Desde o autêntico renascimento da estética e da filosofia da arte na década de 1960, tem havido uma clara tendência para tratar as artes individuais na medida em que apresentam problemas filosóficos que lhes são peculiares. Isto não equivale a afirmar que não se tem desenvolvido também a filosofia da arte em geral. As teorias ambiciosas da arte, procurando abranger todas as belas artes em definições sinópticas, ocuparam alguns dos melhores espíritos filosóficos deste período e trouxeram à disciplina uma clareza e um rigor muito necessários. Mas lateralmente a este projecto socrático, mais tradicional, floresceu uma comunidade inquieta de filósofos que aplicam as suas aptidões analíticas a problemas individuais de artes como a literatura, a pintura, a dança, a fotografia, o cinema, o teatro, a arquitectura e, evidentemente, a música, o tópico que abordamos.
A questão filosófica mais antiga e mais persistentemente examinada a respeito da música é a do seu carácter emocional. Platão exprimiu a perspectiva de que a música tem o poder de produzir estados emocionais no ouvinte. Aristóteles fez a sugestão intrigante, embora desconcertante, de que a música “imita” ou representa as emoções. Mas pouco sabemos, se é que sabemos alguma coisa, acerca de como soava a música do seu tempo. E sem esse conhecimento não temos como saber acerca de que falam estes filósofos e, por conseguinte, o que realmente afirmam acerca deste assunto.
A especulação moderna nesta matéria começou no início do século XVII, quando os inventores da ópera começaram a especular acerca da música como fonte da expressão emocional na forma dramática recentemente criada. Mas o problema só assumiu a forma sob a qual a estética contemporânea o trata quando, no final do século XVIII, a música instrumental emergiu como um género musical de grande importância e como o principal género musical na filosofia da música.
Nos últimos setenta anos, a questão adquiriu uma forma esquemática: o que afirmamos quando afirmamos: “a música é triste”? Algumas respostas têm sido que a música nos deixa tristes; que a música exprime a tristeza do compositor; que a música de alguma maneira simboliza ou representa a tristeza; que a música tem a tristeza como uma qualidade perceptiva, tal como uma maçã tem a vermelhidão; alguma combinação de tudo isto; finalmente, que a música simplesmente não é triste e que é absurdo afirmar que o é. A perspectiva maioritária, no virar do século, é que as propriedades emocionais da música são propriedades percepcionadas da mesma, embora as opiniões se dividam quanto à música também evocar ou não as emoções que exprime. Os que contestam a evocação (Peter Kivy, por exemplo) argumentam que na vida quotidiana as emoções são evocadas por crenças que formamos acerca de estados de coisas, crenças que se tornam então nos objectos intencionais das emoções apropriadas, e que a música não pode proporcionar as condições necessárias para tal evocação, nem há indícios de que os ouvintes tenham experiência deste tipo de evocação. Por contraste, os que argumentam a favor da evocação (Stephen Davies e Jerrold Levinson) sustentam que porque as emoções evocadas pela música não são emoções vívidas, mas suficientemente próximas para serem tomadas por elas, a música tem de facto o poder de evocar emoções embora não dêem lugar às respostas comportamentais normais das emoções da vida real.
O tópico da música e das emoções foi talvez o mais discutido na estética musical desde tempos imemoriais, mas é plausível que o centro vital da filosofia da música tem sido, desde o fim do século XVIII, o debate sobre o formalismo musical. Immanuel Kant parece não ter tido quaisquer dúvidas de que a música instrumental pura, a “música absoluta”, como se passou a designá-la, era uma arte puramente formal (embora reconhecesse o seu aspecto emocional) e, porque não tinha conteúdo conceptual, Kant hesitava em considerá-la sequer uma das belas-artes.
Arthur Schopenhauer praticamente resolveu a questão a favor da música absoluta como uma das belas-artes. Fê-lo considerando a música uma forma de arte representacional e assim uma forma de arte conforme ao dogma setecentista da mimesis (imitação). Mas o custo foi elevado, pois os embaraçosos alicerces metafísicos desta teoria dificilmente seriam sancionados por filósofos com sensibilidades filosóficas modernas.
A primeira explicação genuína da música absoluta, a de Eduard Hanslick (1825–1904), seguiu-se não muito depois. Na estética musical, o formalismo, como Hanslick o interpretou e como continuou a ser interpretado até à década de 1980, é a doutrina de que tem de se considerar a música absoluta, enquanto objecto artístico, como uma estrutura sonora puramente formal, sem qualquer significado emocional de todo em todo. Mas quando alguns autores perceberam que as próprias propriedades emocionais da música podiam ser interpretadas como propriedades perceptivas da música, viram que um formalismo com propriedades emocionais enquanto parte da estrutura formal também é, em espírito, um formalismo. Esta perspectiva tornou-se conhecida como “formalismo aperfeiçoado”.
No ponto em que estão as coisas, no início do século XXI, há quem considere, em particular na musicologia histórica, que mesmo o formalismo aperfeiçoado é demasiado anémico, e surgem abundantemente perspectivas sobre a música absoluta como “narrativas sem palavras”. O que a muitos parecera uma questão firmemente decidida a favor do formalismo tornou-se agora uma questão cheia de incertezas.
O conceito de “forma musical” está intimamente relacionado com o de “compreensão musical”. Sendo ou não formalista, tem de se pressupor que compreender a pura estrutura musical é um pré-requisito para compreender seja o que for além da pura estrutura — o conteúdo narrativo, por exemplo. Por outras palavras, tem de se escutar aquilo que se ouve como música antes de o escutar como uma história em música.
É letra comum que compreender a música é uma questão de a ouvir como uma série articulada de acontecimentos que faz musicalmente sentido para o ouvinte. Como se deve reconhecer e interpretar esta compreensão musical básica são questões conflituosas. Além disso, há um desacordo substancial sobre se a compreensão musical exige ou não que se conheça, prestando-lhes atenção, os grandes elementos estruturais das composições musicais e as técnicas musicais que podem reger as conexões entre os acontecimentos. Este desacordo abrange a questão de o conhecimento daquilo a que neste campo se chama “teoria musical” ter ou não alguma relevância para a apreciação e fruição da música absoluta. Estas questões foram calorosamente debatidas na década de 1990. Em Music in the Moment, Jerrold Levinson defendeu que a audição normal exige que se atente apenas nas conexões entre segmentos breves de textura musical que se apresentam à percepção imediata, naquilo a que Levinson chama “quasi-audição”. No campo oposto, Peter Kivy, em Music Alone e noutras obras, argumentou que o conhecimento da teoria musical, embora não sendo essencial à compreensão musical mínima, alarga o objecto intencional da compreensão musical, aumentando assim exponencialmente o prazer da experiência musical.
A questão de a música instrumental ser ou não capaz de algo como a representação pictórica não está no topo da lista de questões com as quais os filósofos da música no início do século XXI se preocupem, embora no auge do romantismo oitocentista fosse muito discutida como uma questão de estética musical “prática”, estando intimamente associada à questão da oposição entre música absoluta e música programática. Há quem afirme que a música em princípio não pode representar pictoricamente, podendo apenas imitar sons, o que é obviamente uma coisa muito diferente. Outros sustentam que há exemplos de representação pictórica em música, embora de um tipo muito mínimo. Os que estão comprometidos com interpretações narrativas mais ou menos elaboradas do cânone da música absoluta estão comprometidos, pelo menos implicitamente, com uma perspectiva mais liberal das capacidades representacionais da música, embora dessa parte pouca luz filosófica nos tenha chegado sobre o assunto.
Como as questões na prática musical, o modo como se ajusta as palavras à música e o papel que desempenham as palavras e a música neste empreendimento de concessão mútua foram vigorosamente discutidas, por vezes asperamente, desde a última metade do século XVI, tendo por principal força motivadora a ópera. É discutível se estas são ou não questões filosóficas. Não obstante, na bibliografia posterior a 1990, aqueles que de facto se vêem como filósofos mostraram maior interesse na ópera como forma de arte digna de um escrutínio distinto. Entre as questões que se tem levantado constam a de a ópera ser ou não basicamente uma forma musical ou uma forma literária com música, como devemos compreender racionalmente um drama com personagens que cantam em vez de falarem, como pode o drama ajustar-se em si à forma musical, como compreenderemos, numa base racional, a presença ubíqua da orquestra no drama cantado e que capacidade tem a música na ópera de “dizer” coisas, para além da capacidade que o libreto tem de o fazer. Estes debates esbateram, de uma maneira filosoficamente saudável, as fronteiras entre a filosofia e diversas disciplinas musicais. Ao mesmo tempo, os que estão fora das comunidades académicas filosóficas e das musicais deram contribuições substanciais para o discurso filosófico.
Talvez a questão filosófica central no debate acerca da relação entre a música e as palavras se revele melhor pelo título que Joseph Kerman, musicólogo de profissão, deu ao seu inovador e muito admirado livro Opera as Drama. Na perspectiva de Kerman, deve-se encarar a ópera, no seu melhor, como principalmente uma forma de teatro, dramma per musica, na venerável expressão latina. Adoptando a perspectiva oposta, Peter Kivy, em Osmin's Rage, colocou a ênfase, não na ópera como teatro, mas antes na ópera como música, denominando-a “música para o teatro”.
Pense-se o que se pensar acerca das credenciais filosóficas de algumas das questões que interessam aos filósofos da música, a questão do estatuto ontológico da obra musical parece inequivocamente filosófica. Quem mais se não um filósofo, pode-se muito bem perguntar, poderia levantar tal questão, ou estar interessado na resposta?
A ontologia musical emergiu na década de 1960, na forma de duas respostas opostas, para a mesma questão: O que é uma obra musical? O termo “objecto artístico” sugere claramente o tipo de obra de arte que pode, pelo menos à primeira vista, identificar-se com um objecto físico, localizável no espaço e no tempo. Mas se o “objecto” em questão é uma obra musical, parece claro que não está localizado seja onde for. A Mona Lisa está no Louvre. Onde está a Quinta Sinfonia de Beethoven?
Não obstante, há objectos físicos, de uma maneira geral, associados às obras musicais, nomeadamente as suas execuções. Uma das direcções seguidas pela ontologia musical foi a platónica, considerando as obras musicais como universais ou tipos e as execuções como os seus exemplos ou espécimes. A outra direcção, esquivando-se ao espectro das entidades platónicas intemporais, infísicas, identifica a obra musical com a classe das suas execuções. Ambas as direcções têm problemas, mas o modelo platónico, algo surpreendentemente, tem sido o mais explorado.
O principal problema do platonismo musical tem sido o aparente conflito entre duas intuições básicas. As entidades platónicas são intemporais e portanto não podem começar a existir, ao passo que as obras musicais começam de facto a existir, são criadas, através do trabalho e inspiração dos seus compositores. Os platonistas do tipo mais imprático tentaram argumentar que podemos preservar a nossa noção dos compositores como artistas “criativos” inspirados, num sentido ou noutro, engolindo ao mesmo tempo o sapo platónico e afirmando que as obras musicais são descobertas em vez de alguém as fazer existir. Outros platonistas mais moderados optaram por um género de universal ou tipo que começa a existir no acto criativo do compositor mas que, noutros aspectos, preserva o carácter de um universal ou tipo platónico de modo a tornar a distinção universal/particular ou tipo/espécime adequada ao que pretendem afirmar acerca da relação entre as obras e as suas execuções. A última abordagem parece mais popular no início do século XXI ao passo que a tentativa de identificar as obras com classes das suas execuções aparentemente ficou em águas de bacalhau.
Visto que as análises mais populares da obra musical a interpretam como um género de universal, com as execuções no lugar de particulares, seria de esperar uma bibliografia substancial sobre a execução musical. Mas até o final da década de 1990 isto não foi assim, tendo-se pressuposto que os executantes e as execuções são filosoficamente transparentes, não se pressentindo aí quaisquer quebra-cabeças conceptuais. Então, na década de 1990, um movimento no mundo prático do executante e da execução, o movimento a favor das chamadas “execuções historicamente genuínas”, começou a gerar um interesse considerável entre os filósofos pela relação entre a execução e a obra, o executante e o compositor. O projecto historicista em musicologia, durante tanto tempo direccionado para estabelecer os textos musicais que são historicamente genuínos, direccionou-se, na década de 1990, também para a autenticidade histórica da execução musical do texto autenticado, com o resultado prático de cada vez mais execuções de música composta antes do século XIX se tornarem tentativas de reproduzir, tanto física como interpretativamente, o tipo de execução que o próprio compositor tinha em mente quando a compôs.
Após o virar do século, os filósofos começaram a lançar um olhar analítico sobre o conceito de “execução historicamente genuína” e sobre o imperativo estético que supostamente o move. O que é uma execução historicamente genuína? Será a que reproduz um objecto físico ou um objecto intencional? Será que a integridade do texto musical exige uma execução historicamente genuína, ou será que o texto sobrevive a uma execução ousadamente moderna? Será o executante um artista por si, segundo a tradição, ou será este a máquina do compositor? Haverá uma execução ideal de uma obra e será esta a historicamente genuína? Estas questões começaram a gerar artigos e livros interessantes não apenas para a comunidade filosófica mas também para a comunidade musical. Além disso, o que a comunidade musical escreveu acerca da execução é agora sujeito ao escrutínio filosófico. Os resultados ainda não chegaram.
Por fim, que contribuição de valor dá a arte da música absoluta à experiência humana? Que tipo de satisfação proporciona? Schopenhauer argumentou que, como a música absoluta satisfaz da mesma maneira que as outras belas-artes, que são inquestionavelmente artes representacionais, também a música absoluta tem de ser uma arte representacional. Procurou então arduamente um objecto que a música absoluta pudesse representar, fixando-se na vontade metafísica — um resultado que poucos hoje considerariam plausível. Seja como for, os que interpretam o cânone da música absoluta em termos narrativos estão implicitamente comprometidos com o argumento geral de Schopenhauer, se não com a sua conclusão acerca da relação entre a música e a vontade. Pois a procura de histórias nas sinfonias pressupõe que a satisfação proporcionada por tal música exige uma explicação e como a satisfação das formas de arte temporais reside na sua capacidade narrativa, o mesmo tem de se aplicar à arte temporal da música absoluta. (O próprio Schopenhauer, todavia, não leva o seu argumento até este extremo.)
Os formalistas, evidentemente, têm de encontrar outras fontes para o valor e satisfação da música absoluta. Uma resposta claramente ao espírito schopenhauriano é que a música absoluta proporciona um tipo de fuga, uma libertação a partir do mundo, a partir deste vale de lágrimas, para um mundo de puras formas sonoras. As artes representacionais e narrativas, ancoradas como estão a este mundo, não podem proporcionar esta libertação. Outra resposta consiste simplesmente em rejeitar a questão. Não há qualquer mistério acerca dos prazeres da música absoluta. Estes residem simplesmente em todas as componentes da música absoluta de que falam os críticos musicais, os analistas e os teorizadores. É óbvio por que estas componentes nos agradam. Nenhuma resposta suplementar, afirma-se, é precisa ou está sequer disponível.
Será o prazer da música absoluta um mistério ou um pseudomistério? Seja qual for a resposta, a música absoluta, desde meados da década de 1950, tornou-se um tópico de enorme interesse na filosofia da arte e a filosofia da música tornou-se uma subdisciplina reconhecida do campo. O interesse não dá sinais de diminuir.