Qualquer pessoa tem várias crenças. Acreditas que o mundo é redondo, que tens um nariz e um coração, que 2 + 2 = 4, que há muita gente no mundo, algumas como nós outras não. Quase toda a gente está de acordo com estas crenças. Mas também há discordâncias. Algumas pessoas acreditam que há um Deus, e algumas não. Algumas acreditam que a medicina convencional é a melhor maneira de lidar com todas as doenças, e algumas não. Algumas acreditam que existe vida inteligente algures no universo, e algumas não. Quando as pessoas discordam, trocam argumentos e provas e tentam persuadir-se mutuamente. Aplicam com frequência designações injuriosas ou lisonjeadoras às crenças em questão. “Isso é falso”, “Isso é irracional”, “Não tens nenhuma prova”, ou “Isso é verdade”, “Tenho boas razões para acreditar”, “Eu sei”.
Usamos estas designações porque há propriedades que queremos que as nossas crenças tenham: queremos que sejam verdadeiras em vez de falsas; queremos ter boas razões em vez de más para acreditar nelas. A teoria do conhecimento ocupa-se destas propriedades, da diferença entre crenças boas e más. A sua importância na filosofia tem origem em duas fontes, uma construtiva e uma destrutiva. A fonte construtiva é que os filósofos tentaram frequentemente encontrar melhores formas de obter crenças. Por exemplo, estudaram o método científico e tentaram ver se é possível descrever as regras científicas que podemos seguir de modo a termos a maior possibilidade de evitar crenças falsas. O racionalismo, o empirismo e o bayesianismo, descritos adiante neste livro, são filosofias construtivas desta espécie. A fonte destrutiva é que a filosofia foi frequentemente apanhada no conflito entre dois conjuntos ou sistemas de crenças. Por exemplo, as pessoas religiosas tentam às vezes encontrar razões filosóficas para se acreditar em Deus, e as pessoas anti-religiosas tentam às vezes encontrar razões filosóficas para mostrar que é irracional acreditar em Deus. Deste modo a teoria do conhecimento — ou epistemologia como também é chamada, da palavra grega episteme que significa conhecimento — pode ver-se igualmente envolvida na tentativa de encontrar melhores formas de adquirir crenças e de criticar as que já temos.
Este capítulo introduz as ideias e a terminologia básicas da teoria do conhecimento. Liga a tentativa de melhorar as nossas crenças e arbitrar os conflitos entre sistemas diferentes com as ideias fundamentais do tema. A ideia central aqui é a importância das questões acerca dos géneros de crenças que queremos ter. O capítulo acaba com duas visões extremas, o cepticismo profundo e o externismo radical, para mostrar a importância destas questões.
Até recentemente, a maior parte dos filósofos que trabalharam em teoria do conhecimento não deram muita atenção às diferentes formas pelas quais as crenças e os modos como as adquirimos podem ser satisfatórios ou insatisfatórios. Eles não perguntaram: Que qualidades queremos que as nossas crenças tenham? E que qualidades não queremos que tenham? A razão disso é que os filósofos com frequência pensaram que a resposta era óbvia: queremos que as nossas crenças sejam verdadeiras e não falsas. Como veremos mais tarde (em particular no capítulo 5), esta resposta não é óbvia. Mas, concentrando-se no desejo de verdade, a maior parte dos filósofos até recentemente descreveram vários ideais para as crenças: modos pelos quais as nossas crenças e os modos como as adquirimos podem ser perfeitamente organizados. Os racionalistas descreveram um ideal no qual argumentos tão poderosos como os de uma prova matemática poderiam demonstrar a verdade de todas as crenças que precisássemos. Os empiristas descreveram um ideal no qual as provas com base no que vemos, ouvido ou de algum modo percepcionado poderia dar uma prova adequada para todas as nossas crenças. Um ideal epistemológico contemporâneo, defendido pelo movimento Bayesiano em teoria da probabilidade e teoria do conhecimento, visa descrever os modos pelos quais podemos descobrir exactamente quão provável é cada uma das nossas crenças, tendo em conta as provas que possuímos.
Neste livro discutiremos cada um destes ideais. Uma questão importante acerca de cada um é: serão os seres humanos capazes de cumprir este ideal? Poderemos ter crenças assim? Mas outra questão igualmente importante é: Qual será o preço de satisfazer este ideal? Para ter crenças assim teremos de perder algo de valor?
Um ideal epistemológico muito simples é o de coerência. A coerência é ter crenças que não apenas têm individualmente sentido, mas que se ligam num padrão com sentido. Se acredito que todos os gatos são inteligentes, que o animal do meu vizinho é um gato, e que o animal do meu vizinho é estúpido, então as minhas crenças são incoerentes. Não podem ser todas verdadeiras, e a partir de algumas delas posso dar boas razões para discordar de outras. As minhas crenças podem ser incoerentes igualmente por outras razões. Posso acreditar em muitas coisas que constituem uma forte prova de algo, e no entanto acreditar no oposto. Isto acontece frequentemente quando as pessoas se enganam a elas próprias. Suponhamos, por exemplo, que alguém sabe que o seu filho se mete em lutas na escola, sabe que os professores têm receio dele, sabe que muitas outras crianças estão proibidas de brincar com ele, mas que ainda assim se engana a si mesmo pensando que o seu filho é um anjinho amoroso: as crenças de tal pessoa não serão coerentes.
Por que razão deveremos querer que as nossas crenças sejam coerentes? Uma das razões é que as crenças incoerentes têm tendência para incluir muitas crenças falsas. Outra é que crenças incoerentes são difíceis de defender perante pessoas que as desafiem ou ataquem. Assim, a coerência é um ideal que podemos pôr a nós próprios. Podemos tentar fazer as nossas crenças serem tão coerentes quanto possível. Isto não significa que as crenças de qualquer pessoa poderão ser sempre totalmente coerentes. Todos os seres humanos estarão provavelmente sempre sujeitos a maus raciocínios e a enganaram-se a si mesmos. Somos assim. Mas é um ideal que podemos tentar realizar. É também um ideal que alguém pode decidir não procurar, provavelmente porque pensa que entra em conflito com outro ideal qualquer, tal como o de ter ideias novas e interessantes. No entanto, mesmo para este ideal epistemológico muito simples, há questões a que é preciso responder acerca do preço de o visar e de quão próximo da sua realização se podem realmente aproximar os seres humanos.
Ao discutir as crenças, os filósofos usam uns quantos conceitos centrais. É difícil definir qualquer deles em termos que todos os filósofos aceitem, porque as definições estão normalmente associadas com teorias acerca do conhecimento, precisamente as teorias que iremos comparar neste livro. Mas se considerares os exemplos abaixo, irás quase de certeza concluir que são conceitos com que já estás familiarizado. Toda a gente os usa na vida quotidiana, de um modo geral e impreciso, ainda que não usem as mesmas palavras que os filósofos. (No que se segue irei frequentemente escrever uma palavra em itálico para indicar que é uma palavra que deve ser tida em atenção, ou em negrito se está entre os termos epistemológicos listados no Glossário no fim do livro.)
Racional/irracional
O Jorge tem um encontro com a Sofia, que é loura. Ela decide à última da hora não sair com o Jorge nessa noite, e ficar em casa a estudar. O Jorge fica furioso e decide que todas as louras são más. Nunca mais confiará numa loura. Isto é particularmente estranho uma vez que a sua mãe e a irmã, que sempre o trataram com muita gentileza, são louras. Mas daquele dia em diante, por muito amigável, delicada ou prestável que uma loura seja, o Jorge interpretará sempre o seu comportamento como mau.
A crença do Jorge em que todas as louras são más é uma crença irracional. Não tem origem no pensamento cuidadoso mas num impulso súbito e irritado que continua a agarrá-lo. (Falando de forma mais cuidadosa, podemos dizer que o modo como o Jorge adquiriu aquela crença foi irracional: foi irracional o Jorge adquirir aquela crença naquela altura e daquele modo.) Podemos dizer que foi uma crença louca e estúpida, embora o Jorge possa não ser nem louco nem estúpido. Muitos filósofos pensam que muitas das crenças das pessoas, incluindo crenças aceites por muitas gerações, são irracionais. São, em aspectos importantes, como as crenças do Jorge acerca das louras. As crenças supersticiosas como, por exemplo, a crença de que é má sorte um gato preto atravessar-se no nosso caminho, são boas candidatas a irracionais. Alguns filósofos defendem que todas as crenças religiosas são irracionais, e que é irracional acreditar numa diferença objectiva entre bem e mal. Muitos filósofos, é escusado dizer, discordam.
Compara o Jorge com a Sónia. A Sónia tem um pai cruel e o irmão é traficante de droga. Nenhum deles mostra qualquer afecto ou consideração por ela. Na verdade, à excepção de dois dos seus professores na escola, todos os homens que tiveram algum papel na sua vida foram maus. Contudo, quando lhe fazemos perguntas acerca da sua atitude para com os homens, ela diz: “Há muitos que são maus. Mas encontrei alguns decentes, de modo que tenho uma pequena esperança neles”. Isto não parece irracional. É uma crença racional na medida em que não afirma mais do que as provas a que tem acesso sugerem, e deixa em aberto possibilidades que não são eliminadas por essas provas. Uma conclusão a tirar é que muitas vezes uma crença racional tem de ser expressa de forma mais subtil do que uma irracional em resposta às mesmas provas. A crença racional irá dizer menos frequentemente “todos” ou “nunca”.
Verdadeiro/falso
Supõe que há um mecanismo no universo que garante que sempre que um gato preto se atravessa no caminho de uma pessoa, num futuro próximo algo de mau acontece a essa pessoa. Nenhum ser humano sabe da existência deste mecanismo, que opera segundo princípios físicos que os seres humanos nunca compreenderão. Por conseguinte, a crença em que é má sorte um gato preto atravessar-se no teu caminho é verdadeira. (Pelo que a crença de que os gratos pretos que se atravessam no nosso caminho em nada alteram a probabilidade da ocorrência de acontecimentos maus é falsa.) Mas ainda assim pode não haver qualquer boa prova disso: as combinações de gatos que se atravessam no caminho e os acontecimentos maus são demasiado subtis para que nos apercebamos delas. Por isso, a crença de que os gatos pretos dão má sorte é verdadeira, embora não existam boas provas a seu favor; é verdadeira apesar de a crença de que é verdadeira ser irracional. Pelo que as crenças irracionais podem ser verdadeiras. Esta pode ser uma conclusão surpreendente, mas é manifestamente correcta. Uma conclusão menos surpreendente é que as crenças racionais podem ser falsas. Podem existir razões muito fortes para acreditar em algo embora isso seja falso.
Provas
Os cientistas fazem experiências para encontrar provas a favor e contra as teorias científicas. Os detectives procuram provas demonstrando quem cometeu crimes. As provas podem assumir formas muito diferentes. O comportamento dos animais numa tarefa de aprendizagem, o padrão da luz no visor de um telescópio ou microscópio, uma carta confessando uma acção — tudo isto e muito mais, em circunstâncias apropriadas, poderá ser considerado provas. Frequentemente quando se produz uma prova é com o fim de convencer alguém a mudar a sua maneira pensar, da crença para a descrença, da descrença para a crença, ou da neutralidade para qualquer delas. Sendo assim, a prova tem de ser de modo a que as pessoas que se pretende persuadir acreditem nela, tem de ser tal que quando elas pensam nela, se forem racionais, terão tendência para alterar as suas crenças. Desse modo, as provas produzidas pela defesa num julgamento podem ser um testemunho que mesmo um júri inclinado a condenar terá de levar a sério. Analogamente, as provas a favor de uma teoria científica poderão ser os resultados de uma experiência que mesmo alguém que acredite numa teoria rival terá que admitir ter sido realmente efectuada e ter dado realmente os resultados que deu.
Raciocínio e argumento
Quando as provas apoiam uma crença isso faz as pessoas pensarem que pode ser verdadeira. Devido a essas provas, fazem alguns raciocínios favoráveis à crença. Há muitas espécies de raciocínios. Às vezes, para persuadir alguém, não apresentas provas algumas, mas dizes, “Supõe que…” e depois tiras conclusões. Um advogado de defesa diz: “Suponha que outra pessoa além do meu cliente estava escondida em casa nessa noite”, e de seguida mostra como é que essa pessoa misteriosa poderia ter cometido o crime e colocado a mala roubada do seu cliente na cena do crime. O júri pensa sobre isto e é conduzido através de passos de raciocínio pelo argumento do advogado. De seguida pode concluir: “Outra pessoa poderia ter feito isto” ou “se outra pessoa pudesse ter entrado em casa, poderia ter feito isto”. Às vezes o raciocínio pode mostrar que uma crença é verdadeira sem usar qualquer prova. Por exemplo, supõe que um estudante diz a um bibliotecário: “O prazo de entrega terminou a 1 de Fevereiro e hoje é 1 de Março; a multa é 50$00 por dia, de modo que devo 1450$00”, e o bibliotecário responde: “Mas este é um ano bissexto, pelo que me deves 1500$00”. O raciocínio do bibliotecário mostra que a crença do estudante está errada sem ser necessário apresentar qualquer nova prova.
Justificado/injustificado
Imagina Pedro, que vive em Portugal e não sabe nada acerca dos animais da América do Norte. Ele nunca viu um alce ou um esquilo, e não sabe que género de animais são. A sua família faz uma viagem a Seattle, e no avião dão-lhe um livro, em inglês, com o título Animais da América do Norte. Na realidade o livro é uma brincadeira, e a maior parte da informação está errada. Em particular, a foto e a descrição de um alce são a de um esquilo, e a foto e a descrição de um esquilo são a de um alce. Em Seattle ele vai ao jardim zoológico e vê um alce. Pensa que está a ver o animal chamado “esquilo”. Não é despropositado ele acreditar nisso, dado o que leu e o que está a ver. Com base nessa informação, a sua crença de que está a ver o que se chama um esquilo é uma crença justificada. A sua irmã Joana, que tem muito mais informação acerca dos animais da América do Norte, olha para o grande ruminante com grandes chifres e pensa imediatamente “É um alce”, e a sua é também uma crença justificada. Muitas teorias do conhecimento são teorias de quando as crenças de uma pessoa são justificadas. Uma crença é justificada quando se baseia em informação que faz a adopção dessa crença ser uma estratégia melhor para conseguir a verdade do que a sua recusa. As pessoas tiram com frequência conclusões que não se podem justificar com a informação que têm. Por exemplo, se o Pedro pensar que uma vez que os alces têm chifres e que a palavra “alcedo” é parecida com “alce”, os alcedos também têm chifres, então a informação ele tem é insuficiente para justificar a sua crença, a menos que tenha também alguma razão para acreditar que animais cujos nomes são parecidos são também eles parecidos.
Conhecimento/ignorância
O Pedro ignorava os nomes dos animais da América do Norte. Ignoramos todos muitas coisas: há muitas perguntas para as quais não sabemos as respostas. Provavelmente, nenhum ser humano sabe se há vida noutros planetas. Provavelmente, nenhum ser humano sabe como conseguir a paz universal. Provavelmente, nenhum ser humano sabe se o número de números primos gémeos (como 3 e 5, 11 e 13, 1,001 e 1,003) é infinito. Há muita gente que tem crenças acerca destas coisas. Algumas das suas opiniões são racionais e algumas são justificadas. Mas não se segue que qualquer destas opiniões seja considerada conhecimento. Para saber que há vida noutros planetas, uma pessoa teria de ter uma teoria poderosa de como a vida se desenvolve ou ter provas directas produzidas por essa vida. Para saber como conseguir a paz universal, uma pessoa teria de ter uma receita para produzir a paz e uma razão muito convincente que mostrasse como e por que razão ela funcionaria. Para saber que há um número infinito de números primos gémeos, uma pessoa teria de ter uma demonstração matemática correcta deste facto. Em resumo, e de forma bastante grosseira, para conhecer algo, a tua mente tem de estar ligada ao facto, e essa ligação tem de ser de alta confiança. Isto faz o conhecimento parecer muito especial e raro. Contudo, falamos como se soubéssemos muitas coisas. Quase toda a gente sabe os nomes dos seus amigos ou das suas amigas, e sabe que têm um nariz na cabeça. A maior parte das pessoas sabe que a Terra gira em torno do Sol e que 12 multiplicado por 13 é 156. Um sinal disto é que se pode confiar na maior parte das pessoas para dar informação segura acerca destas coisas. Visto deste modo, não é surpreendente que haja muitas controvérsias acerca do conhecimento: acerca do que é o conhecimento e acerca da questão de saber quanto conhecimento temos. Porque é ao mesmo tempo algo que parece bastante difícil de alcançar e algo que pensamos possuir em grande quantidade.
Nenhuma destas explicações era uma verdadeira definição. Havia nelas demasiados termos vagos e inexplicados: por exemplo, a ideia de uma ligação de “alta confiança” entre a mente e um facto. Mais adiante neste livro serão examinadas definições mais precisas destes termos. (Vê o capítulo 6 para mais elementos acerca do conhecimento, e vê a questão 15 no fim deste capítulo para mais elementos acerca da diferença entre crenças justificadas e racionais.) Mas as explicações provavelmente recordaram-te o suficiente acerca destes conceitos para que possas compreendê-los. O ponto importante a compreender agora é que todas estas palavras podem ser usadas para descrever características desejáveis e indesejáveis, boas e más, das nossas crenças. Não é de maneira alguma óbvio que exista apenas um género de características desejáveis das nossas crenças, de modo que estes aspectos bons e maus podem misturar-se em padrões complicados. Em particular, repara nas três complicações seguintes.
Estas três complicações são análogas às complicações que surgem sempre que aplicamos vários géneros diferentes de qualidades boas e más. Em particular, são análogas às complicações que surgem em ética, quando tentamos compreender as qualidades boas e más das acções humanas. Aí também verificamos que um bom resultado pode ser obtido por um mau método, como quando alguém ataca um rival por invejas mesquinhas e, desse modo, impede acidentalmente o rival de cometer um assassínio. E verificamos que um mau resultado pode ser obtido por um bom método, como quando uma pessoa salva a vida de um banhista que está a afogar-se, e ele comete depois vários assassínios. Podem igualmente justificar-se acções opostas, como quando duas pessoas estão num edifício em chamas e uma se precipita para fora de modo a sobreviver para cuidar dos seus filhos e a outra se precipita para o interior para salvar algumas crianças que estão lá presas.
A analogia com a ética é de grande alcance. Aplicamos muitas das mesmas designações quando avaliamos acções e raciocínios: cuidadoso, descuidado, seguro, desajeitado, (im)preciso, (ir)responsável, eficaz, insípido e por aí adiante. Temos na vida quotidiana padrões e critérios para os modos como agimos e como formamos as nossas crenças, padrões e critérios que a filosofia pode tentar compreender e talvez mesmo melhorar.
Os filósofos que trabalham em teoria do conhecimento têm tentado determinar quão boas são as nossas crenças e quão boas poderiam ser. Querem avaliar as crenças que efectivamente temos e sugerir formas de obtermos crenças melhores. Obviamente, estes dois objectivos estão ligados: se um filósofo pensar que as nossas crenças são em geral racionais e verdadeiras, então ele ou ela estará menos inclinado a sugerir mudanças radicais na forma como obtemos novas crenças, ao passo que se um filósofo pensar que as nossas crenças são um aglomerado de confusões e falsidades, então terá tendência para sugerir formas muito diferentes de obter novas crenças ou para ficar desesperado. Assim, há três questões centrais a que a teoria do conhecimento tenta responder:
A resposta à primeira questão pode parecer óbvia. Queremos que as nossas crenças sejam verdadeiras, racionais e baseadas em provas. Mas supõe que um filósofo te tinha persuadido de que não conseguimos obter muitas crenças verdadeiras. Poderás então decidir aspirar à racionalidade em vez da verdade. Ou supõe que um filósofo te persuadiu de que usar raciocínios para basear crenças em provas resultará em muito menos crenças verdadeiras do que com um outro método: por exemplo, confiando na autoridade de alguma tradição. Nesse caso, podes decidir aspirar a crenças verdadeiras em vez de crenças baseadas em provas.
Quase todos os filósofos querem que aspiremos a ambas, à verdade e à racionalidade. Diferem, contudo, na importância relativa que dão a estas e outras boas qualidades das crenças. (Para mais elementos sobre este tema vê o capítulo 5.) Quanto à questão de saber quão melhor podem ser as nossas crenças do que são, os filósofos dividem-se entre o que se poderá chamar os campos “conservador” e “radical”. Nos primeiros dias da revolução científica, os filósofos eram muito optimistas acerca das possibilidades do conhecimento humano. Propuseram formas de basear as crenças na razão e nas provas que esperavam que conduzissem a crenças igualmente mais racionais e mais frequentemente verdadeiras. (Algumas destas formas são discutidas nos capítulos 2, 3, e 4.) Muitos destes filósofos procuravam formas de usar a razão e as provas que tornassem desnecessário confiar na fé, ou na tradição e na autoridade. Os primeiros filósofos tinham tendência para ser muito menos optimistas acerca de quão melhor o nosso conhecimento pode ser. E os filósofos mais recentes, nos séculos XIX e XX, são também menos propensos a sugerir novas formas radicais de obter crenças. Assim, a este respeito, os filósofos que escrevem depois dos primeiros anos da ciência moderna são mais como os filósofos que escreveram antes desses anos. Contudo, uma diferença importante é que os filósofos modernos normalmente consideram o método científico entre as formas normais de adquirir conhecimento. Além disso, os filósofos do século XX, em particular, tenderam a analisar o modo como obtemos de facto o conhecimento em vez de propor novos modos radicais de adquiri-lo. (As sugestões mais radicais tiveram tendência para ter origem na epistemologia bayesiana, discutida no capítulo 9.)
Para vermos como as diferentes respostas a estas três questões podem ser combinadas, considera duas visões extremas, o cepticismo profundo e o externismo radical. (“Cepticismo” e “externismo” são termos-padrão em teoria do conhecimento. Eu acrescentei as designações “profundo” e “radical” para mostrar que estou a descrever formas particulares destas posições.)
Cepticismo profundo
Este cepticismo responde à questão “Que qualidades devem ter as nossas crenças?” com “Deveríamos ser capazes de dar boas razões para mostrar que são verdadeiras”. Responde à questão “Que qualidades têm as crenças que efectivamente temos?” com “Não podemos dar boas razões pelas quais elas são verdadeiras”. E responde à questão “Que qualidades podem ter as nossas crenças?” com “Os seres humanos não são capazes de ter crenças que possam saber que são verdadeiras”. O cepticismo profundo dá uma descrição pessimista muito forte das possibilidades do conhecimento humano. (Uma forma de cepticismo mais moderada pode ser menos pessimista.)
Que razões podem existir para o cepticismo profundo? Eis três argumentos a seu favor.
externismo radical
O externismo responde à questão “Que qualidades devem ter as nossas crenças?” com “A verdade é a qualidade mais importante das crenças; outras características, como a racionalidade, são simplesmente formas de tornar mais provável que uma crença seja verdadeira”. Responde à questão “Que qualidades têm as crenças que efectivamente temos?” com “Muitas delas, especialmente as crenças acerca do mundo que nos rodeia, são verdadeiras”. E responde à questão “Que qualidades podem ter as nossas crenças?” com “Há muitos modos pelos quais os seres humanos, individualmente e em cooperação, podem ser fontes de informação fidedignas acerca do seu meio”.
Eis três argumentos a favor do externismo radical.
O cepticismo profundo e o externismo radical são visões muito diferentes. Mas nota que não são exactamente opostas, uma vez que partem de respostas diferentes à primeira questão, “Que qualidades devem ter as nossas crenças?” O cepticismo profundo pressupõe que a qualidade mais importante das nossas crenças é podermos estar certos de que são verdadeiras; e tenta então mostrar que não podemos estar certos de que muitas dos nossas crenças são verdadeiras. Por outro lado, o externismo radical pressupõe que a qualidade mais importante das nossas crenças é exactamente o serem verdadeiras, quer possamos quer não ter certeza disso; e tenta então mostrar que muitas das nossas crenças são verdadeiras, ainda que não possamos saber com toda a certeza que crenças são essas. Quer o cepticismo profundo quer o externismo radical podem estar errados. Mas até termos decidido quais são as qualidades mais importantes que as nossas crenças devem ter, não devemos ter a impressão de que se uma posição está correcta a outra tem de estar errada. Dados os pressupostos que cada posição faz acerca dos objectivos da crença, ambas podem estar ambas certas. Voltaremos a discutir as questões ligadas ao cepticismo profundo e ao externismo radical. (Vê especialmente os capítulos 3, 5, e 8.) Por agora, o importante é ver como as respostas às três questões influenciam as teorias acerca do conhecimento. Queremos modos de adquirir crenças que produzam crenças verdadeiras, crenças racionais, crenças que sejam verdadeiras e racionais, crenças de que possamos ter a certeza e que sejam justificadas, ou o quê? Quão mais verdadeiras, mais baseadas em provas, ou mais racionais poderiam ser as crenças dos seres humanos? A teoria do conhecimento tenta responder a questões como estas. É importante ver nestas questões a interacção de considerações acerca dos géneros de crenças que podemos ter e considerações acerca dos géneros de crenças que queremos.
Pode-se encontrar discussões acessíveis de crença, razão e dos objectivos da teoria do conhecimento em Martin Hollis, Invitation to Philosophy, Blackwell, 1985, capítulos 1 e 2 e em W. V. Quine e Joseph Ullian, The Web of Belief, Random House, 1978, capítulo 1. Os capítulos 1 e 2 de Adam Morton, Philosophy in Practice, Blackwell, 1996, são também relevantes. O capítulo 1 de Epistemologia Contemporânea, Edições 70, 1990, começa com o cepticismo como ponto de partida para abranger alguns dos temas deste capítulo. No entanto, o livro de Dancy não é introdutório. Em Mary Tiles e Jim Tiles, An Introduction to Historical Epistemology, Blackwell, 1993 são discutidas questões acerca de como os objectivos da epistemologia mudaram durante a sua história. No capítulo 1 de Alvin Plantinga, Warrant: The Current Debate, Oxford University Press, 1993, fazem-se e discutem-se distinções fundamentais entre crenças racionais e justificadas e discutem-se também as semelhanças entre padrões em moral e em epistemologia. Podem encontrar-se selecções de obras clássicas de filosofia relevantes para este capítulo em John Cottingham, Western Philosophy: An Anthology, Blackwell, 1996. Vê a parte 1, secção 7, de David Hume, “Scepticism Versus Human Nature”, e a parte 1 secção 10, de G. E. Moore “Against Scepticism”. (Estes são títulos de Cottingham, e não de Hume e Moore.)