×
Receba a Crítica por email para não perder as novidades. Clique aqui
Menu
Facebook
15 de Maio de 2007   Filosofia

Filosofia edificante?

Rui Daniel Cunha
What’s the Use of Truth?
de Richard Rorty e Pascal Engel
Nova Iorque: Columbia University Press, 2006, 79 pp.

Eis um livrinho pequenino, mas extremamente interessante em termos filosóficos: trata-se de um debate acerca do conceito de verdade, entre Richard Rorty, um dos filósofos contemporâneos mais importantes — embora polémico — e Pascal Engel, professor na Universidade de Genebra e conhecido filósofo analítico francês. Resulta de um debate entre ambos na Sorbonne, em Novembro de 2002, que vem agora a público na versão inglesa, com revisões dos autores aos textos em francês anteriormente publicados em 2005.

Rorty é um pensador especialmente preocupado com a metafilosofia, ou seja, a investigação filosófica da própria filosofia, o que o torna um filósofo particularmente interessante para todas as pessoas que se interessam pela velha e tradicional questão “O que é a filosofia?”. A principal tese de Rorty é que se torna hoje necessária uma transformação radical da filosofia: de uma filosofia sistemática, concepção que ele critica, para uma filosofia edificante, cuja apologia ocupa boa parte da sua famosa obra A Filosofia e o Espelho da Natureza. O primeiro modelo de filosofia — sistemática — tentava encontrar uma verdade absoluta, fora da história, fora do sujeito e fora da linguagem, procurando constituir-se como uma disciplina fundacional do saber (um “tribunal da razão”, na expressão de Kant), capaz de atingir a essência da realidade. Mas tal filosofia, argumenta Rorty, é incapaz de atingir esse conhecimento absoluto da realidade, pelo que Rorty sustenta que a filosofia sistemática deve ser substituída por um novo paradigma de filosofia — a edificante — de matriz conversacional e não tanto demonstrativa; irónica e contingente, já sem qualquer pretensão de atingir essa perspectiva absoluta que é o “ponto de vista de Deus” e alcançar a verdade eterna, o conhecimento absoluto. O pragmatismo de William James e especialmente de John Dewey, a quem Rorty faz constantemente referência, pode aqui ser entendido como uma fonte de inspiração para esta nova “filosofia edificante”, destinada a substituir modestamente, na óptica de Rorty, as pretensões irrealizáveis da “filosofia sistemática”. A nova missão da filosofia, redefinida “à la Rorty”, é a de relacionar e comparar os vários tipos de discursos que é possível produzir acerca da realidade, para “continuar a conversa” da humanidade em busca da sua própria auto-realização. É com este “pano de fundo” metafilosófico que temos de compreender as posições epistemológicas de Rorty.

Mas comecemos pela intervenção inicial de Pascal Engel. Aí Engel defende (páginas 25 e 26) três teses absolutamente fundamentais acerca da verdade: a tese conceptual, segundo a qual a verdade é uma norma constitutiva dentro do triângulo crença-asserção-verdade; a tese ética, segundo a qual a verdade tem um valor intrínseco e tem que ser procurada e respeitada em todas as circunstâncias (daqui decorre o princípio ético segundo o qual não devemos mentir); e a tese epistemológica, segundo a qual a verdade é o objectivo da investigação e o valor epistémico supremo (daqui decorre o princípio epistémico segundo o qual só devemos acreditar numa proposição se for verdadeira). Ao defender tais teses, Engel critica aqueles a quem chama “verófobos” — literalmente, com fobia à verdade — isto é, todos aqueles (pós-modernistas, relativistas, etc.) que acreditam que “verdade” é uma palavra vazia; e entre os quais estaria, naturalmente, Rorty.

Centremos a nossa atenção, então, em Rorty: se todo o conhecimento é uma busca da verdade e se não existe verdade, então, por modus tollens, não existe conhecimento: estaremos diante de um niilismo epistemológico, de um cepticismo, de um relativismo radical? Será que Rorty defende a “morte da epistemologia?”

Na sua primeira intervenção, e a propósito do debate realismo contra anti-realismo, que Engel considerara ser fundamental na filosofia analítica contemporânea, Rorty defende que este é um exemplo de “escolástica estéril”, típica — segundo ele — de tal género de filosofia. Rorty subscreve assim a tese pragmatista de William James segundo a qual se um debate não tem significado prático então não tem significado filosófico. A este propósito, Rorty observa que a verdadeira disputa importante não é o debate entre o realismo e o anti-realismo acerca da verdade, mas antes o debate entre aqueles que acham importante a questão do realismo contra o anti-realismo (os filósofos analíticos, por exemplo) e aqueles que consideram que é tempo de abandonar tal género de questões (como é o caso do próprio Rorty). O argumento de Rorty para justificar a sua preferência pela outra tradição filosófica — a continental, de Sartre, Heidegger, Derrida, etc. — é o de que esta “está menos exposta ao risco do escolástica” (p. 35). Aí não podemos, contudo, deixar de objectar a Rorty que a tradição filosófica continental está muito mais exposta ao risco da obscuridade, da retórica pseudoliterária e, no limite, da fraude intelectual, como o famoso caso Sokal tão bem demonstrou.

Uma tese central de Rorty é-nos dada de seguida: Rorty considera que aquilo que une os filósofos pós-modernistas a filósofos de raiz analítica, como Davidson, Robert Brandom e o último Wittgenstein, é a

“rejeição da ideia de que alguns tipos de discurso, algumas partes da cultura, estão em contacto mais próximo com o mundo, ou se ajustam melhor ao mundo, do que outros tipos de discurso. Se se abandona esta ideia, então considera-se cada discurso — crítica literária, história, física, química, jargão de canalizador — como estando ao mesmo nível no que toca à relação com a realidade” (p. 36 ).

Esta tese de Rorty é francamente discutível: não será a ciência, por exemplo, uma descrição superior da realidade em comparação com a astrologia ou o tarot? Mas Rorty insiste e considera mesmo que o que o separa de Pascal Engel é justamente a questão de saber se certas áreas da investigação atingem um tal conhecimento mais adequado da realidade ou não: Engel acha que sim, Rorty defende que não. Rorty adianta então que, para um pragmatista como ele, “as questões da metafísica e da epistemologia podem ser esquecidas porque não têm utilidade social” (p. 38). Não porque sejam desprovidas de sentido, como defenderam no passado os positivistas lógicos (pelo menos no que respeita à metafísica), mas sim porque o seu vocabulário não tem uso prático. Assim, no fundo, Rorty defende que a verdade é um conceito acerca do qual é inútil teorizar. Logo, a única forma de evitar um cepticismo radical acerca da verdade em geral é aceitar as “verdades” banais do senso comum (por exemplo, “esta garrafa de água está em cima da mesa”) — e o paralelismo com o Wittgenstein das Investigações Filosóficas, dissolvendo os problemas filosóficos através da sua recondução aos jogos de linguagem correntes é aqui inescapável. Subjacente a esta posição de Rorty está o seu anti-representacionismo, isto é, a rejeição da tese segundo a qual o conhecimento é uma questão de representação — mental ou linguística — da realidade. É nestes termos que o fim do representacionismo representa o fim da filosofia centrada na epistemologia. Rorty conclui que, desde Platão,

“os sentidos dos termos normativos “bom”, “justo” e “verdadeiro” só têm sido problemáticos para os filósofos — todas as restantes pessoas sabem como usá-los e não necessitam de uma explicação do seu sentido” (p. 45).

Deste modo, a questão da natureza da verdade não é, para Rorty, uma questão premente, nem sequer importante ou interessante.

Então o que é afinal importante para Rorty? Para ele o que é absolutamente fundamental é reinterpretar o conceito de responsabilidade, e não o de verdade: um pragmatista não acredita que tenhamos responsabilidades para com quaisquer entidades não-humanas, como a verdade. Rorty considera, em suma, que a crença na verdade é um mero substituto da crença em Deus: já não é o famoso “Deus é o substituto do Pai”, “à la Freud”, é sim, por assim dizer, “a Verdade é o substituto de Deus” (p. 40). Daí a obrigação que sentimos ter para com ela. Será este insight psicológico de Rorty a solução do problema filosófico da verdade? Sinceramente, não creio. A posição de Rorty é constantemente a de tratar a verdade como um conceito primitivo, inanalisável, acerca do qual é inútil qualquer teorização filosófica — daí a consequente “morte da epistemologia” — mas relevante para justificar crenças e comportamentos comuns socialmente importantes. Mas esta é uma pseudo-solução: os problemas filosóficos não se abolem por decreto. Pese embora Rorty, que considera muito mais importante a reflexão acerca dos conceitos de “responsabilidade”, “solidariedade” e “democracia”, por exemplo, a epistemologia continua viva e os seus problemas reais continuam a necessitar de reflexão filosófica.

Rui Daniel Cunha

Copyright © 2023 criticanarede.com
ISSN 1749-8457