Um encontro com uma das mais surpreendentes reviravoltas da vida intelectual europeia do século XX, é o que nos propõe Richard Wolin, um historiador das ideias da City University de Nova Iorque, neste, agora editado em paperback (a edição original é de 2004). Os trabalhos de Richard Wolin, oriundo do movimento da New Left dos anos 60, e que se define como um pensador liberal no sentido norte-americano da palavra (ou seja, não conservador), já deixaram um rasto de polémica e muitos intelectuais pós-estruturalistas e pós-modernistas da Europa e América do Norte, à beira de um ataque de nervos (sobretudo o entretanto falecido Jacques Derrida). Quando falamos em pós-estruturalismo ou pós-modernismo, estamos a referir-nos a uma corrente intelectual ampla e heterogénea que se caracteriza, essencialmente, pela oposição aos ideais racionalistas, humanistas e universalistas do Iluminismo, pela crítica ao conhecimento científico considerado uma forma de poder e de opressão ao serviço da democracia liberal-capitalista, pela desvalorização da racionalidade, pela sustentação do relativismo cultural da verdade e pela defesa das políticas de identidade.
Richard Wolin dividiu a sua abordagem em duas partes. A primeira é dedicada ao que designa como a “ideologia alemã”, ou seja, o contra-iluminismo, empenhado na rejeição da crença na razão e na verdade universal, da possibilidade de progressão social e política pelos valores do liberalismo e da democracia e na negação do humanismo universalista iluminista do século XVIII. Aqui, Wolin analisa sobretudo as ideias e o percurso pessoal e político de pensadores como Nietzsche, Jung, ou Gadamer, efectuando também o que este chama uma “excursão política” sobre o pensamento da nova direita alemã. Insere ainda um capítulo dedicado especificamente à recepção pós-moderna de Nietzsche na América do Norte, após a “escala técnica” feita em França, onde adquiriu roupagens pós-estruturalistas, com o sugestivo título de “Zaratustra vai para Hollywood” (uma alusão irónica ao livro Assim Falava Zaratrustra, de Nietzsche). Neste capítulo, põe em causa o uso selectivo e/ou as omissões deliberadas dos aspectos mais incómodos e comprometedores do pensamento de Nietzsche, usado e abusado pelos nazis como uma espécie de “filósofo da corte”, mas que nos textos dos pós-estruturalistas franceses e seus seguidores (os casos de Michel Foucault e Jaques Derrida são talvez o melhores exemplos), surge com uma imagem “desnazificada”, quase angélica, como um espírito sublime com meras preocupações estéticas e de crítica cultural e social, alheado dos meandros terrenos da política de poder (machtpolitik).
Na segunda parte, Wolin aborda o que chama as “lições francesas” e a viagem da “ideologia alemã” para a outra margem do Reno, ou seja, a deslocação do contra-iluminismo com “a crítica da razão, da democracia e humanismo, que teve origem na direita alemã dos anos 20”, para França, pela via, bastante insólita, de parte da esquerda intelectual e política francesa, que se apropriou e interiorizou essas ideias. A análise de Richard Wolin incide sobre os pensadores que, segundo este, tiveram um papel central nessa “transmutação” de ideias reaccionárias e próximas de ideologias totalitárias de direita — fascismo e nazismo — em ideias que passaram a ser apresentadas como “progressistas”, “democráticas” e de esquerda. Esses pensadores foram Georges Bataille, Maurice Blanchot e Paul de Man, passando pela influência filosófica de Martin Heidegger, para culminar no desconstrucionismo de Jacques Derrida e nas implicações do seu relativismo extremo sobre a própria ideia de verdade e de justiça. Há também uma segunda “excursão política”, agora sobre o pensamento da nova direita francesa da Frente Nacional de Le Pen e seus seguidores. O que se torna perturbante ao longo da leitura do livro é a evidenciação das similitudes filosófico-políticas entre o actual pós-modernismo e as suas pretensões de crítica e superação da modernidade, e muitas das ideias dos intelectuais “protofascistas” dos anos 20 e 30, que aderiram a ideologias totalitárias, e que pretendiam erradicar a democracia parlamentar e o liberalismo, revelando a existência de um vasto “património negro” habitualmente omitido ou “embelezado” pelos seus adeptos.
Indubitavelmente desconcertante é ver como a ideia de uma esquerda tradicionalmente universalista, herdeira do iluminismo e da revolução francesa, baseando os seus ideais e reivindicações sociais e políticas nas noções de razão, verdade, direitos humanos, justiça e democracia e que estava na linha da frente da luta contra o obscurantismo, se perdeu na nebulosa do pós-estruturalismo/pós-modernismo. Ao assimilar, entre outras influências, o “perspectivismo” de Nietzsche (bem expresso no dito “não há factos, só há interpretações”) parte do pensamento de esquerda — a chamada “nova esquerda pós-marxista” — pretendeu relativizar as normas sociais e/ou jurídicas da sociedade liberal-burguesa, denunciando-as como expressão de interesses particulares ou relações de poder que arbitrariamente favorecem alguns povos, culturas ou grupos sociais em detrimento de outros. Com este fundamento filosófico e epistemológico os “progressistas pós-modernistas” consideram-se em posição de “desconstruir” as normas dos grupos dominantes, ou privilegiados socialmente, e denunciar a hipocrisia social que lhe está subjacente, proclamando, em alternativa, que todas as “culturas são boas”. Além do impasse ético e do bloqueio da acção política a que este tipo de ideias tendencialmente leva (o que, só por si, já é negativo) é também óbvio que o mesmo procedimento corrosivo pode ser aplicado aos ideais verdadeiramente progressistas, como os direitos humanos. Se os virmos sob o prisma do pós-modernismo chegamos à conclusão que são uma expressão da cultura ocidental (o ideário liberal contido nas revoluções francesa e americana) e de uma vontade de poder do ocidente, que pretende impor a “hegemonia cultural” denunciada por Gramsci, não havendo, por isso, razão sólida para que outras culturas os adoptem. Isso é o que dizem também os ideólogos do islamismo radical, como Mawdudi e Qutb. É o que faz também a Organização da Conferência Islâmica, com a sua Declaração dos Direitos Humanos no Islão, que não são os da Declaração Universal das Nações Unidas.
José Pedro Teixeira Fernandes