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Crítica
10 de Fevereiro de 1998   Filosofia da mente

O mistério da mente

Desidério Murcho

Os problemas da filosofia da mente e das ciências da cognição são hoje em dia extremamente estimulantes por procurarem estudar fenómenos que até há pouco tempo muitas pessoas consideravam que estavam para além do alcance da ciência.

Muitos dos temas contemporâneos da filosofia da mente foram estudados por filósofos como Platão e Aristóteles, assim como Tomás de Aquino, Descartes e Locke. Todavia, só com os estudos de John Dewey (1859–1952) e Rudolf Carnap (1891–1970) a moderna filosofia da mente adquire o perfil que hoje conhecemos. A obra de The Concept of Mind, de Gilbert Ryle (1900–76), é considerada por muitas pessoas a obra fundadora da filosofia contemporânea da mente. Todavia, no longo caminho que conduziu à fundação da psicologia como ciência empírica, a obra A Psicologia de um Ponto de Vista Empírico, de Franz Brentano (1838–1917), publicada em 1874, anunciava já um dos temas fundamentais que iria fazer parte da filosofia da mente moderna: o problema da intencionalidade.

Tanto Dewey como Carnap procuraram compreender o fenómeno da consciência de um ponto de vista naturalista. Mas a abordagem naturalista dos fenómenos mentais em geral, e da consciência em particular, apesar de se ter revelado profícua, tem enfrentado grandes dificuldades, conduzindo até por vezes alguns filósofos à ideia de que tal coisa será impossível. Talvez seja este misto de extrema dificuldade e resultados de tão amplo alcance que explica que hoje em dia a filosofia da mente seja uma das áreas mais estudadas na filosofia analítica, a par da ética.

O problema da abordagem naturalista da mente é que parece implausível — além de minar a convicção religiosa de que os seres humanos possuem uma alma imortal, criada à imagem de Deus. Mas se fosse impossível explicar cientificamente os fenómenos mentais isso significaria que o universo não seria susceptível de ser inteiramente explicado de um ponto de vista naturalista, o que violaria a ideia basilar da ciência: a ideia da completude essencial das explicações naturalistas do universo — ideia que tão frutuosa tem sido nos últimos 4 séculos, permitindo explicar cada vez mais fenómenos, incluindo o que antes se considerava serem manifestações directas da vontade divina. O desafio da filosofia da mente é, pois, imenso e todas as dificuldades parecem pequenas se pensarmos no que está em jogo.

Os fenómenos mentais são aparentemente muito diferentes dos fenómenos físicos, químicos, biológicos, etc. Por isso, qualquer tentativa de reduzir os fenómenos mentais a fenómenos biológicos, químicos, etc. É extremamente difícil. O chamado “problema da mente-corpo” procura precisamente resolver a questão de saber qual é exactamente a relação entre os dois tipos de fenómenos.

Pense, por exemplo, numa dor de dentes. O aspecto mental da sua dor de dentes é o facto de ser algo que o leitor sente; e por mais que eu lhe diga que a sua dor de dentes é um certo fenómeno químico ou neurológico no seu cérebro, isto parece pura e simplesmente falso. Os fenómenos físicos que ocorrem no seu cérebro são susceptíveis de serem observados por qualquer pessoa que tenha os instrumentos relevantes à sua disposição; mas a sua dor de dentes é algo que só o leitor pode realmente sentir — e observar disposições de redes neuronais e fenómenos físicos no cérebro de alguém é algo muito diferente de sentir uma dor de dentes.

Esta é uma das dificuldades que enfrentamos na filosofia da mente: a perspectiva típica da ciência, a perspectiva da terceira pessoa, parece insuficiente no caso dos fenómenos mentais porque a perspectiva da primeira pessoa parece, neste caso, ser algo de intrínseco aos fenómenos mentais. “What is it Like to Be a Bat?”, de Thomas Nagel, e “What Mary Didn't Know”, de Frank Jackson, são dois artigos muitíssimo discutidos hoje em dia e que colocam dificuldades, ou limites, às explicações científicas dos fenómenos mentais.

Mas há outros problemas. O problema da identidade pessoal é um dos mais agudos, e já Locke e Hume o tinham enfrentado. Este problema decorre, uma vez mais, do carácter “diáfano” da mente. Não é muito difícil ter uma ideia intuitiva da identidade de objectos materiais, como o nosso corpo, por exemplo. Mas como explicar a identidade da nossa mente? É óbvio não apenas que eu estou a escrever este artigo, mas que quem está a escrever este artigo é alguém que tem uma história pessoal, uma biografia, determinada. Mas como poderemos compreender uma biografia e uma identidade de algo imaterial, como a mente?

No Sentimento de Si António Damásio apresenta várias teorias científicas que procuram resolver alguns dos problemas clássicos da filosofia da mente: o que é um fenómeno mental? O que é a intencionalidade? Como se explica a identidade pessoal? O que é a consciência? Muitos filósofos naturalistas podem agora respirar de alívio: algumas das suas ideias parecem confirmadas pela ciência. São os teólogos que têm agora de repensar a sua concepção de alma, pois a concepção tradicional tem, definitivamente, os dias contados.

Desidério Murcho
Livros (Junho de 2000)
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ISSN 1749-8457