do mundo ou realidade, a frase será verdadeira; caso contrário, será falsa.

Esta teoria, bastante intuitiva, enfrenta, num escrutínio mais rigoroso, duas ordens de dificuldades: uma, inerente à explicação do estatuto da realidade a que as frases, proposições ou crenças supostamente correspondem; a outra, inerente à própria noção de correspondência e ao modo correcto de conceber uma relação de correspondência entre frases, proposições ou crenças e estados do mundo. Um aspecto muito focado desta dificuldade consiste em se saber como pode a mente ter acesso a um mundo que lhe é “exterior”.

A teoria da verdade como correspondência é identificada como, historicamente, a mais antiga doutrina acerca da verdade, sendo evidentes as preocupações de Sócrates, Platão, Aristóteles, Agostinho, Tomás de Aquino, Hume, Descartes, Leibniz e Kant com o tópico, podendo alguns entre estes autores inscrever-se numa visão correspondentista da verdade.

A teoria pragmatista postula que a verdade é a característica das frases ou proposições nas quais é útil acreditar. A verdade é, assim, definida em termos de utilidade, isto é, em termos daquilo que é desejável ou daquilo que tem consequências úteis ou agradáveis para aquele que crê na frase, ou proposição, tida por verdadeira.

Algumas das dificuldades postas à teoria pragmatista são as seguintes: por um lado, a de se saber como é possível medir a utilidade das crenças; por outro, como fazê-lo evitando simultaneamente o relativismo; por último, ao conectar a verdade com a utilidade, a teoria situa a noção de verdade no cerne de uma teoria da acção, assumindo que a crença verdadeira contribuirá para o êxito das acções, tornando-as, assim, úteis ou agradáveis. Ora, é contra-intuitivo que seja possível a cada agente determinar, em relação ao futuro, as consequências das suas acções (e a correlativa utilidade e agradabilidade), o que parece trazer dificuldades a uma teoria que faça delas depender um critério de verdade de crenças.

A teoria está intimamente ligada às éticas utilitaristas da escola americana, sendo Peirce, James e Dewey os responsáveis pelo desenvolvimento da mesma.

A teoria deflacionista surge no último século como uma reacção ao carácter alegadamente “inflacionado” das teorias tradicionais de verdade (incluindo a teoria coerentista, que abordarei mais adiante). Ao postularem que a verdade não é uma propriedade genuína das frases e que, em todas as teorias anteriores, a consideração da verdade enquanto propriedade de frases resulta de uma mera confusão linguística, os partidários do deflacionismo quiseram tentar abordar a noção de verdade de uma forma mais simples (deflacionada), isentando-a de um aparato conceptual que não pode ser dispensado nas outras teorias. A confusão a que aludem resulta do nosso uso habitual do predicado “é verdadeiro”, que nos induz erradamente a concebê-lo como uma descrição de uma propriedade das frases (nomeadamente, a propriedade de serem verdadeiras ou falsas), quando, provavelmente, não lhe cabe mais do que o papel de enfatizar a aprovação ou assentimento do locutor a essas mesmas frases (isto é, como se fosse outro modo de dizer “concordo que...” ou de acenar com a cabeça para indicar anuência).

A maior objecção à teoria funda-se em contra-exemplos perante os quais é difícil sustentar que a função de expressão “é verdade que p” seja apenas enfatizar a aprovação de p, parecendo o predicado, pelo contrário, deter algum papel semântico adicional, como no exemplo “Todas as frases em que acredito são verdadeiras”.

A formulação explícita da teoria deflacionista é atribuída a Ramsey, no início deste século, e hoje conta com a simpatia de pessoas como Schmitt ou Horwich.

Sobre a teoria coerentista, veja-se a secção 2 e seguintes. Por razões de economia, ignoro nestas notas outras teorias, ou variantes de teorias, como a teoria verificacionista, a teoria descitacionista, a teoria de verdade como redundância ou a teoria de verdade de Tarski, e ainda as considerações produzidas por autores continentais acerca do tópico (por exemplo, a teoria de verdade como desvelamento, de Heidegger).

Problemas metodológicos

Vejamos agora alguns problemas de método relacionados com a discussão das diferentes teorias de verdade.

Em primeiro lugar, a consideração das várias teorias mostra que é difícil encontrar uma noção consensual do que a verdade seja: qualquer definição de verdade, mesmo que enciclopédica, parece implicar uma ou várias teorias, quanto mais não seja pelo aparato conceptual com base no qual o conceito de verdade é definido, o qual dificilmente pode ser neutro. O único consenso possível parece ser o de que existe uma natureza ou essência da verdade (seja ela qual for), isto é, algo que é comum a tudo aquilo do qual se predique a verdade. Mas esta concordância minimalista é insatisfatória e parece pouco fecunda caso se pretenda que as diversas teorias, competindo entre si, têm como escopo a explicação de uma mesma noção, a de verdade.

Em segundo lugar, mesmo que assumamos que as teorias de verdade não são mais do que aspectos parcelares de programas de investigação filosófica mais alargados (por exemplo, teorias do significado ou teorias da acção), ficamos ainda sem saber qual o contributo específico que o tópico da verdade trará a tais programas. Declarar que o tópico é uma discussão meramente subsidiária não esclarece por que motivo uma teoria — subsidiária que seja — seria mais aceitável do que outra teoria de verdade.

Em terceiro lugar, podemos perguntar-nos quais as entidades às quais a propriedade de ser verdadeira — caso exista uma tal propriedade — é atribuível. Nesta discussão, uma vez mais, pouco consenso tem sido conseguido: são as frases? são as proposições? serão outras entidades? Parece haver uma inclinação em favor da ideia de que são as proposições os portadores de valores de verdade, mas esta perspectiva não é consensual, desde logo porque a própria noção de proposição é algo obscura e não é aceite por todos os quadrantes filosóficos.

Em quarto lugar, põe-se a questão das condições de verdade. Todas as teorias pretendem relacionar as entidades portadoras de valores de verdade (frases, proposições, crenças, etc.) com alguma outra instância que se estabelece como condição de verdade das primeiras: na teoria correspondentista, com estados objectivos do mundo; na teoria pragmatista, com aquilo em que é útil acreditar; na teoria deflacionista, com o contexto da asserção “é verdadeiro”. Dada a heterogeneidade patente, não parece ser possível, uma vez mais, encontrar um fio condutor na discussão sobre a verdade.

Schmitt sublinha(3), porém, que há um tipo de relação que está presente em todas as teorias: a relação da verdade com seres racionais. Vejamos porquê: na teoria correspondentista, uma crença é verdadeira caso corresponda à realidade; na teoria pragmatista, uma crença é verdadeira caso seja útil nela acreditar; na teoria deflacionista, o assentimento dado a uma frase ou proposição pode ser interpretado como a crença na verdade dessa frase ou proposição. Em qualquer destas teorias está, pois, envolvida a crença. Mas, só podemos falar de crenças implicando alguém que as creia. Assim, a verdade está relacionada com, e exige a presença de um ser que crê, isto é, de um ser dotado de atitudes proposicionais. Provavelmente, um ser racional(4). Ora, Schmitt vê justamente o cerne da contenda entre as várias teorias no grau com que cada uma faz depender a verdade da relação que esta tem com o ser racional que nela crê.

Outro tipo de problemas com que a noção de verdade está envolvida é os seguintes: a contenda relativismo/anti-relativismo; as relações entre verdade e significado; a polémica realismo/idealismo; a relação entre verdade, justificação e conhecimento (que nestas notas estará em maior evidência); e a relação entre crença verdadeira e acção. Qualquer estudo mais detalhado sobre a noção de verdade deverá esclarecer as relações do tópico da verdade com estes outros tópicos filosóficos, sendo claro o envolvimento da noção em muitos departamentos filosóficos.

2. Caracterização geral de uma teoria coerentista da verdade

Abordarei agora a teoria coerentista e fá-lo-ei com maior detalhe do que aquele com que esquematizei as principais teorias de verdade. Nesta caracterização, a teoria coerentista aparecerá, algumas vezes, contrastada com aquela que tem sido tomada como sendo a sua principal rival, a teoria da verdade como correspondência. Isto apenas acontece em favor de uma melhor caracterização da primeira, não significando que concorde com o estatuto de rival que tem sido habitualmente atribuído à segunda.

Por outro lado, embora dedique uma secção aos argumentos e objecções à teoria, serão avançados imediatamente alguns deles, também em favor da compreensão da própria teoria.

A teoria coerentista

Considerando que as proposições são 1.º) aquilo que é objecto de crença e 2.º) as entidades portadoras de valores de verdade, os defensores da teoria coerentista sustentam que a verdade de uma proposição consiste na sua coerência com um certo conjunto especificado de proposições. Numa formulação um pouco mais técnica, a teoria coerentista defende que

Uma proposição P é verdadeira se, e somente se, é coerente com um conjunto especificado (C) de proposições.(5)

Embora, numa primeira abordagem, a teoria pareça menos intuitiva que, por exemplo, a teoria de verdade como correspondência, parece evidente que o assentimento (ou o não assentimento) dado por nós a muitas proposições resulta, frequentemente, da simples comparação de tais proposições com outras proposições em que acreditamos e que temos por verdadeiras. Se me dizem que “Nas montanhas do Cazaquistão há um povo que vive sem respirar”, a minha recusa em aceitar esta frase não resulta de eu crer, justificadamente, que não corresponde à realidade (pois, não conhecendo os povos do Cazaquistão, não sei se tal frase corresponde ou não e, assim, não tenho essa justificação para não a crer), mas, tão-só, da circunstância de o meu “stock” de crenças acerca dos seres humanos tornar incoerente que eu creia naquela frase. E não crer nela significa, habitualmente, que a considero falsa. As minhas crenças e a crença naquela frase são incompatíveis e, nesta competição, sacrifico habitualmente a crença numa proposição que colide claramente com o meu “stock” de crenças, usando a coerência, pois, como critério de verdade. Portanto, não sendo invulgar que as crenças sejam aceites ou recusadas com base na sua coerência com outras crenças em que acredito, a teoria coerentista merece alguma atenção. Aprofundemo-la um pouco mais.

As diferenças face à sua hipotética rival, a teoria da correspondência

De acordo com Young(6), há dois aspectos que contrastam a teoria coerentista com a sua suposta rival:

Qualquer destas soluções enfrenta problemas (como veremos no caso da teoria coerentista) e nenhuma teoria parece estar em condições de destronar decisivamente a outra.

Versões da teoria coerentista

Ainda de acordo com Young(7), não há uma teoria coerentista de verdade: efectivamente, diferentes autores assumem várias versões da teoria que, aceitando a formulação geral apresentada acima, diferem em dois aspectos principais: primeiro, quanto à forma como é explicada a relação de coerência; segundo, quanto ao critério de especificação do conjunto de proposições.

A relação de coerência pode ser explicada em termos da mera consistência de uma proposição com um conjunto especificado de proposições. Mas esta versão enfrenta o seguinte problema: se uma proposição P for coerente com um dado conjunto C e se outra proposição P* for coerente com um conjunto C*, então, na medida em que quer P quer P* são proposições coerentes com conjuntos especificados de proposições (respectivamente, com C e com C*), tal como estipulado na formulação geral da teoria, ambas devem ser declaradas verdadeiras. Porém, ainda que, à luz da teoria, satisfaçam as condições necessárias e suficientes para serem ambas declaradas verdadeiras, nada impede que sejam inconsistentes entre si. Por exemplo, imaginemos que a crença na proposição “Deus existe” é coerente com o meu “stock” de outras crenças; imaginemos que o leitor destas notas acredita, em coerência com o seu “stock” de crenças, na proposição “Deus não existe”. Caso esta versão da teoria coerentista seja correcta, como a minha crença é coerente com um conjunto especificado de crenças, ela é verdadeira; como a crença do leitor é coerente com muitas outras das suas crenças, ela é também verdadeira. Porém, é evidente que são inconsistentes e que afirmá-las em simultâneo como sendo verdadeiras viola a mais elementar regra da lógica.

Se pretendêssemos ser um pouco mais radicais, poderíamos considerar uma proposição claramente absurda, A, exterior ao sistema de crenças C (ou C*). Mas, sendo a verdade definida em termos de coerência e esta em termos de mera consistência, então a proposição A seria verdadeira. O que nos leva ao resultado surpreendente — e inaceitável — de termos uma proposição, A, simultaneamente absurda e verdadeira. Logo, a relação de coerência não pode ser explicada em termos de mera consistência.

Consideremos uma alternativa que consiste em adoptar uma versão mais forte e restritiva da teoria, segundo a qual a relação de coerência deverá ser vista como uma forma de implicação lógica, em que uma proposição é coerente com um conjunto especificado de proposições se for logicamente implicada pelas proposições desse conjunto. Por exemplo, se o nosso “stock” de crenças contiver a crença nas proposições

1) “Todos os homens são mortais”

e

2) “Sócrates é homem”,

é coerente que acreditemos em

3) “Sócrates é mortal”,

pois esta proposição é logicamente implicada pelas outras duas. Vejamos, agora, a proposição “Deus existe”.

Esta proposição é consistente com as proposições anteriores. No entanto, não é, por elas, logicamente implicada. Nesta versão da teoria coerentista, não estamos autorizados a considerá-la verdadeira (ao contrário do que aconteceria com a versão mais fraca).

Porém, uma dificuldade se coloca, ainda, perante esta versão: 3 é, como vimos, logicamente implicada pela conjunção das proposições 1 e 2. No entanto, nenhuma destas é logicamente implicada pela conjunção das outras duas, isto é, 2 não é logicamente implicada pela conjunção de 1 e 3; e 1 não é logicamente implicada pela conjunção de 2 e 3. Assim, se o nosso “stock” de crenças contivesse 1 e 3, não poderíamos aceitar que 2 é verdadeira; ou se contivesse 2 e 3, não poderíamos aceitar que 1 é verdadeira. Parece, pois, que a verdade das proposições está estreitamente conectada com o “stock” de proposições que é inicialmente considerado. Isto desloca a discussão para o problema do critério de especificação do conjunto de proposições à luz do qual uma dada proposição é avaliada. Será a amplitude desse conjunto que determinará, em primeira instância, quais as proposições que são verdadeiras (seja por mera consistência ou seja por implicação lógica).

Outros aspectos que diferenciam as versões da teoria coerentista

A especificação do conjunto é, justamente, o aspecto que afasta os vários teóricos coerentistas, ainda que todos pareçam concordar que as proposições em consideração deverão ser apenas proposições tidas como verdadeiras. Young considera que há três posições delineadas.

A primeira inclui aqueles (como ele próprio) para quem o conjunto C a considerar é o conjunto maximamente consistente daquelas proposições em que os falantes actuais acreditam presentemente. A segunda, é a daqueles (como Putnam) para quem C é o conjunto de proposições no qual pessoas como nós acreditará num limite da investigação. Finalmente, uma última posição seria a daqueles para quem C é o conjunto de proposições no qual um ser omnisciente acreditaria(8). Vejamos algumas diferenças entre estas posições.

A primeira e segunda posições implicam, argumentavelmente, rejeitar o princípio da bivalência (segundo o qual todas as proposições são ou verdadeiras ou falsas), pois admitem que possa ser o caso que algumas proposições, ou as suas contrárias, não sejam coerentes ou incoerentes com qualquer conjunto, não havendo, assim, maneira de determinar o seu valor de verdade; e implicam rejeitar o princípio da transcendência das proposições (segundo o qual há proposições verdadeiras que podem não ser conhecidas como verdadeiras), pois o coerentista destas versões defende que, se qualquer proposição é tida como verdadeira, é porque se diz coerente com um conjunto especificado de proposições e, então, deve poder ser conhecida como coerente com esse conjunto.

A terceira posição não implica a rejeição destes princípios, pois um ser omnisciente que conhece todas as proposições sabe que elas são verdadeiras ou falsas e sabe quais são as verdadeiras e quais são as falsas: não há, para ele, qualquer proposição verdadeira que não seja conhecida como verdadeira (ou falsa conhecida como falsa).

A exposição destas variedades da teoria coerentista, que acabámos de realizar muito esquematicamente, mostra que não há, efectivamente, um corpo doutrinário uniforme. Além disso, as diferentes versões nasceram em autores e momentos diferentes, a partir de preocupações filosóficas distintas. É provável, assim, que os vários argumentos e as diferentes objecções relativas à teoria coerentista não possam ser tomados como respeitantes a todas as versões em simultâneo. Vejamo-los em seguida.

Argumentos a favor da teoria coerentista

Há pelo menos duas linhas de argumentos que podem ser desenvolvidas em favor da teoria: uma, de argumentos metafísicos; outra, de argumentos epistemológicos.

Considerando um primeiro argumento metafísico (atribuível em diferentes medidas a Espinosa, Kant, Fichte e Hegel), a teoria coerentista apresenta-se como uma teoria solidária da tradição idealista segundo a qual, grosseiramente, a “realidade” se identifica com uma colecção de crenças (ou “ideias”) engendradas pela consciência. Não há, nesta tradição, qualquer “realidade” independente de tais crenças, nem, portanto, uma distinção ontológica entre a crença e as suas condições de verdade. Consequentemente, a verdade de uma crença deverá consistir na coerência, em grau variável, com as restantes crenças da colecção.

Outro exemplo de um argumento metafísico, atribuído por Schmitt(9) a Blanshard(10), é o argumento das relações internas, segundo o qual a teoria da coerência está implicada numa ontologia que postula que os objectos nada são, ou não seriam o que são, senão em relação uns com os outros(11). Assim, considerar verdadeira uma crença R acerca de um objecto O implica assumir que essa crença é coerente com outras crenças R* acerca de objectos O* que estão em relação com o objecto O. Um exemplo: se todas as montanhas pressupõem a presença de um vale, e vice-versa então as nossas crenças sobre montanhas deverão ser coerentes com as nossas crenças sobre os vales.

Este argumento baseia-se, obviamente, numa analogia entre as relações existentes entre os objectos do mundo e a relação existente entre as crenças respeitantes a esses objectos. Porém, parece não haver nenhuma razão aduzida em favor desta analogia e o facto de um objecto estar em relação permanente e essencial com outros objectos não garante que as nossas crenças acerca desses objectos sejam verdadeiras: imaginemos que acredito que num certo local existe um vale. No entanto, em virtude de alterações morfológicas do terreno, imaginemos que onde outrora esteve esse vale poderia agora estar uma montanha. Isto tornaria a minha crença falsa, ainda que os vales e as montanhas continuem a sê-lo um em relação ao outro e as minhas crenças acerca de ambos possam ser perfeitamente coerentes. Porém, um partidário da teoria coerentista rejeitaria esta objecção, pois só seria possível dizer que a minha crença é falsa sob um critério não coerentista de verdade (por exemplo, tomando a verdade como correspondência), que seria imediatamente recusado.

Ainda assim, há um erro fatal no argumento e que reside na sua circularidade: as crenças dizem-se coerentes em função das relações internas que os objectos a que respeitam supostamente mantêm entre si; mas a suposição de que os objectos mantêm entre si uma relação interna é igualmente uma crença. Assim, a coerência não se funda nos estados do mundo, como era suposto, mas numa crença na qual é coerente acreditar. Ora, isto é claramente circular.

Hempel(12), Neurath(13), Blanshard(14) e Young(15) contam-se, de acordo com este último(16), entre aqueles que defenderam uma linha de argumentos epistemológicos. Vejamos, concretamente, o modo como Blanshard e Young desenvolvem tais argumentos (se bem que no âmbito de uma análise da relação entre justificação e verdade, a qual excede o escopo destas notas).

O argumento de Blanshard poderá ser esquematizado da seguinte maneira:

O argumento de Young poderá ser esquematizado deste modo:

A primeira objecção — e demolidora, a meu ver — a estes argumentos é a de que ambos são circulares. A primeira premissa da formulação de Blanshard pressupõe justamente o que está em discussão, que é saber se a pertença a um conjunto especificado de proposições é condição necessária e suficiente para que uma proposição seja tomada como verdadeira (porque justificada, vide premissa 2.); o mesmo acontece na quarta premissa da formulação de Young. Este erro comum seria suficiente para recusar os argumentos (que uma inspecção mais atenta mostra serem apenas um, embora formulado de modos distintos). Porém, há outras objecções que, contornando o problema da circularidade, vale a pena tomar em consideração.

A segunda objecção ao argumento é a de que o mesmo, ainda que faça depender a verdade das proposições da sua justificação (e essa justificação da coerência com um conjunto de outras proposições), não responde categoricamente à hipótese de existirem proposições verdadeiras nas quais não haja justificação para acreditar. Esta objecção, que recupera o princípio da transcendência das proposições, ganha sentido na suposição de que os seres detentores de crenças não são seres omniscientes (uma ideia que é partilhada por parte dos teóricos coerentistas, como vimos) e deixá-la sem resposta significa admitir alguma possibilidade de crença em proposições verdadeiras injustificadas, o que parece ser indesejável. É evidente que aquele princípio colide, desde logo, com a teoria coerentista, na qual uma proposição, se é tida como verdadeira, então é porque é coerente com um conjunto de outras proposições verdadeiras, que a justifica. Dizer de proposições que são verdadeiras sem lhes atribuir uma relação de coerência com um conjunto especificado é uma ideia absurda para o coerentista. Ora, insisto nisto: para que uma proposição seja coerente ou incoerente com o sistema, terá de estar em relação com o sistema. E o que acontecerá se não estiver em relação com o sistema (se lhe for transcendente)? A nossa não omnisciência deve fazer-nos admitir que existam proposições das quais não temos consciência. Por que não poderiam tais proposições ser verdadeiras? Não será uma proposição independente de um dado sistema consistente com as proposições desse sistema, tal como mostrámos acima com o exemplo da proposição A (simultaneamente absurda e verdadeira), ou tal como acontece em pares de frases do tipo “O céu é azul” e “A relva é verde”, que, tendo um conteúdo independente, são logicamente consistentes? Isto mostra que a discussão sobre o valor de verdade de proposições transcendentes pode ser decisivo em relação à teoria coerentista.

A terceira objecção — e clássica — face ao argumento é a de saber como a coerência pode garantir o acordo com a realidade. Imaginemos que há justificação para acreditar numa dada proposição, mas que essa proposição é falsa (obviamente, à luz de outro critério que não o proposto pelos coerentistas). Estaríamos, assim, em presença de uma crença numa proposição falsa justificada, uma circunstância indesejada por um defensor da teoria coerentista como teoria de verdade. Mas a assunção de um critério diferente daquele que é proposto pelo coerentista será novamente recusada por este, o que bloqueia esta objecção. O conflito reside no seguinte: por um lado, o detractor da teoria argumenta que, pelo facto de a maior parte ou todas as nossas crenças se co-justificarem (por serem coerentes), não há uma garantia de que não possa haver um erro maciço, devendo considerar-se a possibilidade de serem genericamente falsas; por outro lado, o defensor da teoria ripostará que só um critério de verdade que não o da coerência possibilitará atribuir a falsidade maciça ao nosso “stock” de crenças. Na ausência, ou recusa, desse outro critério e na impossibilidade de apelarmos a um ponto de vista exterior que permita levar a cabo a comparação do nosso “stock” de crenças com os estados objectivos do mundo a que respeitam, para avaliarmos a sua correcção, nada mais resta senão o critério coerentista(17).

Este último argumento em favor da teoria coerentista, numa linha de argumentos epistemológicos, é atribuído a Hempel, Neurath e a Rorty e pode ser esquematizado da seguinte maneira:

Em relação à premissa, podemos entender, à maneira idealista, que essa realidade pura e simplesmente não existe; ou, à maneira céptica, que poderia existir, mas que nos é de todo inacessível. Em qualquer interpretação, o cerne do argumento mantém-se intacto.

A objecção de Davidson(18) a este argumento é a de que se trata de uma falácia do apelo à ignorância. Do facto de alegadamente não podermos saber, a partir de um ponto de vista exterior às nossa crenças(19), se uma dada proposição corresponde a uma realidade, não se segue que essa proposição não corresponda efectivamente a essa realidade. Além disso, daí não se pode igualmente inferir que só a coerência seja um teste de verdade sem incorrer num falso dilema, pois é perfeitamente admissível que haja outros testes ainda. Contudo, como veremos, Davidson verá no teste de coerência um bom indicador de que a proposição avaliada corresponde a factos objectivos.

Objecções à teoria coerentista

Em favor da fluidez desta exposição, no momento em que foram expostas as várias versões da teoria coerentista e os argumentos em seu favor, avancei desde logo algumas objecções à teoria. Estando deslocadas desta secção, não devem ser vistas, por isso, como objecções menores.

Uma objecção que imediatamente se colocou à teoria coerentista (e que agora retomo), é a que sublinha que duas proposições que não pertençam ao mesmo conjunto de proposições poderiam ser, respectivamente, coerentes com diferentes conjuntos de crenças e, por isso, deveriam ser tomadas como verdadeiras, podendo, ainda assim, serem inconsistentes entre si. Esta objecção está intimamente ligada à primeira das seguintes quatro linhas de objecções a que a teoria coerentista não é, podemos defender, imune — a objecção da especificação, atribuída a Russell(20). De acordo com a mesma, não há um critério que permita especificar o conjunto de crenças no seio do qual uma certa crença é avaliada como coerente com todas as outras. Vejamos o seguinte exemplo:

  1. “Amália Rodrigues foi enforcada.”
  2. “Amália Rodrigues morreu deitada na sua cama.”

Estamos inclinados a crer em 2 face à teia de crenças engendrada pela informação de que dispomos; mas 1 é coerente com um certo conjunto de crenças e, por isso, poderia ser aceite como verdadeira, embora seja incompatível com 2 e, em geral, com as nossas crenças actuais sobre a forma como Amália faleceu. O que nos impele a rejeitar 1 é o conjunto de crenças que partilhamos. Mas partilhado outro conjunto de crenças, 1 poderia não ser rejeitada. Qual o critério para especificar o conjunto correcto à luz do qual as crenças 1 e 2 são avaliadas? Russell argumenta que não parece existir um tal critério.

As linhas de contra-objecção a este argumento poderiam ser duas: primeira, admitir que 2 é coerente com os factos; segunda, alegar que o conjunto que integra 2 é mais alargado do que aquele que integra 1. Mas a primeira linha parece abrir mão em favor da teoria correspondentista; e a segunda parece implicar a medição de crenças e conjuntos de crenças, sem que se veja como tal coisa poderia ser levada a cabo. A ideia de impossibilidade de medição de crenças tem duas vertentes: por um lado, uma vez que dispomos de um repertório quase infinito de proposições em que acreditamos, parece impossível medir a quantidade dessas crenças, de modo a fundamentar a alegação de que 2 integra um conjunto mais vasto; por outro lado, a medição pode ser entendida como uma avaliação da relevância das crenças, mas isto não traz problemas menores. Como medir a relevância das crenças?

A segunda objecção é a objecção da regressão, atribuída a Walker(21): os teóricos coerentistas parecem estar comprometidos com a verdade de proposições como “acredita-se em C” (em que C é um conjunto de proposições). Mas em virtude de que é que esta proposição é ela mesma tida por verdadeira? A resposta poderia ser “acredita-se em “acredita-se em C”” é verdadeira. Mas isto inicia obviamente uma regressão infinita, que só poderia talvez ser interrompida apelando a factos, justamente o que o coerentista não quer admitir. Dito de outro modo, o problema que a teoria enfrenta com esta objecção é o seguinte: a crença no “stock” de crenças C é, ela mesma, uma crença pertencente ao “stock”? Se não é, a sua justificação não pode ser feita em termos de coerência — como justificá-la sem apelar a factos? Se é, como justificá-la sem incorrer numa regressão?

Uma linha de contra-objecção a este argumento seria a que defenderia que nada há de incoerente em pensar-se que há um facto acerca do qual se acredita numa proposição; simplesmente, as condições de verdade dessa proposição não são um tal facto, mas sim as outras proposições com as quais esta é coerente.

Em terceiro lugar, temos a objecção da transcendência, que já foi apresentada atrás: pode supor-se que há verdades que não são coerentes com nenhum conjunto de proposições, isto é, que transcendem qualquer conjunto de crenças.

Uma contra-objecção baseada na já referida ideia de um ser omnisciente seria imune a esta objecção, posto que um ser omnisciente sabe se uma dada proposição é, ou não, verdadeira. Outra contra-objecção alegaria que a objecção de transcendência em nada ofende a teoria coerentista: nesta, uma proposição é verdadeira se, e somente se, for coerente com um conjunto especificado de proposições — proposições sem relação com o conjunto não preocupam o coerentista. O que a objecção da transcendência introduz é a ideia de que há frases cujo valor de verdade fica, eventualmente, indeterminado pelo facto de transcenderem uma avaliação de coerência com qualquer conjunto de proposições. Ora, é fortemente contra-intuitivo que um tal tipo de frases constitua a maioria das crenças dos seres humanos.

Resta-nos a quarta objecção, a objecção das proposições “instáveis” justificadas, segundo a qual há proposições que um sujeito tem justificação em crer, num dado momento, mas que, à luz de novas informações, podem cessar de ser justificadas. Schmitt(22) fornece-nos o seguinte exemplo: imaginemos que ao aproximar-me de uma torre, e a uma certa distância, tenho razões para crer que a torre tem a forma de um paralelepípedo. Porém, quando mais próximo e na posse de melhor informação visual, abandono a crença anterior e acredito agora que a torre que estou a ver tem uma forma cilíndrica. Que nos mostra este exemplo? Em primeiro lugar, que a justificação das crenças é instável. Em segundo lugar, que as teorias que assentam a verdade na justificação estão sujeitas a falhas relativas à fiabilidade da informação disponível para justificar uma crença. E assim, se a teoria coerentista de verdade é uma teoria deste tipo, deve ser considerada a objecção segundo a qual um “stock” de crenças com o qual certa proposição é coerente pode ser uma justificação instável ou insuficiente para tomar a crença como verdadeira. Uma modalidade desta objecção tinha já sido discutida na secção anterior, quando foi avançada a hipótese das proposições falsas justificadas.

Em conclusão, constata-se que teoria coerentista é uma teoria sujeita a objecções de índole diversa. As suas fraquezas estão talvez, nestas notas, mais expostas do que os seus pontos fortes, os quais só se tornariam mais visíveis caso outras teorias de verdade e justificação tivessem sido abordadas e contrastadas com idêntico detalhe. Há, no entanto, uma versão da teoria coerentista que nos merece um especial destaque: a de Donald Davidson. O facto de Davidson ter defendido uma versão da teoria não faz dele um teórico coerentista, havendo quem veja(23) em Davidson uma posição muito peculiar, dificilmente filiável numa ou noutra “escola”, mesmo a coerentista. Vejamo-la de seguida.

3. A versão davidsoniana da teoria coerentista

O ensaio que servirá de pano de fundo à nossa apresentação da versão davidsoniana da teoria coerentista será “A Coherence Theory of Truth and Knowledge”(24).

A versão davidsoniana da teoria coerentista parece poder resolver parte das objecções tradicionais à teoria coerentista de verdade. Para isso, a estratégia de Davidson assenta na distinção subtil entre correspondência e confrontação. A coerência de uma frase, tida como verdadeira, com a maior parte das frases tidas como verdadeiras de um dado conjunto é um indicador de que tal frase deve corresponder aos factos objectivos a que respeita. Porém, se bem que a coerência produza, assim, correspondência (ou uma elevada probabilidade de correspondência), tal correspondência não exige confrontação com a realidade. Davidson tem consciência das dificuldades enfrentadas por todos os programas que quiseram estabelecer os factos de um mundo objectivo como condições de verdade de proposições, dificuldades sentidas ao nível das explicações dadas acerca do modo como confrontar tais proposições com o mundo (atendendo à impossibilidade, sublinhada por Neurath, Hempel e Rorty, de sairmos da nossa teia de crenças para as comparar, a partir de um ponto de vista “exterior” com o mundo a que respeitam), ou dificuldades sentidas ao nível de uma explicação satisfatória acerca do acesso a um tal mundo. Admitindo, no âmbito da sua posição externista, que o mundo tem uma conexão causal com as nossas crenças, Davidson sublinha que uma tal conexão não pode ser confundida com a justificação das crenças. Assim, recusa sucessivamente a tradição empirista de justificar as crenças com base nos dados dos sentidos (sensação, percepção, etc.) ou nalgum outro intermediário epistémico/causal; recusa que os enunciados observacionais sejam justificados por padrões de estimulação sensorial (Quine); e recusa, em geral, quaisquer teorias que confundam vinculação causal com justificação.

A ancoragem de uma teoria da verdade numa teoria do significado também enfrenta dificuldades, pois, mesmo que conhecer o significado de uma frase implique conhecer as condições em que a frase pode ser reconhecida como verdadeira, é ainda necessário especificar qual o critério de justificação da asserção de tais frases. Davidson perfilha a ideia de que a teoria coerentista fornece uma explicação satisfatória para a justificação:

[...] all that counts as evidence or justification for a belief must come from the same totality of belief to which it belongs.(25)

Em contrapartida, soluções como as de Quine ou de Dummett, que pretendem ancorar a justificação das frases, em última instância, a “rochedos não-verbais”, são dadas como insatisfatórias.

Finalmente, Davidson argumenta em favor de uma solução segundo a qual é ininteligível compreender correctamente as crenças (e os desejos, as intenções, o discurso dos falantes), supondo simultaneamente que todas essas crenças são falsas ou maioritariamente falsas. Pelo contrário, se comunicamos (ou mesmo se apenas tentamos comunicar ou, ainda, se apenas pensamos que comunicamos) com outros falantes, então deveremos saber o que é uma crença, como a detectar e como a interpretar, e deveremos supor que os outros falantes o fazem também. É irracional supor que cada falante que quer (ou pensa querer) que as suas frases sejam compreendidas (interpretadas) esteja, em simultâneo, a defraudar sistematicamente os seus intérpretes sobre o assentimento que dá a frases que tem por verdadeiras. Pensar assim é contraditório: se o assentimento dado a uma frase depende 1.º) daquilo que se quer dizer com a frase e 2.º) daquilo que se acredita acerca do mundo, a ideia de fraude sistemática significa que um falante, ao dizer o que quer dizer, não queira dizer o que quer dizer; ou significa que um falante, ao dar o assentimento a proposições sobre o mundo, está a assentir proposições que não acredita serem verdadeiras acerca do mundo. Este princípio é conhecido como o princípio de caridade: um falante só é inteligível se supusermos a sua consistência e correcção, com base nas quais, então, julgamos a diferença e o erro. É em favor da suposição de que os falantes intentam uma compreensão mútua que este princípio é sustentado: se os falantes não supusessem que outros falantes apenas dão assentimento habitual às frases que crêem ser verdadeiras, então por hipótese não queriam compreender-se mutuamente. Mas é um dado da vida que os falantes se compreendem e querem compreender-se mutuamente (embora nem sempre o consigam, naturalmente). Logo, os falantes devem supor que os falantes não estão a ser defraudados sistematicamente pelos outros falantes. Estas considerações subsidiam a teoria davidsoniana da interpretação radical.

Assim, não resta senão uma intuição forte de que as nossas crenças sejam coerentes e maioritariamente verdadeiras, o que milita também a favor da presunção de que cada crença particular seja igualmente verdadeira, na medida em que seja coerente com as restantes. A causalidade desempenha aqui algum papel: se há uma conexão causal entre o mundo e as nossas crenças, essa conexão causal joga a favor da ideia de que as crenças dos outros falantes, sendo causadas pelos mesmos acontecimentos do mundo, sejam semelhantes às minhas crenças. É com base neste suposto incontornável que nos podemos interpretar mutuamente e instituir uma comunicação pública.

Porém, persiste uma dificuldade: por que não poderá ser o caso que um falante e um intérprete comuniquem e se compreendam mutuamente com base em crenças erróneas (por exemplo, sem que saibam ser erróneas)? O facto de um falante ser sincero — como é sustentado pelo princípio de caridade — não garante que suas crenças sejam verdadeiras. Portanto, o mesmo princípio deve poder não só dar conta da sinceridade que torna possível a sua interpretação, como fornecer uma garantia de verdade.

Davidson aceita que possa acontecer que um falante e seu intérprete comuniquem com base em crenças erróneas, mas sublinha que tal não poderá ser a regra. Para demonstrá-lo, introduz o argumento do intérprete omnisciente. Vejamos este argumento mais em detalhe, partindo da formulação que Davidson lhe dá em “A Coherence Theory of Truth and Knowledge”. Para tal, consideremos três pessoas: um falante falível (isto é, não omnisciente), um intérprete falível do falante falível e um intérprete omnisciente do falante falível. Tanto o intérprete falível como o intérprete omnisciente — cuja existência actual é irrelevante para a força do argumento — dispõem apenas de uma base empírica, “behaviourista”, para interpretar o falante, isto é, não podem aceder a significados existentes, hipoteticamente, na mente do falante(26). Como procedem os intérpretes desse falante? O intérprete falível avalia as asserções do falante de acordo com o princípio da caridade, considerando que as asserções do falante são largamente consistentes e correctas (recordemos que não poderia ser de outro modo: o erro só emerge à luz de um pano de fundo de ampla correcção); o intérprete omnisciente, “usando o mesmo método do intérprete falível”(27), considera igualmente que as asserções do falante são largamente consistentes e correctas. Mas o padrão de avaliação usado pelo intérprete omnisciente é objectivamente correcto. Logo, a consistência e correcção do falante terão de ser consistência e correcção objectivas. Assim, Davidson conclui que “é impossível sustentar correctamente que alguém possa estar errado na generalidade acerca de como as coisas são”(28) e esta ininteligibilidade do erro maciço assegura, então, a correspondência, de acordo com o que Davidson tinha proposto no início do seu ensaio, não implicando aquele tipo de confrontação que enreda muitas teorias da verdade em problemas difíceis de superar.

Porém, não poderia ainda ser o caso que este argumento apenas sustente a ininteligibilidade do desacordo maciço, em vez da ininteligibilidade do erro maciço?

A resposta de Davidson é negativa e Carpenter salienta-o deste modo:

[...] Since, on one hand, the omniscient interpreter necessarily “finds the fallible speaker largely consistent and correct” and, on the other, the omniscient interpreter is omniscient and thus his standards are “objectively correct”, the conclusion seems to follow that the speaker's beliefs must actually be by and large “objectively correct”, i.e. largely true.(29)

Eis, então, demonstrada a ideia de que a maior parte das nossas crenças, além de coerentes entre si, devem corresponder aos factos objectivos do mundo, isto é, serem verdadeiras. A teoria de Davidson fornece-nos, assim, um critério de verdade, se bem que, como noutros casos, no seio de uma discussão que não é apenas alusiva ao tópico da verdade.

4. Considerações finais

Naturalmente que os detalhes do argumento não foram por nós focados. Para o caso, bastará sublinhar, com Malpas(30), que há uma forte motivação de Davidson para rejeitar o cepticismo, quer com o argumento do intérprete omnisciente que esquematizámos, quer com argumentos posteriores (como o argumento da triangulação), e que o sucesso da estratégia argumentativa empreendida requer que tomemos em consideração, simultaneamente, vários elementos do aparato doutrinal davidsoniano: o princípio de caridade, o externismo, a solidariedade entre atribuição de crenças e determinação de sentidos, etc. Para os objectivos que movem estas notas, parece-nos isto ser suficiente.

Que vantagens exibe a versão davidsoniana da teoria coerentista face às versões apresentadas anteriormente?

Por um lado, Davidson não necessita de especificar qual o conjunto de proposições com o qual cada proposição é comparada. O princípio de caridade assegura que deve ser verdadeira aquela proposição a que um falante dá assentimento nas mesmas circunstâncias em que nós, enquanto seus intérpretes (mas também enquanto falantes interpretados), damos o assentimento a tais proposições. Isto possibilita atribuir crenças e, simultaneamente, determinar o significado das asserções dos falantes com os quais comunicamos. Nas palavras de Davidson, tais crenças são “largamente consistentes e correctas”.

Em segundo lugar, a versão davidsoniana escapa às objecções relativas à necessidade do apelo a factos para justificar proposições — tal justificação encontra-se, como vimos, não nos factos, mas no “stock” de proposições coerentes em que acreditamos. Contudo, isto não exige negar a existência de um mundo objectivo ao qual tais proposições correspondam. A posição de Davidson, que combina uma perspectiva coerentista com uma perspectiva correspondentista (fazendo depender esta daquela), é uma posição híbrida que admite que as crenças são causadas por factos ou eventos do mundo, embora não sejam justificadas por esses factos ou eventos. A ideia de correspondência sem confrontação permite, ainda, dispensar todo um aparato epistémico que foi o alvo das críticas cépticas e envolveu, como dissemos, muitas filosofias em dificuldades (segundo Davidson, o próprio Quine enredou-se em tais dificuldades).

Por último, a objecção da transcendência perde alguma força à luz do argumento do intérprete omnisciente. Se bem que sejamos, enquanto seres cognitivamente limitados, intérpretes falíveis dos falantes com quem comunicamos, o modo pelo qual interpretamos esses falantes é essencialmente o mesmo pelo qual um intérprete omnisciente interpreta os mesmos falantes. Como este intérprete considera largamente correcto o falante, a nossa interpretação tem de ser vista como largamente correcta também. O facto de não sermos omniscientes e de, portanto, haver proposições que não está ao nosso alcance saber se são verdadeiras ou falsas, torna-se irrelevante no contexto da versão davidsoniana da teoria coerentista, se bem que não fique cabalmente resolvido.

Davidson não está estritamente comprometido com uma teoria coerentista da verdade — a sua versão da teoria serve fins mais amplos no seu pensamento — e, por conseguinte, a sua peculiar posição escapa a muitas das objecções dirigidas àquela teoria. Por outro lado, não sendo a versão davidsoniana uma teoria coerentista “pura”, muitos dos argumentos contra a teoria coerentista carecem de uma resposta filosoficamente mais robusta pelos partidários da mesma.

António Paulo Costa

Referências

Notas

  1. Agradeço a António Zilhão (Faculdade de Letras de Lisboa/Departamento de Filosofia) as correcções e sugestões que em muito beneficiaram este texto e a minha compreensão dos problemas filosóficos aqui envolvidos.
  2. Veja-se, por exemplo, SCHMITT, Frederick, Truth: a primer, Boulder—San Francisco—Oxford, Westview Press, 1995, pp. 1–4; HORWICH, Paul, “Teorias da verdade”, in Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos, org. por João Branquinho e Desidério Murcho (Gradiva, 2001).
  3. SCHMITT, op. cit., p.3.
  4. Pode argumentar-se que há uma atitude proposicional num cão que, ouvindo o dono mexer no seu prato de comida, dele se aproxima. Neste caso, o cão poderia ser descrito como crente na verdade da proposição “Há comida no prato”, ainda que o animal não disponha de um aparato linguístico ou mental que lhe permita enunciar aquela frase.
  5. Esta é, aproximadamente, a formulação geral da teoria que surge em SCHMITT, op. cit., p.104.
  6. YOUNG, James, “A Coherence Theory of Truth”, in Stanford Encyclopedia of Philosophy, https://plato.stanford.edu/, 1997.
  7. Ibid.
  8. Ibid.
  9. SCHMITT, op. cit., p.105.
  10. BLANSHARD, Brand, The Nature of Thought (Vol.2), Nova Iorque, MacMillan, 1941.
  11. Uma tal ontologia é exemplificada pela doutrina leibniziana das mónadas.
  12. HEMPEL, C., “On the Logical Positivists' Theory of Truth”, Analysis 2, pp.49-59, 1935.
  13. NEURATH, O., Philosophical Papers 1913-46, eds. Robert S. Cohen and Marie Neurath, D. Reidel, Dordrecht and Boston, 1983.
  14. BLANSHARD, op. cit.
  15. YOUNG, J.O., Global Anti-realism, Avebury, Aldershot, 1995.
  16. YOUNG, James, “A Coherence Theory of Truth”, in Stanford Encyclopedia of Philosophy, https://plato.stanford.edu/, 1997. Vide igualmente SCHMITT, op. cit., p.106.
  17. é interessante assinalar aqui a existência de uma tensão que poderia ser classificada como uma modalidade da disputa realismo/anti-realismo.
  18. Referida por YOUNG, op. cit.
  19. Também em várias passagens do seu The Last Word (trad. portuguesa: A última Palavra, Lisboa, Gradiva, 1999), Thomas NAGEL denuncia a contradição que consiste em admitir a premissa do argumento: para defendê-la, o seu defensor terá de o fazer a partir “de fora” da sua teia de crenças. Não se vendo por que seria ele o único a deter um tal privilégio, a defesa da premissa é uma contradição performativa; em alternativa, se considerarmos que a premissa exprime uma crença pertencente ao “interior” de uma teia de crenças, o argumento incorre numa petição de princípio.
  20. RUSSELL, B., “On the Nature of Truth”, in Proceedings of the Aristotelian Society 7, 1907, pp. 228-49.
  21. WALKER, R.C.S., The Coherence Theory of Truth: Realism, anti-realism, idealism, Routledge, London and New York, 1989.
  22. SCHMITT, op. cit., p.112.
  23. A este título, veja-se o ensaio de CARPENTER, Andrew, “Davidson's Externalism and the Unintelligibility of Massive Error”, in Disputatio, Revista Internacional de Filosofia Analítica, n.º4, Lisboa, SPF/Gradiva, Maio de 1998, p.29, nota 1.
  24. DAVIDSON, Donald, “Uma Teoria Coerentista da Verdade e do Conhecimento”, in Carrilho, M.M. e Sáàgua, J. (orgs.), Epistemologia: posições e críticas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1991, pp.327-360. Tradução portuguesa de João Sáàgua.
  25. CARPENTER, op. cit., p.29, nota de rodapé n.º1, referindo-se a DAVIDSON, Donald, “Afterthoughts to “A Coherence Theory of Truth and Knowledge"”.
  26. Note-se que mesmo um intérprete omnisciente sabe tudo o que há a saber apenas acerca do mundo e daquilo que causa, ou pode causar, o assentimento do falante a uma frase, mas, enquanto intérprete, não pode proceder de modo diverso do do intérprete falível, face às asserções do falante — caso pudesse, o seu estatuto de intérprete perderia o sentido.
  27. DAVIDSON, Donald, “Uma Teoria Coerentista da Verdade e do Conhecimento”, in op. cit., p. 354
  28. Ibidem, p.355.
  29. CARPENTER, op. cit., p.34.
  30. MALPAS, Jeff, “Donald Davidson”, in Stanford Encyclopedia of Philosophy, https://plato.stanford.edu/, 1998.
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