[No pensamento liberal], a cidadania é um “estatuto”, um estatuto que se procura e que, uma vez atingido, deve ser mantido. Uma diferença fundamental entre o mundo ocidental moderno e as épocas anteriores, radica na dificuldade de saber quem pode legitimamente considerar-se cidadão. Há uma certa distância entre o mundo de Hobbes e de Locke […] e o nosso mundo, em que, pelo menos do ponto de vista retórico, todos os seres humanos — homens, mulheres e crianças — têm direitos de cidadania, ainda que os últimos só os possam exercer plenamente quando atingirem a maioridade. […]
A função do domínio político é servir os interesses e propósitos dos indivíduos, e proteger os cidadãos no exercício dos seus direitos, esforçando-se por os manter intactos na procura dos interesses e propósitos individuais e colectivos que os cidadãos possam ter. Os arranjos políticos são, por isso, encarados em termos utilitaristas. Na medida em que proporcionam a protecção exigida pelos cidadãos e pelos grupos, para que possam exercer os seus direitos e perseguir os seus propósitos, os cidadãos pouco mais têm a fazer do que escolher os seus líderes. O dever dos cidadãos é tolerar as decisões obrigatórias tomadas pelos líderes políticos. Quando outros tipos de arranjos políticos ameaçam esta situação, os cidadãos passar a ter o dever se defender. Se os arranjos políticos deixarem, por qualquer razão, de assegurar a liberdade e a segurança, os cidadãos têm o direito de reclamar a sua alteração, no exercício do seu direito de resistência. Segundo esta perspectiva, um dos direitos dos cidadãos é o de serem politicamente activos, participando na vida pública de formas mais substantivas do que apenas escolher os líderes políticos. Contudo, porque é um direito, os cidadãos, partindo do pressuposto de que possuem os recursos e a oportunidade, escolhem quando participar e até se participam. Escolher não participar não anula o seu estatuto de cidadãos.
Para os seus defensores, a maior vantagem do individualismo liberal — uma perspectiva que baseia as relações entre os cidadãos e a sociedade nos direitos individuais — é não postular qualquer tipo de concepção de vida boa. Defende os procedimentos e as regras, e a manutenção de um enquadramento institucional, dentro do qual os indivíduos, com os seus interesses e propósitos dados ou escolhidos, perseguem as suas próprias concepções de vida boa. A justiça é vista como um “remédio”, que assegura a possibilidade de que cada indivíduo perseguir a sua própria concepção de vida boa sem prejudicar, de formas inaceitáveis, os projectos de vida de outros.
Por detrás de tal argumento está a visão do indivíduo como agente autónomo. Os indivíduos escolhem por si os seus próprios projectos de vida e solicitam que o estado os autorize e os proteja adequadamente. Esta responsabilidade individual pela escolha e pela concretização dos seus projectos de vida contribui para o necessário desenvolvimento moral dos indivíduos. A perspectiva que baseia as relações entre os cidadãos e a sociedade nos direitos individuais constrói-se sobre a autonomia e responsabilidade dos agentes. Mas enquanto as formas de vida colectiva, por exemplo, relações de boa vizinhança, relações de classe e nação, não integrarem de forma substantiva a concepção de vida boa do agente, não serão encaradas por este como instrumentos necessários para que possa perseguir qualquer projecto que tenha escolhido. O que se exige ao indivíduo é que respeite a autonomia dos outros, bem como um conjunto mínimo de deveres cívicos para a manutenção do estado — votar, pagar impostos e, quando o próprio estado estiver a ser ameaçado, estar disposto a ajudá-lo por meio de alguma forma de serviço militar […].
Uma perspectiva alternativa de relacionamento entre os indivíduos e a sociedade deve, se quiser ser levada a sério, acomodar-se ao facto de, no mundo ocidental, os indivíduos se conceberem a si mesmos como possuidores de direitos e como agentes autónomos, no sentido em que, de certa forma, são independentes da sociedade em que vivem e responsáveis pelas suas vidas. Os indivíduos autónomos são o objecto de qualquer teoria política, embora não sejam o único objecto.
Há diversas razões pelas quais é necessária uma perspectiva alternativa. A primeira e mais óbvia é que a perspectiva baseada nos direitos não esgota verdadeiramente tudo o que está envolvido nas relações entre os indivíduos e a sociedade. Os sujeitos não se vêem a si mesmos apenas como sujeitos de direitos, nem a sua atitude relativamente às formas de vida colectiva é meramente instrumental. Os sujeitos reconhecem, em particular, que têm deveres mais extensos que o mínimo cívico exigido e que dizem respeito aos outros, ao mesmo tempo que reconhecem uma identidade social — como pais e filhos, como membros de uma classe, de uma religião ou de uma etnia, como vizinhos e como amigos, como profissionais, ou mesmo porque reconhecem uma nacionalidade. Algumas destas identidades nacionais são seguramente escolhidas pelos indivíduos, mas um número significativo surge como o que é “recebido” na sua existência: seguramente reconhecido, mas adquirido involuntariamente e frequentemente imperecível. A renúncia à família, à fé ou ao país, nem sempre é uma opção, já que provoca um profundo mal-estar. Estas identidades sociais são tão expressivas como outras formas de vida colectiva e muitas implicam, explicitamente, um conjunto de deveres, o que impossibilita que os indivíduos possam encarar a vida colectiva como meramente instrumental.
Se uma dessas identidades sociais que implica um conjunto específico de deveres é a do cidadão, então uma das formas de vida colectiva será a comunidade política. Esta é a segunda razão para defender uma perspectiva alternativa: o reacender do interesse na ideia de comunidade. Há um debate aceso entre liberais e comunitaristas e tem havido discussões incisivas sobre se existe ou não uma concepção significativa de comunidade no mundo moderno, que possa ser consistente com a autonomia persistente dos indivíduos. O tema da comunidade tem sido encarado de diversas formas e frequentemente pelas mesmas pessoas que têm manifestado preocupação por aquilo que consideram o vazio relativo da concepção de cidadania do individualismo liberal. Uma tese que tem sido defendida de forma consistente na bibliografia tem sido que o mundo moderno ou não tem ou perdeu qualquer sentido de comunidade. Para alguns não se trata verdadeiramente de uma perda, mas de um ganho palpável, sobretudo quando reflectiam sobre as comunidades fechadas e hierarquizadas do mundo pré-industrial. Fugir ao círculo mortal destas comunidades só podia beneficiar o indivíduo em termos de ganhos de liberdade e autonomia. Outros, contudo, lamentaram o declínio da solidariedade e da coesão social que as comunidades antigas alegadamente tinham, sendo que este declínio seria o corolário do triunfo do indivíduo. Outros ainda olharam, por vezes com uma nostalgia doce e franca, para as comunidades políticas do mundo antigo como espaços em que a vida era efectivamente vivida como “um todo” e onde os indivíduos coexistiam de forma solidária. Estas pessoas rapidamente acordaram dessa nostalgia, concluíram que estavam simplesmente a dormir e que tais sonhos nada têm que ver com o mundo moderno. Mas precipitaram-se, porque se o pensamento político ocidental alguma vez considerou em conjunto os temas da cidadania e da comunidade, foi na tradição do republicanismo cívico, que tem origem no pensamento ético e político de Aristóteles. Esta tradição, reforçada e modificada por uma sucessão de pensadores políticos posteriores que vão de Maquiavel a Rousseau, passando pelo pensamento republicano inglês e americano dos séculos XVII e XVIII, é a que enfrenta de forma mais cogente os temas gémeos da cidadania e da comunidade.
É minha convicção que a tradição do republicanismo cívico merece atenção por duas razões importantes. A primeira é que é um teste à pertença total a uma comunidade política. Este teste, através do qual o indivíduo se torna cidadão, equivale ao desempenho de deveres que decorrem do exercício de cidadania. No republicanismo cívico, a cidadania é uma actividade ou uma prática e não um mero estatuto, de tal forma que o não empenhamento nessa actividade ou prática equivale de facto à negação da cidadania. Segundo, o republicanismo cívico reconhece que o empenhamento dos cidadãos só acontece se for apoiado. Mas isso não significa que a simples autorização ou a criação de oportunidades garanta, só por si, o desempenho dos deveres que são inerentes à prática da cidadania: significa apenas que os cidadãos devem sentir-se suficientemente motivados. O republicanismo cívico é uma escola de pensamento bastante exigente. Numa comunidade assim não há conforto acolhedor. Os cidadãos são convocados para trabalhar, para realizar tarefas rigorosas e importantes relacionadas com os próprios fundamentos da sua identidade. Pode e deve efectivamente haver um sentido de pertença, que pode não estar associado à paz interna, mas, mesmo que esteja, não é o tipo de paz que permita uma despreocupação privada e descontraída, muito menos um desdém pelas preocupações cívicas.
[…] O meu argumento será, tendo em conta a tradição do republicanismo cívico, que […] longe de destruir a autonomia privada, os apoios institucionais que motivam os indivíduos para que se envolvam na prática da cidadania tornam possível alcançar um grau de autonomia moral e política, que a perspectiva baseada nos direitos não consegue garantir. […] O republicanismo cívico […] defende que a vida política — a vida do cidadão — não é só a forma de convivência humana mais inclusiva, mas é a forma de vida mais elevada a que os indivíduos podem aspirar […].
O argumento que se segue não depende da alteração da natureza humana. A cidadania pode não ser uma prática natural para os seres humanos […], mas não é seguramente uma prática para a qual estejam congenitamente incapacitados. Para além disso e para o caso desta discussão parecer extravagante, se não irremediavelmente utópica, o que se está a defender é mais do que um ideal a que se pode aspirar: é um padrão para avaliar as instituições e as práticas das nossas sociedades, e para orientarmos as nossas próprias actividades políticas. É neste sentido que os conceitos “cidadão” e “comunidade” partilham características importantes com outros termos do discurso político, como, por exemplo, “justiça” e “liberdade”. Aspiramos a ser justos e livres, mesmo sabendo que nunca chegaremos a sê-lo perfeitamente. Mas esse conhecimento nunca nos faz abandonar os nossos ideais, nem nos leva a considerar que esses conceitos são irrelevantes ou desajustados ao mundo em que vivemos. Julgamos o mundo em que vivemos pela justiça e pela liberdade que exibe. A sugestão que avançamos aqui é que também o devemos julgar em função do modo como realiza ou não os ideais de cidadania e de comunidade.
Numa comunidade política o que é partilhado é a identidade, que nasce em parte da autodeterminação e em parte da história e da língua comum ou da ocupação persistente de um território. A solidariedade e a coesão políticas resultam da igualdade de uma identidade partilhada, que é, pelo menos em parte, autodeterminada e escolhida. Por outras palavras, a solidariedade política e a coesão não decorrem da partilha de uma história e de uma língua, e assim sucessivamente. Quando nos descrevemos como americanos, canadianos, ingleses, portugueses ou alentejanos, não nos estamos a identificar politicamente. Podemos estar a dizer algo acerca das nossas raízes ou acerca da nossa herança cultural, mas na medida em que essas raízes são vividas de forma diferenciada e que as heranças culturais são diversamente interpretadas, nada estamos a dizer sobre o empenho envolvido na identidade política conscientemente reconhecida e assumida. É esta escolha da identidade política que dá origem à solidariedade e a coesão numa comunidade política. E é enquanto “cidadãos activos” que escolhemos.
É claro que é verdadeiro que nascemos no interior de redes de relações sociais, económicas e políticas, que não escolhemos. E aí reside justamente parte da dificuldade de qualquer tentativa para tornar significativa a prática da cidadania numa comunidade política do mundo moderno. Contudo, ao longo dos últimos duzentos anos ou mais, muitas pessoas pensaram conseguir forjar — através de revoluções, rebeliões e guerras de independência — novas identidades para si, ou tentaram dar expressão política a identidades que já tinham. Isto ocorreu em quase todos os países do mundo ocidental […]. Esta é uma das lições mais subversivas da história para o projecto da comunidade política. Mas não por causa das revoluções ou das guerras terem resultado, algumas vezes ou frequentemente, na prática da cidadania. Claramente não resultaram. É que a guerra e a revolução têm sido necessárias para a escolha de uma identidade política. Por isso, esta é igualmente uma das lições subversivas de muitos autores da tradição do republicanismo cívico: por exemplo, é um aspecto bastante vincado tanto por Maquiavel como por Rousseau.
Não podemos esperar que a prática da cidadania cresça só porque os políticos e os pensadores políticos assim o desejam ou exortam as populações para a alcançar. Não é, como mais uma vez a tradição do republicanismo cívico procura deixar claro, uma prática natural dos seres humanos, nem uma actividade que espontaneamente escolham. Os seres humanos “naturais”, “não cívicos” ou “pré-cívicos”, têm de ser moldados para desempenharem o seu papel de cidadãos. É esta a tarefa da educação em sentido amplo. Mas a educação tem de ser apoiada e reforçada por um conjunto predominante de costumes e práticas dirigidas para a manutenção de um ideal cívico. Isso pode implicar uma religião civil ou a profissão de uma fé na comunidade. A prática da cidadania implica que, ao contrário do que acontece no mundo moderno, uma porção bastante mais substancial da nossa vida seja vivida publicamente. Não significa que não tenhamos uma vida privada; significa simplesmente que ser cidadão implica ser politicamente activo e que a actividade política acontece no domínio público.
É igualmente importante distinguir entre os laços que ligam os cidadãos uns aos outros e o altruísmo. Há seguramente em muitas pessoas um reservatório de altruísmo que as leva a dar sangue, a participar em causas meritórias, ou a despender tempo, esforço e dinheiro em organizações de apoio aos mais desfavorecidos. Mas cidadania não é altruísmo: é o reconhecimento dos objectivos da comunidade como os nossos próprios objectivos, é participação na sua escolha e é o empenhamento na sua realização. O altruísmo é a resposta que um ser humano dá a outro. A cidadania é exclusiva: não é à humanidade de uma pessoa que se responde, mas ao facto de que ele ou ela é concidadão ou estrangeiro. Ao escolher uma identidade para nós, passamos a reconhecer quem pertence e quem não pertence à nossa comunidade política, mas também a reconhecer aqueles que são inimigos potenciais. A cidadania corta com formas de universalismo religioso ou secular e envolve o reconhecimento, sempre que for necessário, daquilo que consideramos prioritário para a nossa comunidade política. Isto não implica a assunção de uma postura agressiva relativamente aos estrangeiros. Significa apenas que ser cidadão nem sempre implica tratar os outros como seres humanos. Mais uma vez, esta é uma ideia que reside no próprio coração da tradição do republicanismo cívico.
[…]
Não encontro palavra mais apropriada do que “amizade” para caracterizar as relações que devem existir entre os indivíduos para que uma comunidade possa funcionar. […] É a amizade, mais do que, por exemplo, a “virtude cívica” ou a “civilidade”, que se deve procurar para alcançar o que se pode chamar de comunidade, uma vez que é este tipo de laço entre os indivíduos que a cria. […] É a amizade que moraliza as acções dos indivíduos autónomos e que cria os cidadãos.
[…]
A sobrevivência de uma comunidade depende tanto da sua capacidade para se proteger, como da educação e da formação do mais novos. Os cidadãos têm deveres e responsabilidades nestas áreas, que passam a ser o próprio objecto do juízo político. Mais, a comunidade deixaria de o ser se os seus cidadãos não reconhecem igualmente deveres e responsabilidades para com aqueles que, de alguma forma — por causa da idade ou de doença, por exemplo — estejam incapacitados.
Não se supõe que a prática da cidadania, como a temos vindo a definir, seja “natural” para os indivíduos enquanto seres autónomos ou para quaisquer outros, no sentido em que conduz necessariamente as relações entre os concidadãos, para formas que conduzam à sobrevivência da comunidade. A forma de vida dos membros de uma comunidade política é altamente artificial. Não quer dizer que os cidadãos sejam maldosos, quer apenas dizer que ignoram, até ao momento em que se envolvem com os seus concidadãos na discussão política destas questões, as condições necessárias para manter essa forma de vida, bem como a conduta necessária para a extinguir.
Todas estas discussões políticas identificam uma comunidade e autorizam uma forma de vida apropriada. A autoridade das regras e das normas de conduta, e dos propósitos substantivos da comunidade, derivam da avaliação pública dos seus cidadãos. E, uma vez que continuam a ser autónomos, está permanentemente aberta a reavaliação da qualidade das regras e das normas e dos propósitos que antes estabeleceram. […]
O que a comunidade faz não é acidental ou mecânico, nem um subproduto das actividades discretas dos indivíduos, mas é consciente e intencional. A deliberação torna-se necessária entre os cidadãos que, por serem diferentes e autónomos, podem genuinamente discordar sobre a resposta à questão “Como devemos viver em conjunto?”. A coordenação entre agentes autónomos que discordam de forma genuína, mas que se respeitam mutuamente, é alcançada na avaliação pública dos assuntos de interesse comum. A avaliação política é, então, o exercício da capacidade de autonomia dos indivíduos enquanto membros de uma comunidade. Os princípios que são constitutivos do conceito de comunidade, são também constitutivos da forma de vida — ou da “constituição” no sentido greco-romano — da comunidade em causa. […] Ao agirem, os cidadãos usam a sua capacidade de deliberar sobre assuntos de interesse comum. Os juízos que fazem são aqui cruciais e, uma vez que estão na base de todos os outros, são os que fornecem à comunidade de que são membros a sua identidade.
A cidadania assim concebida é difícil de alcançar no mundo moderno: aos potenciais cidadãos falta os recursos necessários para se envolverem na prática da cidadania; falta-lhes a oportunidade e falta-lhes a atitude necessária — por outras palavra, falta-lhes a motivação.
Os recursos têm sido encarados como a alavanca necessária para que os indivíduos se tornem agentes activos neste mundo. Para qualquer tipo de actividade, incluindo a prática da cidadania, são necessários certos recursos. Alguns relacionam-se com aquilo que o liberalismo político identifica como direitos civis, políticos e legais. Outros relacionam-se com recursos económicos e sociais. Por exemplo, sem saúde, sem educação e sem um rendimento razoável, os indivíduos não têm capacidade para serem agentes efectivos no mundo e as possibilidades e a prática da cidadania ficam excluídas. Estes direitos e recursos têm de ser assegurados para os cidadãos, uma vez que a cidadania é uma actividade igualitária.
A mera habilitação os cidadãos desta forma, embora seja necessária, não é, seguramente, suficiente para a prática da cidadania. O ambiente institucional tem de ser apropriado. Tem de haver espaços em que potencialmente todos possam tomar parte, possam fazer alguma coisa. No estado moderno, isto significa a descentralização de funções e tarefas políticas. Nem tudo o que é necessário ser feito para tornar a vida possível no mundo moderno pode ser descentralizado, mas muito mais pode considerar-se possível ou usualmente permitido — da mesma forma que menos do que é usualmente possível pode ser feito ao nível do estado-nação. O que se deve procurar é a criação e o alargamento de oportunidades para um autogoverno dos cidadãos. Não é necessário que esse autogoverno seja concebido em sentido político estrito, em que por “político” se quer dizer “o que produz efeito em qualquer membro de uma comunidade, e o que está aberto a alteração através da acção colectiva por parte dos seus membros”. O autogoverno pode referir-se a quaisquer tarefas e actividades públicas em que a comunidade se queira envolver. As iniciativas locais podem assim responder e atribuir-se a “públicos” particulares que são mais reduzidos em amplitude e dimensão do que o todo de qualquer comunidade.
Todavia, mesmo a habilitação e as oportunidades não são, em conjunto, suficientes para a prática da cidadania. É necessário encorajar uma atitude particular, uma atitude que não só disponha os indivíduos a reconhecer os seus deveres enquanto cidadãos, mas que também os motive para o seu cumprimento. O problema que se deve ultrapassar é o do “oportunista”. A variedade e a diversidade que dão vitalidade à comunidade política não poderão ser verdadeiramente alcançadas se houver indivíduos que, por inclinação ou por egocentrismo, reneguem os seus deveres de cidadãos, o que destrói a “harmonia”. A solução é a educação. E aqui o republicanismo tem uma concepção mais ampla do que o individualismo liberal. Os cidadãos são aprendizes durante todas as suas vidas, e a educação, no sentido de formar o carácter apropriado para o empenhamento voluntário na prática da cidadania, nunca cessa. […]
[…] A viabilidade do republicanismo cívico depende dos “hábitos do coração”. Esta é a lição central da tradição do republicanismo cívico. A frase “hábitos do coração” pertence a Tocqueville, mas é o que Maquiavel queria dizer com boas leis, boa religião e bons exemplos; ou o que Rousseau queria dizer com moeurs; ou o que Hegel queria dizer com compreensão ética. Não há quantidade de participação política ou de democracia económica suficiente para a prática da cidadania numa comunidade política, se ou até que um acordo externo tenha sido interiorizado. É isto que o republicanismo reconhece.
[…] Não é possível que o estado-nação do mundo moderno possa vir a ser como a polis antiga — uma sociedade em que todos estão face a face e se conhecem, pelo menos de reputação. […] O tamanho, a complexidade e a heterogeneidade impedem essa possibilidade. Todavia, isto não significa que, usando as palavras de Oliver Wendell Holmes, em tempo de “perigos claros e actuais” — como foram os casos da Grã-Bretanha de 1940, ou do EUA depois de Pearl Harbor — não possa emergir um sentido de comunidade: a ideia de que todos têm o mesmo atributo, e que o máximo que devem uns aos outros é tentar escapar à ameaça comum. Estes momentos são raros do ponto de vista do estado-nação.
Tamanho, complexidade e heterogeneidade são obstáculos relativamente a qualquer tipo de consenso nacional, excepto em circunstâncias isoladas. Por outro lado, significam que vivemos em sociedades plurais. Os seres humanos podem ou não ser animais sociáveis; é um facto que vivem em sociedades compostas por grupos diversos que vão desde o tipo informal, como a família, até formas altamente organizadas, como um sindicato ou um partido político. Nenhum ser humano pode viver uma vida completamente satisfatória, uma vida verdadeiramente humana, sem os laços que o ligam a estes grupos. Nas sociedades modernas há diversos pontos de entrada para os indivíduos. Estes podem não existir em número suficiente ou não serem os adequados, mas é a sua variedade que caracteriza as sociedades modernas e que estas tornam possível. Nas sociedades como as nossas, é aí que se encontra a comunidade. Porquê?
A ideia de comunidade tem menos que ver com organizações formais do que com o sentimento de pertença ou de compromisso. E este existe para com aqueles que partilham interesses, ou posições, ou propósitos, e também é para com aqueles que, por qualquer razão, são incapazes de cuidar ou de perseguir os seus próprios interesses. Consiste na procura simultânea do bem dos outros e do bem próprio, ou mesmo na anulação deste em detrimento daquele. Trata-se de uma aproximação às relações sociais segundo o espírito aristotélico de “concórdia”. É isto que cria o senso de comunidade e é isto que cria os cidadãos.
O argumento é que se criamos os cidadãos, estamos a criar a comunidade. A cidadania, tal como é concebida pelo republicanismo cívico, implica a comunidade. Se estiverem reunidas as condições para a prática da cidadania, então estarão reunidas as condições para a existência da comunidade. Há certos deveres que todos os cidadãos devem realizar, como, por exemplo, escolher os líderes políticos e fiscalizar a sua acção, pagar impostos e, sempre que for necessário, defender os arranjos políticos que, por criarem ordem, permitem alcançar outros propósitos e objectivos. Mas isto não esgota as áreas da vida pública em que os deveres de cidadania podem ser exercidos. Uma vez que as sociedades modernas são plurais e heterogéneas, os cidadãos que estão devidamente motivados descobrirão que há bastante mais para fazer. Em larga medida, ao escolher onde participar e quando o fazer de facto, os indivíduos estarão a criar uma comunidade. A comunidade encontra-se, por isso, não na organização formal, mas onde quer que haja indivíduos que levam a prática da cidadania a sério. O problema é gerar esse compromisso […].