O mundo ocidental vive no sistema judicial mais tolerante de sempre. A pena de morte foi banida da maior parte das sociedades democráticas, ou existe apenas como figura jurídica que nunca se aplica. Os movimentos contra a pena de morte ganharam a causa, a discussão acabou e vingou um certo senso comum que encara a pena de morte como um arcaísmo ultrapassado. Por tudo isto, não é de espantar que os argumentos contra a pena capital tenham adormecido à sombra da sua vitória.
Neste cenário bucólico caberia ao filósofo ultrapassar o senso comum e introduzir algum bom senso nesta matéria, recordando argumentos convincentes e recuperando a racionalidade do abolicionismo. Toda a gente ficaria satisfeita, inclusivamente o filósofo, e este seria o melhor dos mundos. Acontece, todavia, que isto não é assim. Bastam alguns momentos de reflexão para perceber que talvez o abolicionismo não seja tão fácil de defender como poderia parecer. E com mais um esforço podemos perceber que a pena de morte também não é facilmente defensável. Na verdade, bastam alguns momentos de reflexão para perceber que a justificação racional do castigo é um problema no mínimo intrincado.
Antes de prosseguir, devo esclarecer que não irei defender nem atacar a pena de morte para quem cometeu homicídio voluntário, nem mesmo premeditado. Quando nos dispomos a discutir a pena de morte, a reacção habitual é a de considerar que estamos a entender a sua aplicação aos homicidas. Não é isso, no entanto, que irei fazer. Esta discussão é prévia a essa outra. Saber a que casos se deve aplicar a pena de morte é uma discussão que só pode acontecer depois de se saber se a pena capital é eticamente defensável.
Assim, trata-se aqui de discutir a racionalidade da pena de morte em geral, ou da sua abolição. O que procuro saber é se existe pelo menos um caso em que estejamos dispostos a aceitar a pena de morte como eticamente defensável. Mas o ponto da discussão não é saber que caso é esse, mas se à partida, independentemente do caso, podemos defender ou não a pena de morte. Dito de outra forma, esta discussão vai no sentido de saber se podemos racionalmente abolir a pena de morte, por princípio, para todos os casos. Isto não significa, no entanto, que não usemos exemplos de casos, reais ou imaginados, para testar uma qualquer tese.
A discussão que se segue tem como horizonte próximo os artigos de A. Kostler, “The Folly of Capital Punishment” e E. van den Haag, “The Need For Capital Punishment”. A discussão de Koestler e de van den Haag em torno da questão coloca-se no ponto de vista consequencialista: trata-se de saber, feito o cálculo final das vantagens e desvantagens, para onde pende o fiel da balança. Mas questão é discutida em termos ainda mais restritos: que efeito dissuasor tem a pena de morte? Koestler procura mostrar que não tem nenhum; Van den Haag procura mostrar que a questão é indecidível.
Os argumentos de Koestler são sobretudo de ordem histórica e factual: baseiam-se em estatísticas e em acontecimentos históricos. Os argumentos de Van den Haag são sobretudo lógicos e psicológicos: pretendem mostrar que as estatísticas não provam que a pena de morte não tem um efeito dissuasor, e que as pessoas em geral, e os criminosos em particular, são inconsciente ou conscientemente motivados por um cálculo consequencialista dos seus actos.
Devo agradecimentos a todas as pessoas que discutiram comigo este assunto. De algumas dessas conversas surgiram ideias que nunca teria tido sozinho.
A discussão em torno do efeito dissuasor da pena de morte parece ganhar pontos a favor do abolicionismo. Antes de mais, o argumento histórico parece ser evidente por si mesmo. Quando a Inglaterra aboliu a pena capital para os casos de roubo, o roubo não só não aumentou como até parece ter decrescido. Este decréscimo, no entanto, é melhor argumento para aqueles que estão dispostos a argumentar contra a relevância das estatísticas. Na verdade, se não podemos aceitar que o crime por roubo aumente quando é penalizado com a pena de morte, também não podemos inferir, exactamente dos mesmos resultados, que ele diminui com a sua abolição. Se é estranho pensar que as pessoas roubam mais quando arriscam nisso a sua vida, também é estranho pensar que roubam menos quando não arriscam a vida. Assim, este decréscimo apenas serve os que afirmam a irrelevância das estatísticas.
No entanto, o argumento histórico estende-se aos inúmeros países que aboliram pura e simplesmente a pena de morte. Nestes países não se verificou nenhum aumento significativo da criminalidade, o que parece um bom argumento contra os que defendem a racionalidade da pena capital como elemento dissuasor. Assim, pareceria que condenar alguns criminosos à morte não traria nenhuma vantagem social, uma vez que não diminuiria o crime. Por outro lado, a possibilidade de erro judicial, que está sempre em aberto, aconselharia o abolicionismo. No cálculo geral das vantagens e das desvantagens, a pena capital ficaria a perder: não só não ajudaria a combater o crime, como poderia provocar algumas injustiças irreparáveis.
Quem defende a pena de morte em termos consequencialistas tem pois que negar as inferências que os abolicionistas retiram das estatísticas e da história. Estes argumentos têm que ser cautelosos, pois não podem permitir-se negar o valor geral das estatísticas, o que seria absurdo. Mas se concedermos a dúvida perante as estatísticas, então o argumento consequencialista é imediato: perante a incerteza do efeito dissuasor da pena de morte e perante a possibilidade do erro de justiça, a balança cai a favor do lado da pena de morte. Se condenarmos à morte não sabemos se estamos a salvar a vida de alguns inocentes (as possíveis vítimas do assassino dissuadido) ou não; temos a possibilidade de estar a salvar alguns inocentes e a possibilidade de cometer a injustiça de condenar a pessoa errada. Mas se não condenamos à morte não temos possibilidades de salvar os inocentes. Perante a certeza de nada fazer pelo bem social e a possibilidade de o fazer mas não o poder provar, a opção utilitarista é óbvia.
Será? Será assim tão óbvio? Se atentarmos um pouco mais verificamos que as coisas se complicam. Que acontece ao certo se não existir de facto nenhum efeito dissuasor na pena de morte? Acontece que temos a possibilidade de condenar uma pessoa inocente à morte. Ora, os erros jurídicos não são tão pouco frequentes como se desejaria que fossem. Estamos dispostos a arriscar a vida de inocentes em nome duma possibilidade dissuasória que pode não existir? Não podemos fazer como van Den Haag e declarar que entre a vida das futuras vítimas inocentes do assassino e a vida do condenado o cálculo do mal menor faz cair a escolha sobre o último. Em primeiro lugar, porque não podemos falar no plural num caso e no singular no outro porque estamos já a viciar os dados. Em segundo lugar, porque o que faz a diferença no caso do erro judicial é que o condenado é uma pessoa inocente. Assim, o cálculo não é tão claro como poderia parecer.
Chegados a este ponto, restaria discutir se vale a pena tentar negar o valor dos argumentos históricos e estatísticos. Por outro lado, os abolicionistas têm um argumento forte: imaginemos que se provava de forma clara que a pena de morte tinha um efeito dissuasor; aceitaríamos por isso condenar à morte. Mas, com os mesmos argumentos, não seríamos obrigados a aceitar a tortura caso se provasse o seu efeito dissuasor? Ou teríamos ainda a coragem de fazer o cálculo das vantagens e desvantagens? Quantos crimes seria necessário dissuadir para aceitarmos torturar um criminoso durante meia hora? Estas questões parecem mostrar que talvez o consequencialismo não seja o melhor ponto de partida para abordar este assunto.
Por outro lado, a simples ideia de dissuasão talvez não seja muito clara. Podemos aceitar à primeira vista que as pessoas fazem uma espécie de cálculo da relação “vantagem obtida/risco possível” em alguns casos, como no das multas de estacionamento de automóveis. Mas é bizarro pensar que uma pessoa decida não cometer um crime grave, como um homicídio, porque faz o cálculo do risco que corre. Ou que decida não roubar um automóvel porque se arrisca a ser preso. Além de ser uma forma muito estranha de conceber o comportamento ético das pessoas, parece não tomar em consideração o bom senso que estas em geral têm. Por outro lado, se considerarmos que os criminosos, precisamente, não se regem pelo bom senso, não percebo como poderão fazer complicados cálculos utilitaristas.
Nenhuma pessoa com bom senso precisa da pena de morte para não cometer crimes graves, tal como nenhuma pessoa com bom senso precisa de multas elevadas para usar cinto de segurança no automóvel. Certamente que há pessoas irresponsáveis e aparentemente desprovidas de qualquer senso, e ainda menos do bom, mas duvido do alcance dissuasor das penalidades. O único alcance parece ser o de tornar essas pessoas ainda mais irresponsáveis, o que pode parecer irrelevante do ponto de vista consequencialista, mas não o é. De facto, o que se provoca é a propensão para que essas pessoas cometam transgressões à lei sempre que não estiverem a ser vigiadas. E mesmo que estejam a ser vigiadas, têm que o ser de uma forma constante. O automobilista sem bom senso faz 200 quilómetros sem cinto de segurança, e coloca-o apenas quando vê a polícia na estrada 200 metros à frente. Esta situação mostra que esse automobilista erra não só porque não toma a sua própria vida no cálculo que hipoteticamente fez, como erra ao pensar que tem tempo de pôr o cinto de segurança de cada vez que a polícia lhe surge na estrada.
Ora, quem vai cometer um crime grave começa por errar no cálculo primeiro sobre a possibilidade de ser apanhado e acaba por errar ao não perceber que é a sua vida que está em jogo. O resultado é que, se calcula de todo, calcula provavelmente mal. O efeito dissuasor é assim, se não nulo, pelo menos suficientemente ténue para não poder ser invocado como argumento a favor da pena de morte.
Procurei mostrar as dificuldades que se levantam se adoptamos o ponto de vista consequencialista e a ideia da dissuasão. A discussão, neste ponto, parece dar mais razão ao abolicionismo. Mas se abandonamos o ponto de vista consequencialista e a ideia da dissuasão, parece restar apenas o argumento que em geral se ouve sempre que se discute este assunto: o valor sem preço da vida humana. Acontece, porém que este argumento é pouco esclarecedor, se acaso é, de todo, um argumento. Na verdade, é costume os abolicionistas invocarem o valor da vida humana. Para eles o ponto em causa é que o criminoso é um ser humano e que, portanto, ninguém tem o direito de lhe tirar a vida.
Neste momento da discussão podemos perguntar se o ponto de vista de uma ética não-consequencialista não oferecerá menos dúvidas. Neste caso basta alegar o princípio geral do valor da vida humana. No entanto, quem defende a pena de morte fá-lo exactamente porque preza a vida humana, nomeadamente, a vida dos inocentes que foram vítimas do criminoso. Se persistirmos numa ética não-consequencialista e invocarmos o princípio mais geral de não matar seres humanos, então ficamos com os problemas que em geral se levantam nestas éticas e continuamos sem perceber qual é a racionalidade da nossa opção. Invocar um princípio geral que não é nada claro não clarifica nada.
Devemos talvez introduzir outro elemento além da dissuasão. A dissuasão não é certamente o nosso único objectivo no funcionamento dos tribunais. Se fosse, estaríamos dispostos a torturar os grandes criminosos se achássemos que isso podia evitar o crime. Deve portanto haver outros objectivos que pretendem ser alcançados quando condenamos alguém a uma pena qualquer.
Nos casos mais simples, faz-se justiça obrigando o ladrão a repor o que roubou. Mas não nos limitamos a fazer tal. Além disso ainda o condenamos, mesmo que a pena fique suspensa, a algum tempo de cativeiro. Porquê? Porque além de compensar a pessoa lesada pelo roubo, que é o mais elementar acto de justiça, estamos também interessados, para cumprir a justiça no seu aspecto mais completo, em castigar a pessoa que cometeu o crime. Qual é, no entanto, a racionalidade deste castigo?
Se castigar é unicamente a retribuição equilibrada de uma acção criminosa, então é difícil compreender a racionalidade do castigo. O arcaísmo “olho por olho, dente por dente” não parece fazer sentido; além de que ou é impraticável de facto ou conduz a injustiças óbvias. Não podemos prender um homem como Hitler e pretender retribuir-lhe o que ele fez nem podemos matar os filhos de um assassino que matou os filhos inocentes de um inocente cidadão. E ainda que estivéssemos preparados para tomar esta última opção, caso isso não implicasse uma óbvia injustiça, mesmo assim não teríamos conseguido qualquer tipo de retribuição racionalmente aceitável. O próprio facto da retribuição, só por si, não faz qualquer sentido: é pura vingança.
Neste ponto da discussão podemos interrogarmo-nos se, pura e simplesmente, o castigo fará sentido de todo em todo, isto é, se não será um arcaísmo que perdurou no tempo. Não será melhor pensar a justiça sem esse elemento arcaico? Esta é uma hipótese que estou disposto a aceitar, se me mostrarem que, nesse caso, ainda faz sentido falar de justiça. Ora, precisamente, tal não me parece possível. Todos concordarão que se nos limitarmos a exigir ao ladrão que reponha aquilo que roubou não estaremos a fazer justiça alguma. Exigimos castigo.
Podemos tentar compreender o castigo, sem cair em arcaísmos, admitindo que o seu sentido fundamental é a educação. Todos estamos dispostos a aceitar não só que faz sentido um pai castigar o seu filho, como esse castigo tem uma justa medida. Um pai castiga o seu filho de forma diferente quando este parte um objecto propositadamente, ou quando este decide bater no vizinho. Porquê? Porque o que está em causa é a educação do seu filho. O castigo tem o sentido positivo de lhe mostrar que existem coisas que não se devem fazer. E a sua aplicação só é justa se não perder o objectivo educativo de vista. O castigo deve ser proporcional face ao mal cometido.
Assim, podemos argumentar que a educação é o sentido do castigo. Como parece claro que a justiça não pode ser plenamente entendida sem o castigo, segue-se que nos casos em que a educação não é possível não podemos exercer justiça. Uma vez que os casos de pena capital ou prisão perpétua são precisamente, por princípio, casos de pessoas irrecuperáveis, não podemos tentar fazer justiça nesses casos, quer optemos pela primeira, quer optemos pela segunda pena. Estamos então condenados a conceber a justiça destes casos em termos de estrita dissuasão.
Mas se enveredamos pelo caminho da dissuasão não estamos já a pensar, verdadeiramente, em cumprir justiça. Estamos unicamente a tentar tirar o melhor partido possível de uma situação-limite. Mas usar a pena prescrita ao criminoso como dissuasão pode ser eticamente pouco defensável, se aceitarmos, como Kant, que no plano ético devemos tratar as pessoas como fins e não como meios. Mesmo que não aceitemos, à partida, a ideia de Kant, podemos ainda argumentar que tratar o criminoso como um meio para melhorar a sociedade é contraditório, uma vez que o criminoso pode sê-lo exactamente porque usou outras pessoas como meios para melhorar a sociedade, como é o caso dos terroristas políticos, ou como foi o caso de Estaline e de Hitler.
O que se passa é que a diferença é grande, uma vez que dum lado estão pessoas inocentes e do outro está um criminoso irrecuperável. Neste ponto da discussão poderíamos finalmente recolher as armas da argumentação e concluir que quando o criminoso é irrecuperável não há justiça possível. Neste caso restar-nos-ia reconstruir a discussão em torno do efeito dissuasor da pena de morte.
Acontece, porém, que há casos-limite em que não parecemos dispostos a aceitar o castigo como reeducação, mesmo que o criminoso seja recuperável. Por outro lado, podemos argumentar que não há, de facto, criminoso algum que seja irrecuperável. Mas estamos nós dispostos a devolver a liberdade a um homem como Hitler, depois de 10 ou mais anos de cativeiro, se soubermos que ele se tornou um distinto investigador em ética? Parece que não.
Recentemente, um grupo de veteranos franceses da guerra da Indochina descobriu com espanto que um dos conselheiros da guerrilha comunista, que torturava os seus prisioneiros de guerra, é agora um distinto professor na Sorbonne. Esse homem não só é hoje inofensivo, como pode até ser um bom investigador. Estamos dispostos a aceitar que o mesmo tivesse acontecido a Hitler ou Estaline, ou a um indivíduo que planeia com minúcia a morte de 10 funcionários de um banco para roubar dinheiro?
Estes casos parecem mostrar que não estamos dispostos a aceitar a recuperação de alguns criminosos, ainda que ela fosse possível. Mas se aceitarmos a ideia de que o castigo só tem sentido racional se tiver o objectivo de educar, parece que o sentido arcaico do castigo é inultrapassável, isto é, não estamos dispostos a cedê-lo nos casos-limite.
Que fazer então, nos casos-limite? Devemos condenar o criminoso a prisão perpétua com o argumento consequencialista de que a dissuasão pela pena de morte não funciona? Mas por que motivo não condenar à morte, se nestes casos, ainda que a reeducação fosse possível, não estamos dispostos a aceitá-la? A prisão perpétua parece ser apenas uma forma de indecisão: por um lado, não estamos dispostos a andar de metropolitano com um homem que matou milhões de pessoas inocentes, mas que foi castigado e recuperado; por outro também não queremos condená-lo à morte. Se não estamos dispostos a andar com ele no metropolitano, ainda que ele fique recuperado, parece mais coerente condená-lo à morte.
Desidério Murcho