Há algum tempo ouvi o Reitor da minha Universidade, um físico por formação, expressar o seu desconforto pela sugestão de o lema da Faculdade das Artes e Ciências incluir a expressão “compromisso com a verdade”. A palavra deixa as pessoas nervosas, advertia ele, e leva-as a perguntar, “a verdade de quem?” Um colega sociólogo, secundando as reservas do Decano, observou que, enquanto as suas investigações trouxerem, claramente, conhecimento, ele não está preocupado com a “verdade”. Alguns de nós comentámos que, a não ser que as conclusões sejam verdadeiras, elas não são verdadeiramente conhecimento, apenas algo que se pensa ser conhecimento; e eu fiz os possíveis por explicar que não é pelo facto de as pessoas discordarem sobre o que é verdade, que a verdade se torna relativa à perspectiva de cada um. Mas, presentemente, o Plano Estratégico para a faculdade especifica inovações curriculares criadas pelas “questões fundamentais” que têm sido colocadas “acerca da presumível universalidade e objectividade da ‘verdade’”.
Provavelmente já quase todos ouviram não exactamente esta história, mas outras histórias essencialmente semelhantes, ainda que passadas em outros locais e com personagens diferentes; pois as ideias que o meu Reitor expressou constituem, presentemente, uma quase ortodoxia no meio académico, encarada em certos meios — assumidamente de forma mais frequente nas humanidades e nas ciências sociais do que no departamento de física — como indicadores de sofisticação intelectual e rectidão moral.
Naturalmente, os proponentes desta quase ortodoxia — a Alta Destituição, segundo a expressão engraçada de Anthony Gottleb — divergem em pequenos pontos. Mas concordam que o pretenso ideal da investigação honesta, do respeito pela prova e o compromisso com a verdade, é uma espécie de ilusão, uma barreira de fumo que disfarça as operações de poder, política e retórica; e que aqueles entre nós que pensam ser relevante o facto de nos comprometermos ou não com a verdade, aqueles que não sentem necessidade de usar citações ameaçadoras por precaução quando escrevem acerca de factos, conhecimento e provas, etc., são casos perdidos de ingenuidade. Como se isto ainda não fosse suficientemente mau, as feministas e as multiculturalistas sugerem entre elas que, na nossa ingenuidade, somos cúmplices do sexismo e do racismo, e os sociólogos e os retóricos da ciência suspeitam entre eles que somos de um conformismo reaccionário relativamente ao complexo militar e industrial.
Face a uma dupla acusação tão intimidante de ingenuidade e atraso moral, alguns optam pela atitude da avestruz, aparentemente à espera que se ignorarem a Alta Destituição durante algum tempo, ela desapareça. Mas uma velha pedante como eu começa a sentir-se… enfim, como o proverbial canibal entre os missionários.
Um canibal atento notará, no âmago da Alta Destituição, uma profunda intolerância pela incerteza e uma falta de vontade em aceitar que o menos perfeito é bem melhor do que rigorosamente nada. E assim, frequentemente, as premissas verdadeiras e falíveis são transformadas nas conclusões falsas e cínicas: o que é aceite como prova conhecida, bastantes vezes, não é nada disso, logo o conceito de prova conhecida não passa de um embuste ideológico; o juízo individual do valor da prova depende das convicções anteriores de cada um, logo não há padrões de objectividade para a qualidade da prova; a ciência não é sagrada, logo deve ser uma espécie de truque de confiança.
O que é mais urgentemente necessário é uma compreensão realista da nossa situação epistemológica, de como as provas se podem tornar complicadas e do grau de dificuldade que uma investigação séria pode ter. Pois não há realmente necessidade de se desistir da objectividade da verdade e da prova, desde que estas sejas falíveis quanto baste. Claro que isto será apenas o começo do trabalho, pois em seguida colocam-se as questões do lugar das ciências dentro da investigação em termos gerais, das diferenças entre ciência e literatura, e das raízes do relativismo, e a asserção da Alta Destituição em representar os interesses dos oprimidos e dos marginalizados.
As provas são complexas e ramificantes, muitas vezes são confusas, ambíguas e enganadoras. Pense-se na controvérsia sobre o meteorito descoberto na Antárctica, que se julgava ser proveniente de Marte com cerca de 4 biliões de anos, e que continha o que possivelmente eram excrementos de bactérias fossilizadas. Alguns cientistas espaciais pensam que isto é a prova da existência de vida em Marte; outros pensam que os restos de bactéria podem ter sido apanhados quando o meteorito chegou à Antárctica; e outros ainda, pensam que o que parecem ser excrementos de bactérias fossilizadas são apenas meros artefactos da instrumentação. Como sabem eles que a emissão destes gases quando aquecidos indica que o meteorito vem de Marte? Que o meteorito tem cerca de 4 biliões de anos? Que os excrementos de bactérias fossilizadas têm este aspecto? — como uma linha num jogo de palavras cruzadas, as razões ramificam-se em várias direcções.
O grau de razoabilidade de uma palavra num jogo de palavras cruzadas depende do quanto esta é apoiada correctamente pela definição e por quaisquer palavras já preenchidas que venham a interceptá-la; do grau de razoabilidade independente das outras palavras, isto é, independentemente da que está em questão; e de quantas palavras cruzadas foram já preenchidas. Da mesma forma, o grau de justificação de uma convicção depende da forma como está bem sustentada pela prova experimental e pelas razões, isto é, pelas convicções anteriores; do grau de justificação independente destas convicções anteriores, isto é, independentemente da convicção em questão; e do número de provas relevantes que a prova inclui.
A qualidade da prova para uma asserção é objectiva, dependendo do quanto esta sustenta a asserção em questão, de quão abrangente e de quão independentemente certa ela é. Os pressupostos de uma pessoa acerca da qualidade da prova são, contudo, perspectivados, dependendo das suas convicções anteriores. Suponhamos que o leitor e eu estamos a trabalhar no mesmo jogo de palavras cruzadas, mas que preenchemos de forma diferente uma palavra longa e muito interceptada; o leitor pensa que uma palavra de intercepção correcta tem de ter um “F” no meio, enquanto eu penso que tem de ter um “D”. Suponha que o leitor e eu estamos no mesmo comité de selecção, mas o leitor acredita na grafologia, enquanto eu penso que isso é um disparate; o leitor pensa que a forma como o candidato escreve os “G” é relevante para se saber se ele é de confiança, enquanto que eu faço pouco da sua “prova”. Ou, para utilizar um exemplo real: em 1944, quando Oswald Avery publicou os seus resultados, até ele tentou rodear a conclusão para a qual eles apontavam: que o DNA constitui o material genético. Isto porque a sabedoria então aceite era que o DNA é composto pelos quatro nucleótidos ordenados regularmente e por isso era demasiado estúpido e demasiado monótono que cada molécula transportasse a informação necessária. Mas, em 1952, quando Alfred Hershey e Martha Chase publicaram os seus resultados, a hipótese do tetranucleótido tinha já sido desacreditada; e nessa altura pôde-se observar que Avery já possuía uma boa prova, em 1944, que o DNA, e não as proteínas, constitui o material genético.
A investigação pode ser difícil e exigente, e muitas vezes enganamo-nos. Por vezes, o obstáculo é a falta de força de vontade; não queremos realmente saber a resposta a todo o custo para nos darmos ao trabalho de a descobrir, ou não queremos realmente saber e esforçamo-nos bastante para não a descobrir. Penso no detective que não quer realmente saber quem cometeu o crime, apenas quer recolher provas suficientes para obter uma condenação, no académico que se preocupa menos em descobrir as causas da desarmonia racial do que em receber uma grande bolsa para investigar o assunto — e na minha própria falta de inclinação para correr para a biblioteca para consultar o artigo que me pode vir a obrigar a refazer meses de trabalho.
À semelhança do que se passa com outras coisas, a investigação corre melhor quando a vontade e o intelecto, em vez de puxarem para sentidos opostos, trabalham juntos. É por isso que a integridade intelectual é valiosa. Mas mesmo com a melhor vontade do mundo, mesmo quando queremos realmente descobrir, muitas vezes falhamos. Os nossos sentidos, imaginações e intelectos são limitados; nem sempre podemos ver, conjecturar ou raciocinar suficientemente bem. Com engenho, conseguimos conceber meios para ultrapassar as nossas limitações naturais, desde pôr a mão atrás do ouvido para ouvir melhor, passando por dar nós em cordas ou fazer entalhes em paus para não perder a conta, até aos microscópios de electrões altamente sofisticados e técnicas para construir modelos em computador. Claro que o nosso engenho também é limitado.
Quem quer que estude a natureza de alguma parte ou aspecto do mundo — o físico e o detective, o historiador e o entomólogo, o químico quântico e o jornalista de investigação, o académico literário e o cristalógrafo que usa raios X — trabalha sobre parte de uma parte do mesmo e vasto jogo de palavras cruzadas. Uma vez que todos eles investigam o mesmo mundo, por vezes as suas linhas interceptam-se: um investigador médico confia na árvore genealógica feita por um historiador amador na sua busca de um gene defeituoso responsável por uma forma hereditária rara de pancreatite; os historiadores da antiguidade utilizam uma técnica concebida para a detecção do cancro da mama, para decifrar quais os traços nos “postais” de chumbo nos quais os soldados romanos escreviam para casa.
O sucesso das ciências da natureza tem sido tal que as palavras “ciência” e “científico” são muitas vezes usadas honorificamente como termos multiusos para o elogio epistemológico. (Para garantir que percebemos a ideia, os actores que prometem que o novo e científico Skip deixará as nossas roupas mais limpas, usam batas brancas.)
Infelizmente, a utilização honorífica dissimula o facto, de outra forma óbvio, de que nem todos os cientistas, nem apenas eles, são investigadores bons, honestos, meticulosos e imaginativos. Alguns cientistas são preguiçosos, alguns são incompetentes, outros são azarentos, poucos são desonestos; e imensos historiadores, jornalistas e detectives são bons investigadores.
A ciência não é nem sagrada nem um truque de confiança. Os padrões de provas mais fortes ou mais fracas, de investigações mais bem ou mal conduzidas, não são inerentes às ciências; e não existe nenhum modo de inferência, nenhum “método científico” exclusivo das ciências e que garanta a obtenção de resultados verdadeiros, provavelmente verdadeiros, ou aproximadamente mais verdadeiros ou empiricamente mais adequados. No entanto, no que diz respeito aos feitos cognitivos humanos, as ciências da natureza têm sido notavelmente bem-sucedidas; não porque usem um único método racional de investigação, indisponível aos outros investigadores, mas em parte devido às muitas e variadas “ajudas” que conceberam para ultrapassar as limitações humanas naturais. Os instrumentos de observação aumentam o alcance sensorial; os modelos e metáforas ampliam os poderes da imaginação; as técnicas de criação de modelos matemáticos e estatísticos possibilitam um raciocínio complexo; e o envolvimento cooperativo e competitivo de muitas pessoas na grande malha de subcomunidades quer numa geração quer ao longo de várias gerações possibilita a divisão do trabalho e a combinação de provas, mas também — ainda que, seguramente, com algumas falhas e de forma imperfeita — tem ajudado a manter a maior parte dos cientistas, na maior parte do tempo, razoavelmente honestos.
A ciência, como a literatura, requer imaginação. Os cientistas, tal como os autores literários esticam e ampliam a linguagem que herdam: uma substância não proteica no núcleo das células é designada por “nucleína” e mais tarde vem a ser conhecida por “ácido nucleico”; depois temos “ácido desoxirribonucleico”; depois “ácido ribonucleico”, posteriormente conhecido como “ácidos ribonucleicos”, no plural; e depois — mais de um século após a “nucleína” ter sido nomeada — “RNA de transferência”, “RNA mensageiro”, e por aí fora. Os cientistas, como os autores literários, confiam nas metáforas: a molécula “chaperone” (molécula acompanhante), a Hipótese Spaghetti, as experiências “uncle-and-aunt” (tio e tia), investimento parental, e por aí fora. Mas daí não se conclui, e não é verdade, que a ciência seja indistinta da ficção. A chave está na distinção entre o imaginativo e o imaginário.
Os cientistas dedicam-se à escrita, e os autores literários dedicam-se à investigação; mas a palavra “literatura” implica uma série de formas de escrever, enquanto que a palavra “ciência” implica uma série de formas de investigação. Um cientista sonha com estruturas, classificações e leis que, caso ele seja bem-sucedido, são reais, e explicações que, caso ele seja bem-sucedido, são verdadeiras. A imaginação, e a exploração imaginativa de explicações imaginadas, vem primeiro; mas para ir além da mera especulação, deve vir primeiro uma apreciação da verdade provável da conjectura imaginada, que em si requer muitas vezes imaginação na concepção das experiências e instrumentos. E isto requer que metáforas científicas sérias, aquelas que não são mero discurso pitoresco mas instrumentos intelectuais operacionais, sejam proferidas com um detalhe literal: o que é que, literalmente, se investe na reprodução? O que é que constitui a maximização do retorno? Conforma-se o comportamento reprodutor ao previsto?
O progresso nas ciências é caprichoso e irregular, e cada passo, tal como cada palavra num jogo de palavras cruzadas, é falível e passível de revisão. Mas cada avanço genuíno possibilita potencialmente outros, como o faz uma palavra importante num jogo de palavras cruzadas; “nada é mais bem-sucedido que o sucesso”, é a expressão que nos ocorre. Imagine Crick e Watson a verificarem o seu modelo de DNA usando apenas uma régua e um fio de prumo, e a seguir imagine Max Perutz, anos mais tarde, a verificar a sua estrutura para a mais complicada molécula de hemoglobina usando um complexo programa de computador; ou como a partir do (relativamente) simples raio X se acabou por chegar à PET, à TAC, e à ressonância magnética.
Quase todos os investigadores, nas investigações diárias mais comuns, dependem de outros; se assim não fosse, cada um deles teria de começar a sua parte das palavras cruzadas sozinho e do nada. A investigação científico-natural não constitui uma excepção; de facto, é ainda mais assim — o trabalho, cooperativo e competitivo, de uma vasta comunidade intergeracional, é uma tarefa profundamente e inequivocamente social. Mas daí não decorre, e não é verdade, que a investigação científica não sela mais do que um processo de negociação social no qual os cientistas trocam as suas fidelidades teóricas por prestígio, ou que as questões postuladas nas teorias científicas não passem de meras construções sociais.
Contudo, é verdadeiro que tanto a organização interna da ciência como o seu ambiente exterior podem afectar a forma boa ou má como o trabalho científico é executado. Quanto mais equipamento sofisticado é necessário para fazer observações ainda mais apuradas, mais caro tende a ser o trabalho científico. Quando só os governos e os grandes interesses industriais conseguem financiar a ciência, quando os cientistas são tentados a falar prematuramente com a imprensa, alguns conseguem fazer fortunas com o seu trabalho e o negócio dos peritos floresce, não existe nenhuma garantia que os mecanismos que até à data mostraram ser mais ou menos adequados para sustentar a integridade intelectual continuem a sê-lo. Não há fundamento para a complacência.
Parte do conhecimento que as ciências naturais adquiriram poderá, potencialmente, causar graves danos — o conhecimento traz poder, e o poder traz abusos. Evidentemente, daí não se retira, como alguns proponentes da Alta Destituição são levados a concluir, que as ciências naturais afinal não alcançaram um verdadeiro conhecimento. Mas as questões morais e políticas difíceis sobre a distribuição dos recursos e as aplicações do conhecimento não podem ser responsavelmente deixadas para os cientistas resolverem sozinhos. Uma vez mais, não há fundamento para a complacência.
Na investigação científica, e em qualquer espécie de investigação, o que julgamos tratar-se de questões legítimas, às vezes acaba por se revelar um fracasso. Acabou-se por mostrar que as questões acerca das propriedades do flogisto, por exemplo, assentavam numa falsa pressuposição, e por isso não têm nenhuma resposta verdadeira; alguns textos revelam-se de uma ambiguidade que escapa ao autor, e por isso não têm uma interpretação correcta única. Nada disto apresenta qualquer tendência a diminuir a objectividade da verdade. Às vezes, falando descuidadamente, dizemos que algo é verdadeiro para si, mas não para mim. Mas isto também não revela nenhuma tendência para diminuir a objectividade da verdade; o que queremos dizer é apenas que alguma coisa — gostar de gelado de chocolate com pedaços, por exemplo, ou ter mais de dois metros — é verdadeiro a seu respeito, mas não a meu; ou então que acredita em qualquer coisa, mas eu não.
Uma afirmação, ou convicção, é verdadeira se, e somente se, o objecto for como esta o representa; assim, qualquer pessoa que acredite em alguma coisa, ou que faça alguma pergunta, reconhece implicitamente — mesmo que o negue explicitamente — que existe algo como a verdade. A verdade não é relativa à perspectiva; e não podem existir verdades incompatíveis (isto é uma tautologia, uma vez que “incompatível” significa “não pode ser conjuntamente verdade”). Mas existem multas verdades diferentes — verdades diferentes mas compatíveis — que, de alguma forma se combinam. Não quer isso dizer que todas as verdades sobre o mundo devam ser unificadas no sentido estrito dado a esse termo pelos positivistas lógicos, e que elas devam ser redutíveis a uma classe privilegiada expressa num vocabulário privilegiado; nem, em particular, que todas as verdades sobre o mundo devam ser expressas na linguagem dos físicos. Em vez disso, a física fornece o contorno do mapa no qual as ciências sociais e a história sobrepõem um mapa das estradas — os mapas sobrepostos representam, cada um à sua maneira, no seu próprio “vocabulário”, o mesmo mundo real.
Embora o que é verdadeiro não seja relativo à perspectiva, o que é aceite como verdade já o é; embora afirmações incompatíveis não possam ser conjuntamente verdadeiras, fazem-se frequentemente asserções incompatíveis. Mas um omnipresente argumento assustador na Alta Destituição confunde o que é aceite como verdadeiro, aquilo que passa por verdadeiro, com o que é verdadeiro. A partir da premissa verdadeira, falível, de que o que passa por verdadeiro, facto conhecido, prova sólida e investigação bem conduzida não é nada disso, mas apenas o que os poderosos conseguiram fazer aceitar como tal, o que passa por falácia move-se em direcção à falsa e cínica conclusão de que os conceitos de verdade, facto e prova são embustes ideológicos.
Ruth Bleier, por exemplo, queixa-se que a afirmação feita por alguns neurofisiologistas de que existem diferenças na estrutura do cérebro correspondentes às diferenças relacionadas com o sexo na capacidade cognitiva (Bleier acrescenta: “as pretensas diferenças”), assenta em “rnétodos descuidados, descobertas inconclusivas, interpretações infundadas”, já para não mencionar “os compromissos ideológicos não reconhecidos”. Talvez ela tenha razão. Mas se assim for, a conclusão razoável seria: supondo-se que, após reexaminar cuidadosamente as suas pressuposições, determinamos que a questão é legítima, é necessário uma melhor investigação utilizando métodos rigorosos, procurando descobertas mais conclusivas baseadas em interpretações fundamentadas e livres de compromissos ideológicos. Contudo, Bleier aponta para o que passa por falácia e retira a conclusão cínica: o desequilíbrio está em todo o lado, a objectividade é impossível e a “produção social de conhecimento” é condicionada inextricavelmente por “sexo, classe, raça e etnia”.
Quando directamente expresso, o que passa por falácia não é apenas obviamente inválido, mas corre também o perigo de se minar a si próprio; pois se, como afirma a conclusão, os conceitos de verdade, prova e investigação honesta são um embuste ideológico, então a premissa não poderia ser realmente e genuinamente verdadeira, nem poderíamos ter objectivamente boas provas, obtidas através da investigação honesta, de que assim acontece. Habitualmente, contudo, como abreviatura do que se aceita como conhecimento, do que passa por verdade, etc., os cínicos escrevem sobre a “verdade”, isto é, a pretensa “verdade”, sobre o “conhecimento” isto é, o pretenso “conhecimento”, etc. O efeito das citações ameaçadoras consiste em neutralizar a conotação de consecução cognitiva que estas palavras têm implícita; a verdade deve ser assim, mas a “verdade” não precisa de o ser; o conhecimento deve ser verdadeiro, mas o “conhecimento” não precisa de o ser. À medida que as citações ameaçadoras se tornam omnipresentes, a diferença entre verdade e “verdade”, conhecimento e “conhecimento”, factos e “factos” começa a diluir-se; e o que costumavam ser palavras de consecução cognitiva, adquire um tom de desprezo característico: “facto conhecido” — sim, claro…
À medida que se esbate a distinção entre verdade e “verdade”, factos conhecidos e “factos conhecidos”, etc., o que passa por falácia começa a parecer um argumento válido; a ideia de que podem existir verdades incompatíveis começa a soar plausível; e certas formas de relativismo começam a parecer inevitáveis. Faz sentido falar naquilo que é tido como verdade, que é aceite como boa prova, que passa por facto conhecido, apenas em relação a alguém ou a um grupo de pessoas. Assim, se não se distinguir o que é verdadeiro daquilo que é tido como verdade, parecerá que a verdade deve ser subjectiva ou relativa.
Contudo, os proponentes da Alta Destituição não são sempre, nem de forma não ambígua, relativistas; muitas vezes, eles alternam para cima e para baixo entre o relativismo e o tribalismo: entre negarem que faz sentido pensar nos padrões epistemológicos como sendo objectivamente melhores ou piores, e afirmarem que os seus padrões (não brancos, não ocidentais, não masculinos, não científicos) são superiores. Escudados por esta ambiguidade estratégica podem esquivar-se às acusações de que o seu relativismo se mina a si próprio e, ao mesmo tempo, fogem à necessidade de explicar o que torna melhores os seus padrões epistemológicos tribais.
Mas entre os praticantes mais bem-sucedidos desta evasão e elaboração está Richard Rorty, que se esquiva a acusações de relativismo epistemológico, desviando-se para uma espécie de tribalismo de acordo com o qual uma convicção está justificada se, e apenas se, for defensível de acordo com os nossos padrões epistemológicos ocidentais. E é graças a Rorty que a Alta Destituição chegou a ser associada ao pragmatismo. Contudo, isto é muito peculiar, uma vez que o pragmatismo clássico era falível, e não cínico. Aqui temos C. S. Peirce, o fundador do pragmatismo: “Retirada de uma falibilidade contrita, combinada com uma elevada fé na realidade do conhecimento, toda a minha filosofia sempre pareceu crescer”; e William James, que tornou o pragmatismo bem conhecido: “Aqueles que entre nós desistirem da demanda pela certeza, não abdicam por isso da demanda ou desejo da verdade em si mesma”.
Mas Rorty, que escreve que “a visão pragmática é sobre [...] a ‘verdade’, enquanto palavra que se aplica àquelas convicções com as quais podemos concordar” e que a “verdade é inteiramente uma questão de solidariedade”, oferece uma mensagem oposta. Nem vou sequer mencionar os neopragmatistas com um estilo pessoal, como Stephen Stich, que escreve que “uma vez que tenhamos uma perspectiva clara do problema, a maior parte de nós [...] deixa de dar valor ao facto de se terem verdadeiras convicções”; ou Louis Menand, que escreve que o pragmatismo é a visão de que “toda a força de qualquer relato filosófico [...] reside nas consequências anunciadas de acreditar nisso”.
Graças a outros proponentes influentes, como Sandra Harding, a Alta Destituição tem vindo a ser também associada ao feminismo. Isto não é menos peculiar que o rapto do “pragmatismo”, e é ainda mais perturbador. O antigo feminismo, que enfatizava a humanidade comum de homens e mulheres, centrava-se na igualdade, justiça e igualdade de oportunidades. “O fundamental é que as mulheres são mais parecidas com os homens do que qualquer outra coisa no mundo”, escreveu Dorothy Sayers; “elas são seres humanos”. E prosseguiu, advertindo contra o “erro de se insistir que existe um ‘ponto de vista feminino’ agressivo acerca de tudo”. Winifred Holtby declarou a sua aliança a um estilo de feminismo empenhado, não insistindo nas convicções de um pretenso “ponto de vista feminino”, mas falando na “importância primordial do ser humano”.
Mas o feminismo académico contemporâneo oferece uma mensagem essencialmente oposta, ao transformar os estereótipos sexistas que as feministas antiquadas deploravam em novas “formas de conhecimento femininas”, ou ao exigir “uma pesquisa e erudição politicamente adequadas” em vez de uma investigação honesta. E numa derrapagem paralela aproximada, o multiculturalismo transmutou-se de um empenhamento no admirável objectivo da aprendizagem mútua a partir da diversidade cultural para um frouxo relativismo ou para um tribalismo arbitrário.
À medida que as feministas e multiculturalistas radicais passaram a acompanhar a tendência da Alta Destituição, começou a achar-se que supor que existe algo como a verdade, que é possível descobrir a verdade através da investigação, ou que as ciências naturais fizeram multas descobertas verdadeiras, significa albergar tendências políticas retrógradas. Esta ideia é tão trágica quanto bizarra.
Sim, a excessiva confiança em que o que se assume como verdade é verdadeiro — a “praga da confiança excessiva”, segundo a expressão de Peirce — pode ser um instrumento opressor e tem por vezes servido os propósitos sexistas e racistas. Isto faz-nos recordar que o respeito pela prova requer não só a disposição de se abandonar a convicção face a uma prova contrária e de tornar o grau da sua convicção proporcional à força da prova, mas requer também uma vontade de se admitir a possibilidade de se ter andado à volta de uma questão da forma completamente errada, ou que afinal não é uma questão legítima — e admitir quando simplesmente não se sabe.
E é verdadeiro que, quando investigamos, podemos às vezes ferir os sentimentos das pessoas. À medida que caminhamos desajeitadamente rumo à verdade, as provas incompletas por vezes conduzir-nos-ão ao engano de aceitarmos falsidades dolorosas; e algumas das verdades que descobrirmos serão dolorosas, desagradáveis, nada daquilo que teríamos desejado que fosse verdade. Mas, a não ser que fosse possível descobrir como as coisas realmente são, não é possível descobrir que os estereótipos racistas e sexistas são estereótipos, e não verdades; nem descortinar as raízes dos preconceitos racistas ou sexistas ou encontrar uma forma de os ultrapassar; nem saber quais as mudanças que transformariam realmente a sociedade para melhor.
Nem todas as razões para o tão na moda desencanto com a verdade, prova, etc., são intelectuais; parte da explicação é sociológica. Colocando o último em primeiro e o primeiro em último, Jacques Barzun observa, “ao dar valor ao conhecimento, pré-posterizamos a ideia e dizemos: “todos devem realizar investigação escrita para viverem, e esta será considerada uma explosão do conhecimento”. À medida que o pré-posterismo se tornou numa forma de vida académica, as concepções de “produtividade” e “eficiência”, mais apropriadas a uma fábrica do que à busca de conhecimento, consolidaram-se firmemente. O efeito, inevitavelmente, é uma erosão da integridade intelectual.
Somos inundados por catálogos de editores inchados, recheados de apoios brilhantemente inacreditáveis, por um bombardeamento de livros e publicações e um clamor de conferências e encontros nos quais é quase impossível, excepto por pura sorte, encontrar as coisas boas. Não admira, por isso, que muitos escolham a saída mais fácil, actuando em conformidade com a facção que melhor impulsione a sua carreira, ou que muitos deixem cair as exigências da verdadeira investigação, esquecendo que se pode trabalhar durante anos em algo que se vem a revelar um beco sem saída, e que faz parte do sentido da palavra “investigação” não se saber como é que as coisas vão acontecer.
A pseudo-investigação é omnipresente: tanto o raciocínio fraudulento, construindo-se um caso para uma conclusão na qual já se está envolvido desde o começo, sem se ter dado um passo, como, especialmente, o raciocínio inválido, construindo-se um caso para uma conclusão cujo verdadeiro valor lhe é indiferente. Há muito tempo, Peirce previu que quando isto acontecesse, viríamos a “considerar o raciocínio como meramente decorativo. O resultado deste estado de coisas é, claro está, uma rápida deterioração do vigor intelectual [...] O homem perde as suas concepções de verdade e de raciocínio” (lamento dizer que a mulher também). Quando a pseudo-investigação é omnipresente, as pessoas ficam desconfortavelmente cientes, ou semicientes, que as reputações se criam tantas vezes por meio de uma defesa inteligente do que é indefensável ou incompreensível, como por meio do trabalho real, e tornam-se gradualmente cépticas acerca daquilo que ouvem ou lêem. Depressa estas miseráveis citações de desprezo e o que passa por falácia estão em todo o lado. E muitos, com medo de serem enganados ou de serem considerados ingénuos, conseguem autopersuadir-se que a investigação honesta não é realmente possível, nem mesmo desejável.
Como é que se pode ter pensado que este desespero factício poderia representar os interesses dos oprimidos e dos marginalizados? Em parte devido ao facto de que à medida que as universidades tentavam receber mais mulheres e negros como participantes plenos na vida do intelecto, nós deixámo-nos distrair do objectivo inteiramente admirável de fazer a raça ou o sexo de uma pessoa serem pouco importantes no nosso juízo da qualidade da sua mente, e começámos à procura de formas a partir das quais a raça ou o sexo de uma pessoa podem ser só por si uma qualificação para o trabalho intelectual. À medida que a ênfase nos interesses desta ou daquela classe ou género de pessoa foi aumentando, o nosso sentido de humanidade comum e a nossa avaliação das diferenças individuais tem vindo a diminuir gradualmente, até corrermos o risco de esquecermos que a investigação falível — o processo caprichoso e desordenado de tactear e, algumas vezes, agarrar algum conhecimento do mundo — é uma coisa humana, e não uma coisa do homem branco. Isto é muito triste.
Pois “pouco importa como as coisas são [...] nos juízos e afectos depravados dos homens; no entanto [...] a investigação da verdade, que é o acto amoroso ou o seu namoro, o conhecimento da verdade, que é a sua presença, e a convicção da verdade, que é o desfrutá-la, são o bem soberano da natureza humana”. Desta forma, Francis Bacon observou como o “desespero fictício” da possibilidade de descobrir coisas “corta o entusiasmo e o impulso da criação”; e continua: “tudo pela miserável vanglória de se fazer acreditar que o que ainda não foi inventado ou descoberto, nunca será inventado ou descoberto, daqui para o futuro”.