As teorias da verdade investigam a verdade como propriedade das nossas ideias e do nosso discurso. Atribuímos a verdade e a falsidade a uma imensa diversidade de denominados portadores de verdade: itens linguísticos (frases, elocuções, afirmações e asserções), itens abstractos (proposições) e itens mentais (juízos e crenças). Qual é a propriedade que estamos atribuindo quando dizemos que um portador de verdade é verdadeiro? Esta pergunta é crucial devido à presença da verdade em teses filosóficas centrais: por exemplo, diz-se amiúde que a verdade é o objectivo da ciência, que o significado de uma frase é dado pelas condições em que é verdadeira,1 que a validade lógica é a preservação da verdade, ou que as afirmações éticas não são verdadeiras nem falsas. Uma compreensão adequada da verdade promete iluminar questões fundamentais em metafísica, filosofia da linguagem, lógica e ética.
As duas teorias tradicionais da verdade são a teoria da correspondência e a teoria da coerência. Depois de finais do século XIX, emergiram outras teorias da verdade, destacando-se a teoria pragmatista, a teoria identitativa e a teoria semântica. Houve também uma reacção contra a ideia de que a verdade tem uma natureza substancial a ser posta a nu, o que levou a um apoio marcadamente crescente das chamadas teorias deflacionistas da verdade.
Uma motivação diferente para teorizar sobre a verdade é o desafio que os paradoxos semânticos representam, em especial o paradoxo do mentiroso. As teorias da verdade que respondem ao mentiroso tendem a preocupar-se menos com a natureza da verdade, e mais com a lógica e a semântica do predicado verdadeiro. Tem havido surpreendentemente pouco contacto entre estes dois grupos de teorias (mas veja-se Priest, Beall e Armour-Garb 2005).
Segundo a teoria da correspondência, a verdade consiste na correspondência com os factos. Um portador de verdade (por exemplo, a proposição de que a neve é branca) é verdadeira se e só se corresponde a um facto (que a neve é branca). Em traços gerais, a verdade é uma propriedade relacional entre portadores de verdade, de um lado, e o mundo, do outro.
A abordagem da correspondência é sugerida no Sofista (263b) de Platão, onde, na presença de Teeteto, o Estrangeiro contrasta a afirmação verdadeira “Teeteto está sentado” com a afirmação falsa “Teeteto está voando”:
A verdadeira afirma acerca de ti as coisas que são tal como são […] ao passo que a falsa afirma acerca de ti coisas diferentes das coisas que são.
Nas Categorias, escreve Aristóteles:
O facto do ser de um homem traz consigo a verdade da proposição de que ele é […] A verdade ou falsidade da proposição depende do facto de o homem ser ou não. (12b12–22; veja-se também 4b8)
A ideia de correspondência poderá estar também presente na famosa definição de verdade de Aristóteles: “Dizer do que é que é, e do que não é que não é, é verdadeiro” (Metafísica Γ, 1011b25). Ecos da abordagem platónica-aristotélica estão presentes nos estóicos e nos filósofos medievais (por exemplo, São Tomás de Aquino, Guilherme de Ockham e João Buridano), e muitos filósofos modernos, de René Descartes em diante, subscrevem a ideia de correspondência, ainda que com pouca discussão, ou nenhuma.
Uma formulação clássica da teoria da correspondência é dada por G. E. Moore: dizer de uma dada crença que é verdadeira “é dizer que há no Universo um facto ao qual corresponde” (1953, p. 302). Moore considera que todos estamos perfeitamente familiarizados com a relação de correspondência: “Que há tal relação, parece claro; tudo o que há de novo nas minhas definições é que concentram a atenção apenas nessa relação, e fazem dela o ponto essencial nas definições de verdade e de falsidade” (p. 340). Os comentários de Moore põem a nu tanto um ponto forte como um ponto fraco da teoria da correspondência. Esta é a abordagem mais natural da verdade — parece que ninguém precisa de negar que uma crença verdadeira corresponde ao que as coisas são. Mas levanta a suspeita de que a teoria da correspondência seja insípida — dizer que um portador de verdade corresponde aos factos é apenas uma maneira complicada de dizer que é verdadeira. Não há uma teoria específica da verdade a menos que se possa dizer mais qualquer coisa acerca da relação de correspondência. E Moore admite que não pode oferecer qualquer análise da correspondência; o melhor que pode fazer, afirma, é “defini-la no sentido de fazer notar de que relação se trata, fazendo notar apenas que é a relação que há entre esta crença, se for verdadeira, e este facto, e que não há entre esta crença e qualquer outro facto” (p. 301).
Bertrand Russell (1906–1907, 1912/1959) tenta lançar luz na relação de correspondência, defendendo um isomorfismo estrutural, ou congruência, entre crenças e factos. As crenças e os factos são complexos estruturados, e quando um complexo doxástico é adequadamente congruente com um complexo factual, a crença é verdadeira. Considere-se a crença de Otelo de que Desdémona ama Cássio. Segundo Russell, as crenças são relações quaternárias; neste caso, é o cimento que une Otelo, Desdémona, a relação de amor e Cássio num todo complexo. Os últimos três itens são o que Russell chama objectos da crença, e estes objectos estão ordenados de uma certa maneira pela relação de crença (Otelo acredita que Desdémona ama Cássio, e não que Cássio ama Desdémona). Considere-se agora outra unidade complexa, o amor de Desdémona por Cássio, composta pelos objectos da crença de Otelo. Aqui, a relação de amor é o cimento que liga Desdémona e Cássio na mesma ordem que têm na crença de Otelo. Se esta unidade complexa existe, então “diz-se que é o facto que corresponde à crença. Assim, uma crença é verdadeira quando há um facto correspondente, e é falsa quando não há um facto correspondente” (p. 129).
Um ponto central da elucidação de Russell é a existência de uma congruência estrutural entre o conteúdo de uma crença verdadeira e o facto correspondente — por exemplo, entre a proposição expressa pela frase “Desdémona ama Cássio” e o facto de Desdémona amar Cássio. Mas as frases e as proposições que as frases exprimem têm várias estruturas lógicas — negações, condicionais, generalizações universais, e assim por diante. Haverá então “factos bizarros”, como factos negativos, hipotéticos, universais e outros factos logicamente complexos? Poderá parecer que o mundo real — o mundo de acontecimentos datados e particulares, e de coisas com ordens espaciais e temporais específicas — simplesmente não consegue incluir algo com este tipo de complexidade: situações negativas, universais ou hipotéticas, por exemplo. Parece que ficamos com um dilema: ou os factos são demasiado “linguísticos”, estando demasiado ligados às estruturas lógicas da nossa linguagem, ou os factos são itens mundanos que não são estruturalmente congruentes com as proposições que exprimimos.
Russell (1956) e Ludwig Wittgenstein (1922) passam então a desenvolver a sua filosofia do atomismo lógico, segundo a qual não há factos logicamente complexos; só há factos atómicos. As proposições verdadeiras que são logicamente simples ou atómicas correspondem a factos atómicos, mas as proposições verdadeiras logicamente complexas já não correspondem a factos logicamente complexos. Ao invés, as proposições complexas são recursivamente decompostas nas proposições simples que as constituem, e a verdade das proposições complexas é em última análise explicada por meio dos factos atómicos aos quais correspondem as verdadeiras proposições atómicas. Mas as dificuldades continuam: certas proposições complexas, por exemplo, afirmações com “porque” e afirmações subjuntivas, resistem a serem decompostas em componentes simples; e podemos ainda perguntar se os factos universais são necessários para generalizações universais genuínas, e factos negativos para negações verdadeiras. Apesar destes conhecidos problemas, algumas versões de atomismo lógico têm defensores (por exemplo, veja-se Armstrong 1997). Num espírito diferente, J. L. Austin evita os “factos bizarros” negando que a correspondência seja uma questão de congruência estrutural: “Não é de modo algum preciso que as palavras usadas para fazer uma afirmação verdadeira “espelhem” seja como for, por mais indirectamente que seja, qualquer característica da situação ou acontecimento” (1999, p. 155) — mesmo uma única palavra, ou uma simples expressão, pode corresponder a uma situação complexa. Ao invés, a correspondência é uma correlação, determinada pelas nossas convenções linguísticas: é “absoluta e puramente convencional” (p. 154).
Uma influente família de objecções de grande alcance à teoria da correspondência põe em questão uma certa distinção de pontos de vista que a teoria parece sugerir. Há o ponto de vista que adoptamos quando ajuizamos, digamos, que há vacas no jardim, e depois há o ponto de vista que adoptamos quando determinamos se esse juízo é verdadeiro. Quando adoptamos este último, a teoria da correspondência parece exigir que ajuizemos se o nosso juízo tem uma relação apropriada de correspondência com os factos. Gottlob Frege (1999) objecta que não há realmente um ponto de vista a mais para adoptar, nem outro juízo a fazer — ao invés, devemos apenas verificar se há vacas no jardim. Esta linha de reflexão leva Frege à conclusão de que a verdade é indefinível; tende também ao deflacionismo, dado que poderá parecer que a verdade desaparece da imagem.
Segundo outra linha de objecção, é uma ilusão que possamos ter acesso a um domínio puro de factos com o qual comparamos os nossos juízos. O nosso conhecimento do mundo é mediado pelas nossas descrições, interpretações e juízos; não podemos sair do nosso próprio sistema de crenças e comparar essas crenças com a “realidade nua”. Dado que a teoria da correspondência diz que a verdade consiste em correspondência com os factos, e dado que esses factos nos são inacessíveis, nunca podemos saber que um juízo é verdadeiro, e somos conduzidos ao cepticismo. Quem subscreve esta linha de crítica associa tipicamente a teoria da correspondência ao realismo metafísico e advoga ao invés uma forma qualquer de anti-realismo e uma perspectiva “epistémica” da verdade, em termos de verificação, por exemplo (como os positivistas lógicos) ou de asseribilidade (veja-se Dewey 1938, Dummett 1978).
Se não podemos ajuizar uma crença comparando-a com os factos, talvez devamos ajuizá-la comparando-a com outras crenças: “harmoniza-se” com o resto das nossas crenças? O defensor da teoria da coerência diz que a verdade de uma crença consiste na sua coerência com outras crenças. Dado um conjunto coerente de crenças privilegiadas, a verdade de qualquer um dos seus membros consiste em pertencer a esse conjunto — deste modo, o céptico fica desarmado, porque a verdade já não exige acesso a um domínio independente de factos. Tem-se atribuído versões desta teoria a Bento de Espinosa, Immanuel Kant, Johann Gottlieb Fichte e Georg Wilhelm Friedrich Hegel (veja-se, como comparação, Walker 1989), e a teoria foi defendida por idealistas, incluindo Harold H. Joachim (1906) e Brand Blanshard (1939), em finais do século XIX, inícios do XX. Joachim rejeita a ideia de Descartes de que podemos saber verdades individualmente: “O ideal de conhecimento para mim é um sistema não de verdades, mas da verdade”; o conhecimento de uma verdade individual “é o menor e mais abstraído fragmento de conhecimento, uma mera parcela arrancada do todo vivo, só no seio do qual tem a sua importância” (1906, p. 48). Assim, Joachim advoga uma perspectiva integralmente holista do conhecimento e da verdade: “A verdade, na sua natureza essencial, é essa coerência sistemática com o carácter de um todo significativo” (p. 50). A teoria da coerência foi depois adoptada por alguns positivistas lógicos, destacando-se Otto Neurath (1959) que, como Joachim, subscrevia uma perspectiva holista do conhecimento e da verdade, combinando-a com a doutrina verificacionista dos positivistas, segundo a qual nenhum sentido se pode dar à realidade que vá além do que se pode verificar ou falsificar pelos métodos empíricos da ciência.
Há características atraentes na teoria da coerência. A favor do holismo, podemos dizer que afirmações como “O Iluminismo deu origem à Revolução Francesa” e “Os neutrinos não têm massa” não podem ser entendidas isoladamente de grande parte da história e da ciência; e testamos amiúde a verdade de uma afirmação contra o pano de fundo de um grande corpo de afirmações. Mas a teoria da coerência é sobre a natureza da verdade, e não dos testes que fazemos para saber a verdade, e por isso tem sido alvo de várias objecções. Russell (1906–1907) e Moritz Schlick (1959), entre outros, defenderam que um conjunto arbitrário de proposições, como as de um conto de fadas ou de um bom romance, seriam consideradas um conjunto de verdades, desde que as proposições fossem coerentes entre si — sendo a coerência entendida no sentido de consistência ou compatibilidade. Invocar a abrangência não parece ajudar aqui a teoria da coerência: dado um conjunto coerente de proposições, por maior que seja, haverá sempre conjuntos coerentes, igualmente grandes, incompatíveis com o primeiro (e entre si). E introduzir limites quanto ao que pertence ao conjunto privilegiado — por exemplo, admitir apenas as crenças que temos efectivamente, ou as crenças ideais que tivermos no término da investigação — parece ligar menos a verdade à coerência do que à despistagem bem-sucedida dos factos. Outra objecção deriva de Russell: suponha-se que temos um grande conjunto de proposições coerentes acerca do século XIX, digamos, e suponha-se que podemos acrescentar coerentemente a proposição de que o bispo Stubbs usava polainas episcopais. Segundo a teoria da coerência, esta proposição é verdadeira, devido a pertencer a um conjunto coerente. Se protestarmos que não podemos comprometer-nos com a sua verdade, porque não sabemos se é verdadeira, ou falsa, então estamos usando “verdadeiro” e “falso” de uma maneira que o defensor da teoria da coerência não reconhece. A dificuldade torna-se ainda mais grave se agora repetirmos a argumentação com a proposição de que o bispo Stubbs não usava polainas episcopais (encontra-se discussões complementares da teoria da coerência em Putnam 1981, Blackburn 1984, Davidson 1984 e Walker 1989).
A teoria pragmatista da verdade está associada sobretudo aos pragmatistas americanos Charles S. Peirce e William James, cuja influência se faz ainda sentir na obra de Richard Rorty (1982), por exemplo, ou de Robert B. Brandom (1994). Segundo Peirce, qualquer ideia ou objecto é de entender por meio dos seus efeitos práticos:
Considere-se que efeitos consideramos que o objecto da nossa concepção poderia ter, efeitos esses que possam concebivelmente ter impacto prático. Então, a nossa concepção desses efeitos é a totalidade da nossa concepção do objecto. (1955b, p. 31)
Peirce aplica esta regra à ideia de realidade: o efeito prático que as coisas reais têm em nós “é provocar crenças” (1955b, p. 36), de modo que a questão é como distinguir as crenças verdadeiras das falsas. A resposta de Peirce é que as verdadeiras são aquelas com as quais todos concordaremos, e só os métodos da ciência podem cumprir a esperança de chegar a este consenso. Escreve Peirce:
Esta esperança imensa está consubstanciada na concepção de verdade e realidade. O que queremos dizer com verdade é a opinião que está fadada em última análise a ser objecto da concordância de todos aqueles que investigam, e o objecto representado nesta opinião é o real. É deste modo que eu explicaria a realidade. (p. 38)
Isto não é a realidade com existência independente associada à teoria da correspondência: para Peirce, o que há de especial na ciência é a sua capacidade para estabelecer a opinião, e a realidade é seja lá o que for que a opinião estabelecida diz que é.
James aplica a regra de Peirce directamente à verdade. Os efeitos práticos das crenças verdadeiras são acções bem-sucedidas, maneiras benéficas de lidar com o mundo; as verdades são “instrumentos inestimáveis de acção” (1907, p. 97), a verdade “compensa” (p. 104). E assim, segundo a regra de Peirce, a verdade é o que é útil, o que “funciona”. James dá menos ênfase do que Peirce ao consenso e ao método científico (na verdade, Peirce rebaptizou a sua teoria, chamando-lhe “pragmaticismo”, para se distanciar da versão de James). James aplica a sua teoria às crenças individuais e também às colectivas, assim como às crenças religiosas e metafísicas, tal como às empíricas (por exemplo, “Com base em princípios pragmatistas, se a hipótese de Deus funciona satisfatoriamente no sentido mais lato da palavra, então é verdadeira” (p. 143)).
A objecção comum é que podemos ter crenças falsas benéficas, e crenças verdadeiras danosas. A minha crença falsa de que toco violino maravilhosamente pode de facto melhorar a minha execução; a minha crença verdadeira de que não o faço poderá torná-la pior. James tem recursos para dar uma resposta. Apesar de “o verdadeiro ser apenas o que é expediente na nossa maneira de pensar”, a verdade é o que é expediente no sentido forte, “expediente a longo prazo e no decurso completo das coisas” (1907, p. 106). Temos de adoptar a perspectiva mais lata: a minha execução pode ser boa desta vez, mas no seu todo será melhor para mim fazer uma avaliação rigorosa dos meus talentos. A perspectiva de longo prazo tem de ser adoptada não apenas com respeito às crenças individuais, mas à totalidade das teorias — a astronomia ptolemaica foi expediente durante séculos (p. 107).
O “absolutamente” verdadeiro, querendo dizer o que nenhuma experiência subsequente irá alguma vez alterar, é aquele ponto evanescente ideal para o qual imaginamos que irão um dia convergir todas as nossas verdades temporárias. […] Entretanto, temos de viver hoje com a verdade que conseguimos hoje, e estar prontos amanhã para lhe chamar falsidade. (pp. 106–107)
Juntamente com um compromisso controverso com o relativismo, James apresenta aqui uma temática holista que poderá acomodar-se ao seu pragmatismo: é talvez mais plausível que a verdade de um sistema inteiro de crenças, em contraste com a verdade das nossas crenças individuais, seja uma questão de funcionar para nós. Entendido desta maneira, o pragmatismo pode ser visto como uma versão da teoria da coerência. Apesar disso, persiste uma objecção básica: é plausível que um corpo de verdades seja útil ou coerente, mas não se segue que a verdade seja a utilidade ou a coerência — um defensor da teoria da correspondência dirá que as verdades são úteis e mutuamente coerentes exclusivamente porque correspondem ao mundo.
Desconsolado com a teoria da correspondência, escreveu F. H. Bradley: “para avançarmos, temos de aceitar de uma vez por todas a identificação da verdade com a realidade” (1999, pp. 35–36). Aqui, Bradley parece abraçar a teoria identitativa da verdade: uma verdade não corresponde a um facto — é idêntica a um facto (a perspectiva de Bradley é discutida em Candlish 1995). Outra influência é o comentário de Frege de que “Um facto é uma ideia verdadeira” (1999, p. 101), ainda que o próprio Frege não subscreva a teoria identitativa. Jennifer Hornsby (1997) e Julian Dodd (2000) defendem versões da teoria. A teoria poderá parecer contra-intuitiva: se entidades mentais — juízos verdadeiros ou crenças verdadeiras — são factos, então parece que a mente contém factos, que a mente e o mundo são literalmente o mesmo. Poder-se-á também defender que a teoria é instável, caindo no deflacionismo ou levando à completa eliminação de juízos verdadeiros — levando “directamente ao suicídio do pensamento”, na formulação de Bradley (1893, p. 150).
A teoria semântica da verdade tem origem no matemático e lógico Alfred Tarski (1930–1931/1983, 1999), que procurou uma definição de verdade que fosse formalmente correcta e que acatasse a seguinte restrição: tem de implicar todas as frases da forma exemplificada pela seguinte frase:
“Os orictéropos andam a furta-passo” é verdadeiro se e só se os orictéropos andam a furta-passo.
Ou seja, tem de implicar todas as frases da forma “p é verdadeira se e só se p”. As chamadas frases V são tão básicas para a verdade, pensava Tarski, que têm de seguir-se logicamente de qualquer definição adequada — deste modo, afirmou, fazemos justiça à definição de Aristóteles. Na verdade, Tarski considerava cada frase V uma “definição parcial” da verdade, e, se tivermos em mãos uma linguagem finita (no sentido de incluir apenas um número finito de frases), só temos de fazer a lista de todas as frases V associadas para ter uma definição completa da verdade para essa linguagem (veja-se 1930–1931/1983, pp. 251–253). Mas dado que Tarski procurava uma definição de verdade para linguagens formais que eram infinitárias, uma lista dessas não é exequível. De modo que Tarski forneceu uma definição recursiva — não da verdade, contudo, mas da noção mais básica de satisfação. No caso mais simples, a satisfação é uma relação entre um objecto e um predicado — por exemplo, um autocarro londrino satisfaz o predicado é vermelho. A satisfação é definida recursivamente, primeiro para predicados (de uma dada linguagem) que não têm qualquer complexidade lógica, e depois para os que a têm. Tarski definiu então a verdade em termos de satisfação. O resultado foi uma definição de verdade para linguagens formais que é formalmente precisa e que implica as frases V.
É notável que tanto os defensores da teoria da correspondência como os deflacionistas tenham abraçado a explicação de Tarski. Os defensores da teoria da correspondência sentem-se atraídos pela satisfação como uma relação palavra-mundo, e pela possibilidade de a relação de correspondência entre uma frase e um facto poder ser decomposta nas relações entre partes de frases (predicados e nomes) e as coisas que estas referem (por exemplo, Devitt 1991). Isto faz ter a esperança de que a correspondência não seja mais misteriosa do que as relações semânticas entre predicados e nomes e os seus referentes. Os deflacionistas, sobretudo os descitacionistas, sentem-se atraídos pela ideia de que as frases V dizem tudo o que há a dizer sobre a verdade, como se verá. O próprio Tarski sublinhou a neutralidade da sua teoria:
Podemos aceitar a concepção semântica da verdade sem abandonar qualquer atitude epistemológica que possamos ter tido; podemos continuar a ser realistas ingénuos, realistas críticos ou idealistas, empiristas ou metafísicos — seja o que for que já éramos. A concepção semântica é completamente neutra em todas essas questões. (1999, p. 140)
O objectivo de Tarski não era revelar a natureza da verdade, mas pôr o conceito de verdade para lá de suspeita. Por um lado, pensava, a verdade é fundamental para a ciência, para a lógica e para a metamatemática; por outro, a verdade tem “má reputação”, por estar envolvida no paradoxo do mentiroso. O objectivo de Tarski era encontrar uma maneira de definir a verdade em termos que ninguém pudesse pôr em questão:
A definição de verdade, ou de qualquer outro conceito semântico, irá cumprir o que intuitivamente esperamos de todas as definições; ou seja, irá explicar o significado do termo sob definição em termos cujo significado pareça completamente claro e inequívoco. E, além disso, temos então uma espécie de garantia de que o uso de conceitos semânticos não irá fazer-nos cair em contradições. (1999, p. 127)
Quem quiser transformar a definição de Tarski numa explicação completamente geral da verdade enfrenta vários obstáculos. Tarski definiu a verdade só para linguagens disciplinadas, formais, e não para linguagens naturais como o português; define a verdade para uma dada linguagem, e não a verdade simpliciter; e a definição, segundo Hartry Field (1972), não explica a verdade, porque se limita a reduzi-la a outras noções semânticas que não são adequadamente explicadas.
Os deflacionistas dizem que as teorias “substanciais” da verdade — como as teorias da correspondência e da coerência — estão radicalmente desorientadas: não há qualquer propriedade substancial da verdade acerca da qual haja que teorizar. Segundo Frank Ramsey, a verdade é redundante:
É evidente que “É verdadeiro que César foi assassinado” não quer dizer senão que César foi assassinado. (1999, p. 106)
É menos fácil eliminar a verdade de generalizações como “Tudo o que Sócrates afirma é verdadeiro”, mas Ramsey defende que se consegue fazê-lo (p. 106). A palavra verdadeiro desaparece, e qualquer razão para investigar a natureza da verdade desaparece com ela. Segundo uma versão mais sofisticada da teoria da redundância, a teoria profrásica da verdade (Grover, Camp, and Belnap 1975), a palavra verdadeiro não é sequer um predicado genuíno, mas simplesmente uma componente de profrases. Se uma pessoa diz “Isso é verdadeiro” em resposta a uma afirmação de outra, não proferiu uma frase, mas antes uma profrase, que refere a frase da outra pessoa, tal como o pronome ele pode referir o nome João. Podemos considerar que “Isso é verdadeiro” tem hífenes, não tendo mais estrutura interna do que ele. Do ponto de vista profrásico, verdadeiro não sobrevive como predicado discreto que denote uma propriedade. A variante de P. F. Strawson (1949) da teoria da redundância atribui a verdadeiro um papel performativo: não usamos verdadeiro para seleccionar uma propriedade, mas antes para executar actos de fala, como subscrever, concordar e conceder.
Os descitacionistas atribuem também a verdadeiro um papel que difere dos predicados comuns. Segundo a teoria descitacionista da verdade — defendida por W. V. Quine (1970) e depois desenvolvida por Field (veja-se, por exemplo, 1994) — dizer que uma frase é verdadeira não é senão uma maneira indirecta de dizer a própria frase. Não há realmente mais a dizer com respeito à verdade da frase “Os pinguins bamboleiam” do que o que é oferecido pela frase V de Tarski:
“Os pinguins bamboleiam” é verdadeira se e só se os pinguins bamboleiam.
E a totalidade de frases V diz-nos tudo o que há a dizer acerca da verdade. Isto levanta uma questão: por que não vermo-nos livres do predicado da verdade, a favor de um discurso directo sobre o mundo? O descitacionista responderá chamando a atenção para generalizações como “Toda a frase da forma ‘p ou não p’ é verdadeira” (veja-se Quine 1970, pp. 10–13). Nesses casos, só poderíamos livrar-nos do predicado da verdade se pudéssemos formar uma conjunção infinita da forma “p ou não p”: “Os orictéropos andam a furta-passo ou os orictéropos não andam a furta-passo, e os bisontes tomam banho, ou os bisontes não tomam banho, e…”. Mas não podemos formar frases infinitamente longas. De modo que para atingir o efeito desejado, generalizamos sobre frases, e depois, por meio do predicado da verdade, trazemo-las de volta à Terra descitando-as. Apesar da aparência superficial, verdadeiro não denota uma propriedade ou relação — é um expediente lógico. De modo que não há qualquer propriedade da verdade para explorar, e a verdade não tem outro papel que não o lógico.
A teoria descitacionista considera que os portadores de verdade são frases, e isto levanta uma preocupação quanto ao âmbito da teoria (veja-se David 1994 para mais preocupações). Suponha-se que, com base no que me disseram, acredito que Dmitri tem sempre razão, apesar de eu não falar russo. Compreendendo aparentemente o que digo, afirmo “O que Dmitri diz é verdadeiro”. Mas, segundo o descitacionismo, compreender o que acabei de dizer é uma questão de compreender o que Dmitri disse; e dado que não consigo compreender o que ele disse, não consigo compreender o que eu disse. Os descitacionistas tipicamente relativizam a teoria às frases de uma dada linguagem natural, como o português. E dado que uma pessoa que fale português não irá compreender todas as frases portuguesas, alguns descitacionistas reconhecem a necessidade de ir mais além e restringir a teoria a frases do idiolecto de uma dada pessoa (ou seja, a frases que a pessoa compreende). Isto parece afastar-nos da compreensão de senso comum da verdade — comummente, ao que parece, podemos aplicar a noção de verdade a frases estrangeiras, e a frases portuguesas que ainda não compreendemos. Em suma, o conceito de verdade não parece depender das frases que uma dada pessoa compreende num dado momento. O desafio que o descitacionista enfrenta (assumido por Field, entre outros) é moderar as restrições contra-intuitivas à verdade descitacional de uma maneira que não comprometa a teoria.
Estas dificuldades que o descitacionismo enfrenta poderão estimular uma escolha diferente de portador de verdade — proposições, em vez de frases. Paul Horwich (1998) apresenta uma teoria minimalista da verdade, segundo a qual uma explicação completa da verdade é dada pelos análogos proposicionais das frases V de Tarski:
A proposição de que os orictéropos andam a furta-passo é verdadeira se e só se os orictéropos andam a furta-passo; a proposição de que os bisontes tomam banho é verdadeira se e só se os bisontes tomam banho…
E assim por diante, ad infinitum. Longe de se restringir aos idiolectos das pessoas, verdadeiro aplica-se a todas as proposições, incluindo as expressas por frases que não compreendemos. Mas agora há um novo conjunto de preocupações. Primeiro, dado que não compreendemos todas as proposições, iremos compreender só uma fracção dos axiomas que constituem a teoria minimalista — e por isso o nosso entendimento da verdade tem sempre de ser parcial. Segundo, dado que a teoria minimalista descreve a verdade fragmento a fragmento, para cada proposição individualmente, não inclui quaisquer generalizações sobre a verdade. De modo que se poderá objectar que a teoria não consegue explicar generalizações como “Só as proposições são verdadeiras” — a teoria não nos diz o que não é verdadeiro, de modo que não exclui, por exemplo, o absurdo de que a Lua é verdadeira. (Sobre esta objecção, veja-se Anil Gupta 1993; Christopher S. Hill 2002 oferece uma versão de minimalismo que lhe responde.) Terceiro, considere-se a forma que têm os axiomas de Horwich: a proposição de que p é verdadeira se e só se p. Para obter um axioma, temos de ter cuidado para substituir cada ocorrência de p por espécimes portugueses da mesma frase-tipo, com o mesmo significado. Mas agora parece que as frases voltaram a entrar na conversa — juntamente com a noção semântica substancial de significado, que poderá não estar tão longe de se envolver com a verdade como o minimalismo exige.
Esta última observação relaciona-se com um desafio geral que todas as formas de deflacionismo enfrentam. Os deflacionistas tipicamente centram-se nos usos de verdadeiro como “ ‘Os orictéropos andam a furta-passo’ é verdadeira”, ou “A maior parte do que Sócrates diz é verdadeiro” — o que podemos chamar usos de primeira ordem, onde verdadeiro se aplica a um portador de verdade particular ou a um conjunto de portadores de verdade. Mas verdadeiro é também usado de outras maneiras: por exemplo, considere-se a afirmação de que o significado de uma frase é dada pelas suas condições de verdade, ou a afirmação de que asserir é apresentar como verdadeiro. Estes usos de verdadeiro — chame-se-lhes de segunda ordem — pretendem explicar o significado e a asserção. Ao contrário do usos de primeira ordem, não se aplicam a quaisquer portadores de verdade particulares, e por isso não é fácil ver como poderão ser tratados como redundantes e elimináveis, ou como poderemos dar-lhes um papel meramente descitacional. Estes usos de segunda ordem têm de ser explicados. Além disso, o deflacionista tem de mostrar que é possível explicar o significado e a asserção (e muitos outros conceitos aparentemente relacionados com a verdade, como a validade, a crença, a verificação, a explicação e o sucesso prático) em termos que atribuem à verdade um papel lógico limitado, ou nenhum papel.
Gera-se uma versão do paradoxo do mentiroso com a frase auto-referencial seguinte:
Suponha-se que 1 é verdadeira; nesse caso, ocorre o que afirma, e por isso 1 é falsa. Pelo contrário, suponha-se que 1 é falsa — nesse caso, dado ser isso que 1 afirma, 1 é verdadeira. Chega-se à contradição por qualquer das pontas, e caímos num paradoxo.
As teorias hierárquicas da verdade têm sido talvez a resposta ortodoxa ao mentiroso. Seja L0 um fragmento de português que não contenha o predicado verdadeiro. Seja verdadeiro em L0 o predicado de verdade para L0, que se aplica exactamente às frases verdadeiras de L0. Se verdadeiro em L0 for em si um predicado de L0, então podemos construir o paradoxo do mentiroso em L0 por meio da frase “Esta frase não é verdadeira em L0”. Por isso, o predicado verdadeiro em L0 restringe-se a uma metalinguagem mais rica para a linguagem-objecto L0. Mas devido ao mentiroso, esta metalinguagem não pode incluir o seu próprio predicado de verdade; para isso, é preciso outra metalinguagem. Deste modo, gera-se uma hierarquia de linguagens, contendo cada linguagem para lá de L0 o predicado de verdade da linguagem anterior. Um célebre teorema de Tarski (1930–1931/1983) mostra que nenhuma linguagem formal clássica pode incluir o seu próprio predicado de verdade, e somos assim conduzidos a uma hierarquia de linguagens formais. Houve quem transferisse este resultado para as linguagens naturais, para lidar com o mentiroso, ainda que Tarski não subscrevesse esta jogada. A abordagem hierárquica de Russell estava presente na sua teoria dos tipos e das ordens (1967). Uma queixa frequente é que as abordagens hierárquicas obrigam a disciplinar artificiosamente uma linguagem natural como o português; o próprio Russell, a certo ponto, disse que a abordagem era “severa e muitíssimo artificiosa”.
Outro tipo de abordagem abandona a semântica clássica — habitualmente, é o princípio da bivalência (“Toda a frase é verdadeira ou falsa”)2 que se rejeita. Se tivermos razões para pensar que há hiatos nos valores de verdade, podemos então dizer que a frase 1 acima não é verdadeira nem falsa, para evitar a contradição. A influente teoria da verdade de Kripke (1975) considera que as frases do mentiroso têm “hiatos”, porque não têm fundamento: qualquer tentativa para avaliar uma frase do mentiroso só leva a frases que envolvem verdadeiro ou falso — no caso de 1, estamos repetidamente a ser levados de novo para 1. Kripke constrói uma linguagem que, notavelmente, inclui os seus próprios predicados de verdadeiro e falso. Contudo, não pode acomodar os predicados “é falsa ou tem hiatos” nem “não é verdadeira” — de modo que, em última análise, não conseguimos dispensar a hierarquia.
A teoria revisionista da verdade (Gupta e Belnap 1993) é formalmente uma variante da proposta de Kripke, mas fornece uma maneira especial de explicar o significado da verdade. A verdade é considerada um conceito circular, e a teoria revisionista descreve como o seu significado é dado pelas frases V de Tarski, usando um processo dinâmico que, por meio de revisões sistemáticas, fornece aproximações cada vez melhores à extensão de verdadeiro.
As teorias contextuais da verdade têm como ímpeto o chamado raciocínio fortalecido sobre o mentiroso. Começa-se com uma frase do mentiroso, como a seguinte:
Raciocinando da maneira habitual, descobrimos que 2 é patológica. Mas então podemos inferir 3:
Agora 2 e 3 são compostas das mesmas palavras, com os mesmos significados, mas uma é patológica e a outra é verdadeira. Os defensores da teoria contextualista afirmam que a melhor maneira de explicar esta mudança de estatuto de verdade sem mudança de significado é por meio de um desvio contextual (compare-se “Tenho fome” dito antes de jantar e “Tenho fome” dito depois da sobremesa). A maior parte das teorias contextuais são hierárquicas (por exemplo, Burge 1979, Barwise e Etchemendy 1987), apesar de Keith Simmons (1993) desenvolver uma sugestão de Kurt Gödel, segundo a qual um conceito não-estratificado da verdade se aplica em todo o lado, excepto em certas singularidades.
Qualquer tentativa de solução do mentiroso enfrenta a chamada vingança do mentiroso — uma versão do mentiroso formulada em termos da solução. As abordagens em termos de hiatos de valor de verdade têm de lidar com a frase mentirosa “Esta frase é falsa ou tem hiatos”, as hierárquicas com “Esta frase não é verdadeira em nível algum” e as contextuais com “Esta frase não é verdadeira em contexto algum”. Sem solução consensual à vista, e com a ameaça constante da vingança do mentiroso, houve quem concluísse que temos de cortar o nó górdio e abraçar as contradições associadas ao mentiroso. Segundo dialeteístas como Graham Priest (1987), há frases que são simultaneamente verdadeiras e falsas, e entre elas contam-se as frases do mentiroso (para uma discussão crítica do dialeteísmo veja-se Priest, Beall, and Armour-Garb 2004). Além de responder à acusação óbvia de ser contra-intuitiva, os dialeteístas têm de alicerçar a sua teoria numa lógica paraconsistente plausível (uma lógica que ponha em questão o princípio de que tudo se segue de uma contradição) e assegurar que o dialeteísmo não é em si vulnerável à vingança do mentiroso.