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Crítica
26 de Agosto de 2004   Filosofia

Pela filosofia analítica

François Recanati
Tradução de Fernando Martinho

São cada vez mais numerosos, ainda que muito minoritários na população filosófica francesa, aqueles que se interessam pela, e mesmo que se reclamam da, filosofia analítica. No passado, tratava-se sobretudo de pessoas que, decepcionadas por certos aspectos da tradição filosófica dominante em França, lhe viravam resolutamente as costas a partir do momento em que descobriam, com a tradição analítica, os atractivos do pensamento argumentativo. Actualmente, parece que um interesse pela filosofia analítica é perceptível num público mais vasto. Diferentes factores contribuem para alargar a audiência francesa da filosofia analítica para além do pequeno cenáculo dos filósofos “que se passaram para os anglo-saxónicos”, segundo a sugestiva expressão de Jean-François Lyotard:

O público francês tem, portanto, todas as razões para se interessar pela filosofia analítica. Tem, por outro lado, os meios para se interessar por ela: numerosos textos de filosofia analítica estão hoje disponíveis em francês, e os trabalhos de exegese acumulam-se. Há uma coisa, no entanto, que cruelmente faz falta: uma ideia minimamente precisa do que é a filosofia analítica.

À questão “O que é a filosofia analítica?” pode responder-se com segurança que é a tradição a que pertencem Frege, Russell, Moore, Wittgenstein (o primeiro e o segundo), os neopositivistas, os lógicos polacos da escola de Lvov-Varsóvia, Popper, Quine, Goodman, os filósofos da linguagem comum, Putnam, Rawls, Kripke, etc., ou ainda que é a corrente filosófica actualmente dominante nos países anglo-saxónicos e, mais geralmente, no mundo. Uma resposta deste tipo, todavia, não é muito satisfatória, porque não nos diz o que caracteriza a filosofia analítica como tradição (ou, se se prefere, como movimento). É no entanto muito difícil ir além de uma tal resposta, e caracterizar, ainda que de forma vaga e aproximada, a filosofia analítica, pois existem diferenças muito marcadas entre filósofos analíticos de diferentes épocas, entre as diferentes escolas de uma mesma época, e até entre os diferentes filósofos analíticos de uma mesma escola. Estas diferenças parecem ser insuperáveis, e desencorajam qualquer tentativa de caracterização global — tanto mais que as tentativas de caracterização que foram feitas no passado revelam-se hoje inaceitáveis, na medida em que abraçavam manifestamente o ponto de vista da época em que eram feitas, quando não reflectiam pura e simplesmente a concepção dominante, nessa época, num subgrupo particular de filósofos analíticos. E não faltam filósofos analíticos que sustentem, buscando argumentos na diversificação de interesses assinalada mais atrás, que a própria noção de filosofia analítica, meio século depois do apogeu do positivismo lógico, deixou de corresponder ao que quer que seja de bem definido (5).

É, contudo, uma tal caracterização da filosofia analítica que gostaria de tentar nas páginas que se seguem. De acordo com o conselho de Jean Piel, intitulei esta tentativa “Pela Filosofia Analítica” porque as características que serei levado a atribuir-lhe parecem-me constituir boas características, características filosoficamente desejáveis: de facto, é porque entendo a filosofia analítica do modo que vou expor que eu mesmo me reclamo deste movimento. Mas não tentarei justificar esta avaliação neste artigo, e contentar-me-ei em deixá-la surgir de tempos a tempos.

I

Parece-me que é preciso, para começar, abandonar todas as esperanças de caracterizar a filosofia analítica através de algum traço doutrinal, quer dizer, através de uma tese filosófica particular, porque a filosofia analítica quer-se universal e não exclui a priori nenhuma doutrina particular: enquanto movimento pluralista, a filosofia analítica não é dogmática, contrariamente às escolas que podem aparecer no seu seio. Deixa-se de pertencer a uma escola determinada — o positivismo lógico, por exemplo — se se deixa de aderir à doutrina constitutiva desta escola, mas não existe uma doutrina tal que se deixe de ser um filósofo analítico se se deixa de aderir a ela. De facto, a diversidade de filosofias que fizeram a sua aparição na história do movimento analítico não é de modo nenhum inferior à diversidade de doutrinas aparecidas na história da filosofia em geral. É verdadeiro que algumas doutrinas têm maior atractivo que outras para a maioria dos filósofos analíticos; mas, justamente, muitos deles, pondo, por assim dizer, ênfase no desafio, parecem encontrar prazer na descoberta de novos argumentos a favor das doutrinas aparentemente mais opostas àquelas a que a maioria dos filósofos analíticos adere, e não se sentem desqualificados por causa disso.

O que caracteriza a filosofia analítica não é, portanto, de ordem doutrinal. Não é também um domínio de investigação: se os filósofos analíticos privilegiaram certos domínios de investigação, como a filosofia da linguagem ou a filosofia das ciências, é certo que um filósofo analítico não ficaria diminuído (não perderia ipso facto a sua qualidade de filósofo analítico) se se ocupasse exclusivamente num domínio que os seus colegas tivessem abandonado, qualquer que fosse esse domínio; não há nesta matéria mais dogmatismo do que em matéria doutrinal…

A filosofia analítica caracteriza-se então por um método? Poder-se-ia acreditar que o uso da nova lógica de Frege, Russell et alii na formulação e solução (ou dissolução) dos problemas filosóficos é uma característica essencial da filosofia analítica, mas o facto de a filosofia da linguagem comum ter combatido e recusado este uso impede de ir mais longe nesta direcção. Em vez de um método único, seria preciso invocar um conjunto de métodos; esta solução, contudo, só é credível se se estiver em condições de precisar o que os métodos em questão têm em comum, e é nisso precisamente que reside a dificuldade.

Na minha opinião, a filosofia analítica só pode ser caracterizada — se é que pode sê-lo de todo — por um certo espírito. De que espírito se trata? Talvez, muito simplesmente, do espírito científico! O espírito científico, num sentido que falta definir, animava a filosofia até Kant, e os filósofos analíticos afirmam frequentemente fazer parte dele, passando por cima da reacção romântica dos “grandes” filósofos pós-kantianos que desvirtuaram o sentido do empreendimento filosófico ao precipitar o divórcio entre a ciência e a filosofia.

É preciso, bem entendido, que eu diga o que entendo por “espírito científico”. Em vez de citar Popper, o que nos conduziria onde desejo mas se arriscaria a constituir uma dessas interpretações abusivas dos seus pontos de vista contra as quais protesta constantemente, apoiar-me-ei na declaração liminar do filósofo polaco Ajdukiewicz (6) no “Congrès International de Philosophie Scientifique” que se realizou na Sorbonne em 1935, incentivado pelos positivistas lógicos. “O carácter científico”, diz Ajdukiewicz, “só pode ser atribuído a esse género de esforço intelectual que ultrapassa a consciência individual e se torna um bem comum” (7). A citação seguinte de Reichenbach faz eco a esta declaração de Ajdukiewicz, à qual voltarei um pouco mais adiante:

O carácter social do trabalho científico está na origem da sua força; os recursos da colectividade acrescentam-se ao poder limitado do indivíduo, os erros do indivíduo são corrigidos pelos outros membros da colectividade, e das contribuições respectivas de vários indivíduos inteligentes resulta uma espécie de inteligência colectiva suprapessoal, capaz de encontrar respostas que um indivíduo isolado não poderia nunca descobrir. (8)

A investigação científica, nesta concepção, caracteriza-se pela intersubjectividade. Progride através da crítica mútua dos membros da comunidade científica, que se corrigem uns aos outros. O espírito científico da filosofia analítica reside no facto de a investigação ser igualmente intersubjectiva e de progredir, como na ciência, pela crítica mútua dos membros da colectividade.

A socialização da investigação implica certas obrigações, que Ajdukiewicz glosa do seguinte modo:

Não basta respeitar os princípios da sinceridade intelectual, ou seja, não basta não se deixar guiar, nas opiniões que se defendem, por nada que não seja a convicção sincera apoiada numa reflexão profunda. É-se além disso obrigado a expor apenas o que se sabe exprimir por palavras intersubjectivamente compreensíveis e o que está em condições de estabelecer e justificar, assumindo o compromisso de garantir esta justificação.

Para que a formulação verbal seja intersubjectivamente compreensível, não basta que exista a possibilidade de as nossa palavras serem convenientemente compreendidas por outros, é preciso ainda [que exista a possibilidade de] serem compreendidas no seu sentido próprio. [Por outro lado,] assumimos a responsabilidade de garantir uma justificação quando ela é acessível ao controlo dos outros, que a podem verificar ou repetir. Um trabalho intelectual que não pudesse satisfazer as duas exigências que acabamos de formular não poderia nunca tornar-se um terreno de colaboração e não teria o direito de tirar partido da designação de “ciência”.

A observância destes dois postulados determina o método e a linguagem, restringindo ao mesmo tempo o âmbito do nosso esforço filosófico. Quando queremos satisfazer as duas exigências de que acabamos de falar, não podemos fazer nenhum uso da intuição bergsoniana, nem da “Wesensschau” de Husserl (respeitando no entanto o seu valor nos domínios que lhe são próprios) nem de métodos análogos, visto que os resultados a que estes métodos conduzem não se deixam de todo formular de uma forma intersubjectivamente compreensível e não se prestam a ser justificados de um modo que nos permita o compromisso de apresentar garantias. As teses adquiridas por estes meios podem ser verbalmente comunicadas aos outros, mas então o uso das palavras é apenas sugestivo, não desempenhando estas outro papel que não o de evocar nos auditores as reacções mentais desejadas. Enunciam-se então as teses metaforicamente, faz-se uso de comparações e exemplos, mas não se está em condições de as formular em expressões directas, quer dizer, tais que para serem entendidas baste compreendê-las literalmente (9).

Nesta passagem, Ajdukiewicz deduz da intersubjectividade característica do trabalho científico duas obrigações formais que se aplicam a priori a toda a filosofia de inspiração científica. Em primeiro lugar, é preciso ser claro, quer dizer, literalmente compreensível; por outro lado, é preciso oferecer justificações publicamente controláveis para as suas teses — por exemplo, argumentos explícitos, cuja validade cada um possa comprovar por si mesmo. Mais do que algum elemento de doutrina ou algum método particular, estas duas obrigações formais parecem-me características da filosofia analítica.

O que impressiona desde logo nos filósofos analíticos é, com efeito, a preocupação de clareza e de precisão, e o recurso sistemático a argumentos. Os filósofos analíticos não se contentam, como acontece frequentemente com os outros filósofos (a quem, à falta de melhor termo, chamarei doravante os “não-A”), com afirmações veementes ou metáforas sucessivas; ponderam, e só concedem crédito às suas próprias teses (ou às dos outros) na proporção dos argumentos invocados em seu favor. Por outro lado, no próprio enunciado das teses ou dos argumentos, os filósofos analíticos desconfiam da obscuridade grandiloquente e vaga; querendo antes de mais ser compreendidos, de modo a tornar possível a crítica dos outros membros da colectividade filosófica, procuram a transparência de expressão e empenham-se em precisar tanto quanto possível os seus argumentos e análises, sem se contentarem com uma imagem ou uma alusão. Daí uma atenção minuciosa dedicada ao detalhe, atenção minuciosa que constitui, como a clareza e o recurso sistemático aos argumentos, um dos traços característicos da filosofia analítica.

Disse-se muitas vezes que os filósofos analíticos são filósofos do detalhe: ocupam-se do microscópico em filosofia, ao passo que os não-A são mais atraídos pelo macroscópico. Os atributos respectivos destas duas tradições são os seguintes: de um lado, a clareza, a precisão e a sobriedade; do outro, a profundidade, o sentido de síntese e do grandioso. (A diferença entre as duas surge à primeira vista: os filósofos analíticos escrevem tradicionalmente pequenos artigos, consagrados à resolução de problemas de detalhe; os não-A escrevem livros espessos e fazem sistemas. Para uns a miniatura, para os outros o fresco.) Mas na perspectiva analítica não serve de nada construir sistemas grandiosos se as fundações são frágeis e os materiais friáveis: os castelos de areia que se obtêm deste modo só são bons para impressionar os ignorantes.

Antes de avançar na caracterização da filosofia analítica — porque o que acabo de dizer não é de modo algum suficiente — gostaria de regressar à impossibilidade, alegada mais atrás, de a definir por um qualquer traço doutrinal. As características que acabo de enunciar, e as que muito provavelmente serei levado a formular na continuação, não corresponderão a elementos de doutrina que, por sua vez, podem servir para caracterizar a filosofia analítica? Não é verdadeiro que todo o filósofo analítico defende, precisamente pelo facto de o ser, a tese segundo a qual o filósofo se deve exprimir claramente, deve preferir os argumentos às afirmações peremptórias, etc.? E se se admite isto, não se estará a admitir também, contrariamente ao que disse há pouco, que existem teses, elementos de doutrina, cuja adopção caracteriza mais ou menos a filosofia analítica?

Não creio. Existe uma diferença entre a teoria e a prática dos filósofos; e o que caracteriza a filosofia analítica é uma certa prática, não uma certa teoria. Pode muito bem acontecer que um filósofo analítico, criticando a sua própria tradição, se declare partidário do modo “continental” em filosofia; foi assim que Hilary Putnam (um dos principais filósofos analíticos contemporâneos) pôde sustentar recentemente que a visão de um filósofo conta mais que o rigor dos seus argumentos, e que a filosofia está mais próxima das artes que das ciências (10). Com este tipo de tomada de posição, Putnam, sem dúvida nenhuma, aparenta-se teoricamente aos não-A; mas na sua prática permanece inteiramente um filósofo analítico. Não repudiou, na prática, os ideais da filosofia analítica que enunciei mais atrás (clareza, precisão, recurso aos argumentos, etc.) e é só isso que conta. Indo mais longe, pode-se, parece-me, imaginar sem contradição um filósofo analítico que se declarasse abertamente hostil aos ideais da filosofia analítica; um filósofo que dissesse preferir os slogans aos argumentos, o vago à precisão, a opacidade à transparência, as metáforas aos conceitos, etc. Não creio que um tal filósofo deixasse ipso facto de ser um filósofo analítico: só deixaria de o ser se pusesse as suas teorias em prática. (Do mesmo modo, bem entendido, um não-A que se declarasse favorável aos ideais analíticos não se tornaria por isso um filósofo analítico.)

A distinção que acabo de fazer entre a teoria e a prática impede-me de conferir toda a sua importância, entre as características da filosofia analítica, a um aspecto que no entanto me parece implicado pela intersubjectividade; trata-se da ideia de que é possível um progresso em filosofia. A clareza, a sobriedade, o recurso aos argumentos, etc., servem essencialmente para tornar possível a “crítica mútua” dos membros da colectividade filosófica; e a crítica mútua por sua vez não tem outro fim que não a correcção e o melhoramento das tentativas de cada um. Estas noções de correcção e de melhoramento implicam a de progresso; e não se trata de um progresso puramente individual (desenvolvimento da personalidade filosófica ou aperfeiçoamento de um sistema concebido como obra de arte), pois a crítica mútua implica padrões e objectivos comuns e não específicos do indivíduo: é a colectividade inteira que progride na sua investigação, graças à crítica mútua dos seus membros. A imagem que a prática dos filósofos analíticos impõe é então a de uma colectividade intelectual tendo certos objectivos e procurando atingi-los por tentativas e aproximações sucessivas; a de uma colectividade, numa palavra, progredindo na investigação da verdade. Infelizmente, a tese segundo a qual é possível um progresso em filosofia é uma tese; e como qualquer outra tese não pode servir para caracterizar a filosofia analítica. Tudo o que posso dizer a este respeito, portanto, é que esta tese é, a priori, mais atraente para um filósofo analítico do que para um não-A, e sobretudo que ela é virtualmente implicada pela própria prática dos filósofos analíticos.

À ideia de que é possível um progresso em filosofia ligo um outro aspecto característico da filosofia analítica por oposição à filosofia dos não-A: a recusa em confundir a filosofia com a história da filosofia, e uma certa desenvoltura face aos grandes filósofos do passado (11).

Os filósofos analíticos interessam-se em primeiro lugar pelos problemas filosóficos, os quais tentam resolver (ou dissolver); e quando se interessam pelo que disseram os grandes filósofos do passado, é secundariamente que o fazem, por interesse pelos problemas com os quais estes se confrontaram. Por consequência, a atitude dos filósofos analíticos face aos grandes filósofos do passado não é essencialmente diferente, como já foi muitas vezes observado, da sua atitude face aos seus próprios colegas: uma atitude de colaboração em que o respeito não exclui a crítica. A um filósofo analítico não está interdito dizer: “Platão engana-se”, “Descartes não tem razão neste ponto” ou “Nesta passagem Kant faz uma confusão”. Os não-A ficam por vezes chocados com esta impudência, mas é preciso reparar que ela é também uma forma de respeito: os problemas a que se dedicavam os grandes filósofos do passado (o problema da alma e do corpo, o problema da existência do mundo exterior e dos outros espíritos, o problema do nominalismo e do realismo, o problema da identidade pessoal, o problema da indução, etc.) são sempre actuais para os filósofos analíticos: não são curiosidades arqueológicas. É por isso que, face a estes problemas, os filósofos analíticos se sentem solidários com os filósofos do passado — comprometidos com eles num mesmo empreendimento — o que os autoriza a tratá-los como tratam os seus colegas, corrigindo-os quando se oferece a ocasião.

Os não-A, esses, sacralizam os grandes filósofos do passado. Não se sentem de modo nenhum próximos deles, semelhantes a eles, confrontados com as mesmas dificuldades. Ao passo que os filósofos do passado, como os filósofos analíticos actualmente, procuravam resolver problemas, os não-A não se interessam nada por estes; o que lhes interessa em alto grau é o que disseram os filósofos do passado. Os problemas que eles procuravam resolver não são julgados actuais, e alguém que os tomasse a sério (um filósofo analítico, por exemplo) provocaria sorrisos. Os não-A é antes de mais um historiador — sério ou fantasista — que toma o discurso filosófico como objecto. Os problemas, no melhor dos casos, só são tomados em consideração indirectamente, enquanto objecto de reflexão de um grande filósofo — ao passo que, inversamente, para um filósofo analítico a reflexão dos grandes filósofos só indirectamente é tomada em consideração, enquanto reflexão sobre um problema sempre actual.

É tempo de recapitular as características da filosofia analítica que estabeleci até agora. São elas:

  1. a clareza e a sobriedade;
  2. o recurso aos argumentos;
  3. a precisão, a minúcia e o carácter explícito das teses e dos argumentos;
  4. a recusa de reduzir a filosofia à história da filosofia.

Por mais importante que seja a ideia de que é possível um progresso em filosofia, não podemos, pelas razões que disse atrás, incluí-la na presente lista. Todas estas características se prendem, de perto ou de longe, com o que chamei “espírito científico”, definido pela intersubjectividade; e a intersubjectividade (a prioridade concedida à discussão, à crítica mútua) constitui se se quiser uma quinta característica, particularmente importante na medida em que a maior parte das outras decorrem dela.

Resta-me introduzir uma sexta característica, também particularmente importante: aos olhos de muita gente é ela que define a filosofia analítica.

II

Como repararam todos os que tentaram definir a filosofia analítica, a linguagem ocupa um lugar considerável no seu âmbito: os filósofos analíticos estão quase sempre dispostos a falar da linguagem — do que tal enunciado, ou tal palavra, quer dizer, etc. Os filósofos analíticos não perguntam: “O que é a justiça?” Em vez disso perguntam: “Que queremos dizer com os predicados “justo” e “injusto”?” E apressam-se a decompor esta questão metalinguística em várias outras: “Que tipos de coisas atribuímos estes predicados? Uma tal atribuição é susceptível de verdade e falsidade? Se sim, sob que condições é essa atribuição julgada verdadeira? Que processos utilizamos quando nos empenhamos numa tal avaliação?”, etc. Do mesmo modo, as investigações dos filósofos analíticos sobre o conhecimento tomam a forma de uma reflexão sobre os enunciados da forma “X sabe que P”, as suas investigações sobre a causalidade consistem em analisar os “enunciados causais”, e assim por diante. Em filosofia da religião, por exemplo, têm-se títulos como O Estatuto Lógico de “Deus” (ou seja, da palavra “Deus”); em filosofia moral temos os títulos seguintes: A Linguagem da Moral; A Linguagem da Ética; Ética e Linguagem; A Lógica do Discurso Moral; etc.

Uma das críticas que mais frequentemente se fazem aos filósofos analíticos assenta numa interpretação errada desta característica: acusam-nos de ter abandonado o projecto tradicional da filosofia e de já não se interessarem pelas coisas, pelo mundo que nos rodeia, mas apenas pelas palavras, decaindo por isso da categoria de filósofos para a de linguistas. Esta crítica é inteiramente infundada. Com efeito, se é verdadeiro que os filósofos analíticos estão quase sempre dispostos a falar da linguagem, isso não implica que não falem da mesma coisa que os outros filósofos.

Existem duas formas de defender a tese segundo a qual os filósofos analíticos, ainda que se ocupem essencialmente da linguagem, falam da mesma coisa que os outros filósofos. A primeira consiste em sustentar que também os outros filósofos falam constantemente da linguagem (mesmo quando não se dão conta disso), e a segunda que falar da linguagem pode ser uma forma de falar do resto — do que não é linguagem. Vamos considerar estas duas concepções, associadas respectivamente aos nomes de Carnap e de Quine, cada uma por sua vez.

No fundamento da estratégia metalinguística em filosofia existe a ideia de que se pode dizer a mesma coisa de duas formas diferentes, e mais particularmente em dois níveis de linguagem diferentes. A noção de ordens de linguagens é bem conhecida: quando falamos da realidade não linguística, situamo-nos numa linguagem de primeira ordem; numa segunda ordem (a ordem “metalinguística”), falamos da linguagem que, na primeira ordem, nos permite falar da realidade; a uma terceira ordem (“metametalinguístico”), falamos da metalinguagem que, na segunda ordem, nos permite falar da linguagem da primeira ordem; e assim por diante, indefinidamente. Carnap e Reichenbach sublinharam a possibilidade (enganadora, segundo eles) de “transferências de ordens de linguagem”: é o que acontece quando um pensamento logicamente dependente de uma certa ordem é expresso por meio de um enunciado que pertence gramaticalmente a um outra ordem. Assim, a verdade metalinguística x deixa-se reformular, em y, na ordem inferior de linguagem:

x — “Submarino” significa “embarcação que anda debaixo de água”.
y — Um submarino é uma embarcação que anda debaixo de água.

Aparentemente o enunciado y diz qualquer coisa sobre submarinos; mas, segundo Reichenbach (12), esta aparência é enganadora: a informação não diz respeito aos próprios submarinos, mas à palavra “submarino”, de que y, como x, enuncia o significado.

Na terminologia de Carnap, y é um enunciado “pseudo-objectivo”, ou seja, um enunciado formulado como se incidisse sobre objectos não linguísticos, embora incida sobre formas linguísticas (13); o conteúdo de um tal enunciado é metalinguístico, diz ainda Carnap, mas está disfarçado de enunciado “objectivo”. Para determinar se um enunciado aparentemente objectivo é, de facto, pseudo-objectivo, Carnap (14) elabora um teste bastante complicado, cuja ideia de base é que um enunciado aparentemente objectivo, como y, deve ser reputado de pseudo-objectivo precisamente pelo facto de ser equivalente ao enunciado metalinguístico x. Esta noção de pseudo-objectivo é pertinente para a análise do discurso filosófico, pois segundo Carnap os enunciados filosóficos que não são totalmente desprovidos de sentido (o que acontece com um certo número de enunciados metafísicos), e que não são já explicitamente metalinguísticos, são enunciados pseudo-objectivos, susceptíveis, como y, de ser parafraseados por enunciados metalinguísticos equivalentes. (Remeto o leitor interessado para a quinta parte de The Logical Syntax of Language, secção A, onde Carnap justifica esta tese com diversos argumentos e dá exemplos de enunciados filosóficos pseudo-objectivos e das suas traduções.)

A ideia de Carnap é que a filosofia é globalmente uma disciplina de segunda ordem — uma disciplina “metalinguística”, por assim dizer, que incide não sobre factos objectivos mas sobre discursos. Esta ideia remonta a Wittgenstein, para quem a filosofia não é um discurso teórico que vem juntar-se aos outros, mas uma actividade de clarificação (15). Segundo esta concepção, muito difundida entre os filósofos analíticos, os homens têm, numa primeira ordem, um certo número de “discursos” (a palavra não faz parte do vocabulário dos filósofos analíticos, e evoca sobretudo a terminologia dos não-A): o discurso científico, bem entendido, mas também o discurso ético, o discurso político, o discurso estético, etc.; e a filosofia consiste em reflectir, numa segunda ordem, sobre estes discursos. Uma tal reflexão clarificadora não pode ser confundida com os discursos que toma por objecto, ainda que, como assinala Schlick, alguns discursos tenham por vezes necessidade dessa reflexão clarificadora para progredir. Regra geral, a exigência de clareza, a exigência reflexiva, não está forçosamente ligada à exigência de progresso que anima o discurso científico; é por isso que Bouveresse chega a opor, no seu último livro, “a ética da clareza” e “a ética do progresso”:

Para os que julgam a filosofia unicamente em termos da contribuição hipotética para o saber futuro, o cúmulo da futilidade é representado pelos filósofos que pensam, como Wittgenstein, que o objectivo da actividade filosófica não é a produção de estruturas cada vez mais complicadas e poderosas, mas “a clareza e a transparência das estruturas, quaisquer que sejam” (Philosophische Untersuchungen prefácio). Uma vez que os progressos do saber apenas se podem efectuar numa certa confusão deliberadamente aceite e alimentada, a investigação da clareza por si mesma deve ser considerada como empreendimento obscurantista e reaccionário por excelência. Wittgenstein diria que é justamente a exigência de clareza, e não a da novidade e do progresso, que constitui a especificidade da filosofia e a torna estranha ao espírito da ciência… Quando Frege censurava os matemáticos da sua época por não saberem e não procurarem saber de que falavam quando utilizavam palavras como “número”, “variável”, “identidade”, etc., não pensava que a confusão conceptual impede necessariamente uma disciplina científica que tolera a sua progressão normal. O que o escandalizava era a depreciação qualitativa, e não a diminuição quantitativa do conhecimento matemático que resulta desta atitude (16).

Bouveresse cita ainda Wittgenstein, que compara as matemáticas aos germes da batata, cujo crescimento não é entravado pela obscuridade.

Portanto, de acordo com esta concepção, a filosofia não nos diz nada sobre o mundo, mas esclarece-nos sobre os discursos que fazemos sobre o mundo, e é por erro que os filósofos se exprimem no “modo material”, como se falassem do mundo, da realidade. Este género de impropriedade não tem em princípio consequências, mas o desconhecimento dos filósofos sobre a natureza da sua disciplina teve por vezes efeitos nefastos: acreditou-se que a filosofia se ocupava como as ciências de um aspecto da realidade; ocupando as ciências o terreno da realidade natural, a filosofia dever-se-ia ocupar de uma realidade especial, sobrenatural, “metafísica”: daí a ideia de que a filosofia tem uma dignidade particular que faz dela uma superciência, a ciência do ser, da realidade última, por oposição às ciências “locais”, que têm por objecto os fenómenos.

Ayer, numa intervenção no colóquio de Royaumont de 1958 sobre a filosofia analítica, dá a entender que esta concepção “metalinguística” da filosofia é unânime entre os filósofos analíticos:

Uma das razões pelas quais insistimos […] em dizer que a filosofia é uma actividade que incide sobre a linguagem, é que estamos convencidos que a filosofia não está em condições de rivalizar directamente com as ciências; de que ela é, por assim dizer, uma actividade secundária, ou seja, que não incide directamente sobre os factos mas sobre o modo como exprimimos os factos. E é por isso que nós, que de outros pontos de vista estamos muito divididos […], estamos completamente de acordo neste ponto. Não se pode considerar que o que os franceses chamam “reflexão filosófica” possa ser uma reflexão que incida directamente sobre os factos, e não sobre o modo de descrever os factos. Dito de outro modo, para nós não cabe na filosofia uma espécie de superciência. (17)

Ayer, neste passo, retoma palavra por palavra a posição que defendia já em 1936, no seu compêndio de positivismo lógico para uso do público inglês, Linguagem, Verdade e Lógica. É absolutamente notável que não só Ayer não tenha mudado nesta questão (ao passo que, como os outros neo-positivistas, abandonou grande número das suas posições anteriores), mas também que esta questão obtenha, se o que ele diz é verdade, a unanimidade entre os filósofos analíticos presentes no colóquio Royaumont, ainda que estes filósofos se oponham uns aos outros em numerosos aspectos. Tudo se passa como se a ideia de que a filosofia é uma disciplina de segunda ordem estivesse definitivamente adquirida depois de Wittgenstein e dos neopositivistas, ao contrário de um certo número de ideias que, tendo sido defendidas por eles, acabariam por ser rejeitadas pelos seus sucessores.

Na verdade, Ayer engana-se: nem todos os filósofos analíticos — e, desde logo, nem todos os que estavam presentes em Royaumont — estão de acordo com esta caracterização da filosofia herdada de Wittgenstein e do positivismo lógico. Mas é sintomático que Ayer se tenha enganado neste ponto, porque este erro é um dos mais difundidos sobre a filosofia analítica: actualmente é muito comum fazer da tese segundo a qual a filosofia é uma disciplina de segunda ordem (uma disciplina “crítica” em vez de “teórica”) um dogma da filosofia analítica, ou pelo menos um princípio fundamental que um filósofo analítico não pode deixar de aceitar.

Já disse, por várias vezes, que nenhuma tese é tal que um filósofo analítico não possa deixar de a aceitar sem deixar de ser filósofo analítico. A tese segundo a qual a filosofia é uma disciplina de segunda ordem não é excepção a esta regra: não só um filósofo analítico poderia, sem se desvirtuar, recusar esta tese, como além disso muitos o fizeram, entre os quais filósofos analíticos de primeiro plano como Russell, Popper, Quine e Austin. Por muito difundida que esteja este tese oriunda de Wittgenstein, não se pode portanto considerá-la como essencial à filosofia analítica.

Segundo Russell e Austin, a filosofia não se distingue das ciências pelo seu objecto; não pode por isso dizer-se que ela incide sobre os discursos ao passo que a ciência incide sobre a realidade. A ciência e a filosofia são um só e o mesmo projecto que visa o conhecimento, e o que distingue a filosofia das ciências é, se se quiser, puramente negativo: é o facto de que, contrariamente à ciência, a filosofia não se pode orgulhar de nenhum “resultado positivo”. Este facto, todavia, não revela necessariamente uma deficiência intrínseca da filosofia, que seria incapaz de obter resultados sólidos. Com efeito, como assinala Russell:

Logo que, sobre qualquer assunto, se torna possível um saber definido, esse assunto deixa de ser chamado filosofia, e torna-se uma ciência separada. O estudo dos céus na sua totalidade pertence hoje à astronomia; houve um tempo em que esta estava incluída na filosofia. A grande obra de Newton tinha por título “Os Princípios Matemáticos da Filosofia Natural”. Do mesmo modo, o estudo do espírito humano, que, há pouco tempo ainda, fazia parte da filosofia, desligou-se dela e tornou-se a ciência da psicologia. Mostra-se assim que, em larga medida, a incerteza da filosofia é mais aparente que real: as questões às quais somos desde já capazes de dar respostas definidas são colocadas nas ciências, e só as outras questões, para as quais não podemos fornecer tais respostas, permanecem para constituir esse resíduo a que se chama filosofia. (18)

Austin desenvolveu, por várias vezes, concepções análogas:

A filosofia está sempre a ir além das suas fronteiras e a entrar nos domínios dos seus vizinhos. Creio que o único modo claro de definir o objecto da filosofia é dizer que ela se ocupa de todos os resultados, de todos os problemas que permanecem ainda insolúveis depois de tentados todos os métodos experimentados noutras áreas. Ela é o depósito dos restos das outras ciências, onde se encontra tudo o que não se sabe como agarrar. A partir do momento em que se encontra um método respeitável e seguro para tratar uma parte destes problemas residuais, logo uma ciência nova se forma, que tende a desligar-se da filosofia à medida que define o seu objecto e afirma a sua autoridade. É então baptizada: matemática — o divórcio data de há muito; ou física — a separação é mais recente; ou psicologia, ou lógica matemática — o corte ainda está fresco; ou até, quem sabe, amanhã talvez gramática ou linguística? Creio que deste modo a filosofia transbordará cada vez mais do seu leito inicial. (19)

Dada a sua concepção de filosofia, nem Russell nem Austin podem admitir a tese segundo a qual a filosofia é uma disciplina de segunda ordem que tem por objecto a linguagem e os discursos de primeira ordem. (Passa-se o mesmo, como indiquei, como filósofos como Popper e Quine, ainda que as suas concepções não sejam idênticas às de Russell e Austin.) No entanto, estes filósofos não são menos fiéis que os outros à “estratégia metalinguística”: não se distinguem, neste aspecto, dos outros filósofos analíticos. A conclusão que se impõe é a seguinte: é preciso dissociar o recurso à estratégia metalinguística, que é um dos traços fundamentais da filosofia analítica, da justificação carnapiana desta estratégia, justificação baseada numa concepção discutível da filosofia como disciplina de segunda ordem.

Para dissociar a estratégia metalinguística em filosofia da sua justificação carnapiana é preciso começar por distinguir duas ideias estreitamente associadas em Carnap e Reichenbach: a ideia de que um certo número de enunciados aparentemente objectivos se deixam parafrasear por enunciados metalinguísticos (mais ou menos) equivalentes, a ideia de que a formulação metalinguística (no “modo formal”) é “mais correcta” que a outra (no “modo material”), a qual é apenas pseudo-objectiva e esconde a verdadeira natureza da informação veiculada. É perfeitamente possível rejeitar a segunda ideia sem rejeitar a primeira: é o que faz Quine, que aceita a distinção entre o modo formal e material como duas maneiras de exprimir a mesma coisa, mas recusa conceder a primazia à primeira, o que o leva a recusar a noção de enunciado pseudo-objectivo (20). Do mesmo modo, Austin admitiria certamente que um enunciado definidor como y equivale mais ou menos a x, mas recusaria dizer que x é a forma correcta e y a incorrecta. Reichenbach justifica esta ideia dizendo que em y, apesar das aparências, o que está em causa é a palavra “submarino” e não a coisa: “pode construir-se um submarino”, diz ele, “mas não defini-lo” (visto que é a palavra que é definida). Mas Austin pensa precisamente que numa definição o que está em causa é tanto a palavra como a coisa, o que explica que a mesma definição possa ser indiferentemente expressa por meio de x e de y:

Ainda que possamos perguntar de forma sensata “Cavalgamos a palavra “elefante” ou o animal?”, e de forma não menos sensata “Escrevemos a palavra ou o animal?”, não teria qualquer sentido perguntar “Definimos a palavra ou o animal?”. Porque “definir um elefante” (se é que alguma vez fazemos tal coisa) é uma forma global de descrever uma operação que implica ao mesmo tempo a palavra e o animal… (21)

Correspondendo às duas ideias que acabamos de distinguir, existem duas formas de responder à objecção segundo a qual a filosofia analítica esquece o projecto tradicional da filosofia e se fecha numa consideração estéril da linguagem. Pode-se dizer, em primeiro lugar, seguindo Carnap, que todo o enunciado filosófico com sentido é um enunciado metalinguístico, qualquer que seja o modo como é formulado (no modo formal ou no modo material); deste ponto de vista, os filósofos analíticos mais não fazem do que explicitar, optando por exprimir-se tanto quanto possível no modo formal, uma característica geral do empreendimento filosófico, e os seus enunciados não são “metalinguísticos” por oposição aos enunciados dos filósofos tradicionais, que seriam objectivos: os enunciados dos filósofos tradicionais (desde que tenham sentido) também são metalinguísticos, ainda que por vezes tenham uma aparência de objectividade.

A outra resposta é menos radical, mas tem o mérito de não depender, como a primeira, de uma doutrina particular sobre a natureza dos enunciados filosóficos. Consiste simplesmente em constatar a equivalência entre as formulações metalinguísticas dos filósofos analíticos e os enunciados “objectivos” (ou aparentemente “objectivos”) que lhes correspondem. Dizer que a justiça é tal ou tal coisa, é definir a justiça; mas é também, e de forma idêntica, enunciar as condições de aplicação do predicado “justo”. Uma definição, como sublinha Austin, é tanto uma definição da coisa como da palavra, e as questões “O que é a justiça?” e “Quais são as condições de aplicação do predicado “justo”?” não são duas questões diferentes, mas a mesma questão formulada de duas maneiras diferentes. Do mesmo modo, interrogar-se sobre o que é o conhecimento é interrogar-se sobre as condições de verdade que devem ser satisfeitas para que se possa dizer de alguma pessoa que ela conhece algo, e portanto é interrogar-se sobre as condições de verdade dos enunciados do tipo “X sabe que P”. As formulações metalinguísticas da filosofia analítica, olhadas deste ponto de vista, são inofensivas e não representam uma desnaturação do projecto tradicional da filosofia. (Aliás, os próprios filósofos do passado recorreram amplamente a tais formulações.)

A segunda resposta tem o mérito de ser filosoficamente mais neutra que a primeira, mas também tem um inconveniente que a primeira não tem: não diz nada sobre as razões que podem existir para se adoptar a estratégia metalinguística em filosofia. Diz apenas que não se correm riscos ao adoptá-la. Mas, se a formulação objectiva e a formulação metalinguística são equivalentes, por que seria uma preferível à outra? Por que seria então preciso privilegiar sistematicamente as formulações metalinguísticas? Parece difícil responder a estas questões sem aderir à posição de Carnap, para quem os enunciados filosóficos, como quer que sejam formulados (e desde que não sejam desprovidos de sentido), são intrinsecamente metalinguísticos. Iremos ver, contudo, que se pode responder a estas questões mesmo se se pensar, como Quine, que os enunciados filosóficos não são menos “objectivos” que os enunciados das ciências.

A noção de transferência de ordem de linguagem não se limita aos casos em que um conteúdo metalinguístico é expresso na ordem inferior de linguagem: ela pode igualmente cobrir os casos em que um conteúdo objectivo é expresso na ordem superior de linguagem, ou seja, de forma metalinguística. Quine baptizou de “ascensão semântica” esta transferência particular de ordem de linguagem, diferente daquela de que temos vindo a falar até agora.

A “ascensão semântica” é o processo que consiste em exprimir na ordem da metalinguagem uma informação dependente da ordem inferior de linguagem: para exprimir uma certa informação de ordem n, “ascende-se”, na escala semântica das ordens de linguagem, para a ordem n+1. Consideremos, para ilustrar este mecanismo, os enunciados a e b:

a — A neve é branca.
b — O enunciado “A neve é branca” é verdadeiro.

O enunciado b incide metalinguisticamente sobre o enunciado a, ao qual atribui a propriedade de ser verdadeiro; mas ao mesmo tempo incide sobre a realidade de que fala o enunciado a. Como diz Quine (22), atribuir ao enunciado “A neve é branca” a propriedade de ser verdadeiro é, ipso facto, atribuir à neve a propriedade de ser branca. Enunciar b é, portanto, uma maneira (indirecta) de dizer o que diz o enunciado a, a saber, que a neve é branca: a informação veiculada pelo enunciado a, ainda que dependente da primeira ordem (é da realidade que se trata em a, e não da linguagem), é expressa, em b, na ordem superior de linguagem.

Há ascensão semântica ou, para empregar uma expressão que prefiro, desvio metalinguístico, quando se diz alguma coisa não directamente, como em a, mas indirectamente, dizendo algo sobre o enunciado que diz essa coisa. Por meio do enunciado b diz-se que a neve é branca dizendo que o enunciado que diz que a neve é branca é verdadeiro. Um tal desvio justifica-se às vezes por razões técnicas. Na sua Philosophy of Logic (23) Quine dá o exemplo seguinte. Dadas duas proposições não metalinguísticas, como “Sócrates é mortal”, “Aristóteles é mortal”, “Tom é mortal” (ou igualmente: “Sócrates é Sócrates”, “Aristóteles é Aristóteles”, “Tom é Tom”) pode efectuar-se a operação lógica de generalização sem mudar de ordem de linguagem: “Todos os homens são mortais” e “Qualquer homem é ele mesmo” pertencem à mesma ordem de linguagem que “Sócrates é mortal” e “Sócrates é Sócrates”. Mas se se tomam proposições mais complexas, como “A neve é branca ou não é branca”, “Sócrates é mortal ou não é mortal”, “O gato é um animal ou não é um animal”, etc., e se tenta efectuar a operação de generalização, é-se forçado a mudar de ordem de linguagem e a dizer que todos os enunciados de tipo “P ou não P” são verdadeiros. Como sublinha Quine, “o que obriga a esta ascensão semântica não é o facto de “Tom é mortal ou Tom não é mortal” incidir de algum modo sobre os enunciados ao passo que “Tom é mortal” e “Tom é Tom” incidem sobre Tom. Os três incidem sobre Tom”. A mudança de ordem de linguagem não é provocada pela natureza das informações em jogo (tanto os enunciados do tipo “Sócrates é mortal ou não o é” como os do tipo “Sócrates é Sócrates” falam do mundo e são não metalinguísticos), mas pelo “modo oblíquo como as exemplificações sobre as quais efectuamos a generalização estão ligadas umas às outras” no caso das proposições complexas. É portanto por uma razão puramente técnica que fazemos um desvio pela metalinguagem, e este desvio não tem consequências; com efeito, ainda que passemos à ordem superior de linguagem, não deixamos de falar da realidade não linguística, pois dizer que um enunciado é verdadeiro é dizer o que diz esse enunciado. Se os enunciados que declaramos verdadeiros falam da realidade não linguística, então os enunciados metalinguísticos por meio dos quais os declaramos verdadeiros falam igualmente, apesar das aparências, da realidade não linguística.

Do mesmo modo, pode justificar-se por razões técnicas ou formais o facto de os filósofos analíticos conduzirem sistematicamente as suas discussões ao nível da metalinguagem. Os filósofos analíticos, como vimos, procuram ser claros, precisos e explícitos, de modo a poderem ser compreendidos e, portanto, criticados pelos seus colegas. Ora, há sempre um risco de equívoco, mesmo quando nos exprimimos de forma clara; mas diminui-se este risco se, não ficando satisfeito com enunciar (claramente) a sua tese ou a sua teoria, o filósofo tornar preciso o que quer dizer com ela, de modo a prevenir eventuais mal-entendidos: então, o enunciado P do filósofo desdobra-se num enunciado metalinguístico (ou num conjunto de tais enunciados) Q, cuja função é analisar P, especificar a sua interpretação e explicitar as suas implicações. Uma tal reflexão analítica do filósofo sobre os seus próprios enunciados (cuja forma mais simples é o comentário “Quer dizer com isto que…”) torna o que ele diz ao mesmo tempo mais claro, mais preciso e mais explícito.

Criticando a tese ou a teoria P, um outro filósofo, ao responder ao primeiro, seguirá o mesmo caminho: situando-se desde logo ao nível da metalinguagem, procurará mostrar que, entre as implicações de P, existe uma que é indesejável; ou então procurará mostrar que P não implica, contrariamente ao que pensara o primeiro filósofo, uma certa proposição R cuja verdade era precisamente o que se tratava de explicar, de modo que P, enquanto tal, já não pode ser considerada uma explicação satisfatória; ou então tentará prosseguir a análise e, distinguindo duas interpretações possíveis de P, examiná-las-á separadamente de forma crítica, para concluir que se deve rejeitar quer uma, quer a outra, quer as duas (demonstrará, por exemplo, que a tese ou a teoria P é falsa numa interpretação e trivial na outra); poderá igualmente levar a cabo uma comparação de P com uma teoria alternativa P', e concluir pela superioridade desta em termos de economia conceptual ou de simplicidade teórica; e assim por diante.

É evidente que o filósofo que à partida propõe a tese P pode também ele colocar-se desde logo no plano metalinguístico. Em vez de afirmar P, pode, simplesmente, anunciar esta tese e fazer dela o objecto da sua investigação: só no termo das suas análises o seu discurso metalinguístico sobre P aparecerá como equivalente a uma afirmação de P: com efeito, dizer que uma tese é filosoficamente satisfatória, que resolve o problema que se propunha, ou que é melhor que as teses alternativas que foram propostas, é o mesmo que defender essa tese, que fazer-se seu advogado; é o mesmo que afirmar a referida tese com argumentos favoráveis. Do mesmo modo, mostrar, como o adversário de P, que esta tese não é satisfatória ou que é inferior a uma outra, é o mesmo que atacar a referida tese. Pode-se portanto afirmar e combater uma tese situando-se ao nível da metalinguagem e tomando-a como objecto.

O interesse deste artifício não se reduz ao facto de que, graças a ele, os filósofos se exprimem de forma mais clara e mais explícita. A clareza e a precisão, como vimos, servem essencialmente para tornar possível a discussão, a crítica mútua. Ora, não existe discussão possível se não há uma base mínima de acordo que permita circunscrever o desacordo; a “crítica mútua” pressupõe um quadro teórico comum no interior do qual os antagonistas se possam opor. O desvio metalinguístico tem por função, nomeadamente, fornecer uma tal base mínima de acordo, um tal quadro teórico mínimo. Quine formula esta ideia do modo seguinte:

Uma das principais razões pelas quais preferimos concentrar-nos na linguagem é que se nos dirigimos directamente aos problemas dos fundamentos da realidade corremos o risco de introduzir um conjunto de pressuposições que tocam nos esquemas conceptuais mais profundos, nos hábitos de pensar e de sentir mais enraizados, a tal ponto que nenhum dos antagonistas pode opor o seu ponto de vista aos de outros sem dar a ideia de incorrer numa petição de princípio. Pode discutir-se infindavelmente deste modo sobre as faculdades e as entidades, que ninguém concebe da mesma maneira. Cada um manterá o seu ponto de vista, que procede de um esquema conceptual oposto. Ora, a retirada filosófica para a linguagem é um processo que nos ajuda a escapar a tais círculos viciosos. Vejamos como.

A função central e primordial da linguagem é tratar dos objectos comuns, de dimensão corrente, de uso familiar, do género daqueles que encontramos no mercado. É aqui que quaisquer interlocutores se podem entender perfeitamente apesar de qualquer desacordo no que respeita aos seus pontos de vista ontológicos. Ora, as próprias palavras constituem uma das espécies de tais objectos comuns de dimensão corrente, e por conseguinte as pessoas entendem-se bem ao discutir as palavras, apesar de qualquer desacordo ontológico. Bem, então eis o truque: transformar a discussão ontológica em discussão da linguagem, de modo a insistir não já sobre tais ou tais pretensos factos ontológicos irredutíveis, mas antes sobre os benefícios e os objectivos metodológicos que favorecem tal ou tal teoria discursiva ontológica. O truque é retirar-se da discussão directa dos traços fundamentais da realidade e em vez disso virar-se para a discussão das virtudes pragmáticas das teorias da realidade. (24)

Portanto, a ideia de base é que se diz a mesma coisa no modo “material” e no modo metalinguístico, mas que este último tem a vantagem de fornecer um ponto de partida concreto sobre o qual os antagonistas podem entender-se perfeitamente. Se se pergunta “O que é a justiça?” (25), haverá uma confrontação de pontos de vista opostos sem que apareça uma possibilidade de arbitragem; mas se se pergunta “Quais são as condições de aplicação do predicado “justo”?” ou “Que processos utilizamos quando nos empenhamos numa avaliação em termos de justiça e de injustiça?”, será possível opor contra-exemplos a uma primeira tentativa de resposta, ou seja, casos que ilustrem o facto de que as condições ou os processos propostos não são os bons. O ponto importante é que o proponente e o oponente se ponham de acordo pelo menos sobre o objectivo que se propõem: fornecer condições necessárias e suficientes para a aplicação de um predicado, ou fornecer processos, ou não importa o quê, conforme a natureza do predicado em questão. Sendo assim, em face de contra-exemplos que tendam a denunciar uma certa proposição em análise como não satisfatória, é suposto que o proponente modifique a sua proposição ou mostre que os contra-exemplos são apenas aparentes e que de facto, correctamente analisados, são compatíveis com ela. A discussão progride deste modo essencialmente porque se atinge um consenso mínimo sobre os objectivos do processo e o modo de proceder.

III

Procurei mostrar nas partes anteriores que as caracterizações “substanciais” da filosofia analítica são inaceitáveis. A filosofia analítica, como disse, não se caracteriza nem por uma doutrina particular, nem por um domínio de investigação, nem mesmo por um método, mas apenas por um espírito ou por um estilo. Qualquer tentativa de caracterização substancial fracassa perante o facto de que o movimento analítico sobreviveu ao abandono das doutrinas mais centrais do neopositivismo e ao alargamento dos interesses e dos métodos para além dos domínios que em primeiro lugar integravam o movimento (filosofia da lógica e epistemologia).

Esta questão da caracterização da filosofia analítica (por oposição à filosofia dita “continental” (26)) está no centro do debate em que desejo intervir agora: o debate entre filósofos analíticos “tradicionais” e filósofos “pós-analíticos”. Os primeiros, nos quais me incluo, suspeitam da filosofia Continental e afirmam de boa vontade a sua diferença. Os segundos, vindos da tradição analítica, declaram-se a favor de uma superação desta e espreitam com agrado para o lado do “outro” da filosofia analítica, a saber, a filosofia Continental.

Parece-me que as razões para desejar uma superação da filosofia analítica (ou para considerar essa superação realizada) são indissociáveis de uma concepção substancial da filosofia analítica. De facto, o elenco de argumentos da filosofia “pós-analítica” faz essencialmente apelo à renovação doutrinal efectuada por filósofos como o “segundo” Wittgenstein, Quine ou Davidson. Esta renovação doutrinal conduziu ao abandono de um certo número de dogmas da filosofia analítica como o atomismo semântico ou a distinção analítico/sintético. É igualmente posta em causa a ideia de que a filosofia, enquanto empreendimento “cognitivo”, se situaria ao lado da ciência e não da literatura. A recolocação de todas estas questões explica o interesse dos filósofos pós-analíticos pela filosofia Continental, que nunca esteve submetida aos dogmas rejeitados.

Mas se tive razão em afirmar que a verdadeira diferença entre filosofia analítica e filosofia Continental é formal (estilística) em vez de substancial (doutrinal), então as pretensas justificações doutrinais avançadas pelos filósofos pós-analíticos a favor de uma mudança de atitude para com a filosofia Continental perdem a força. As razões que um filósofo analítico tradicional tem para estar contra a filosofia Continental são em primeiro lugar razões formais. É um estilo de filosofia que se pretende promover quando se defende o ideal da filosofia analítica, e não uma doutrina ou um conjunto de doutrinas. Recorde-se o que foi dito anteriormente sobre Putnam.

Sendo Hilary Putnam um dos arautos da filosofia pós-analítica, o exemplo é particularmente bem escolhido dadas as necessidades da presente demonstração. Sustento que um filósofo analítico pode abandonar os “dogmas” mais caros à filosofia analítica e contudo permanecer inteiramente um filósofo analítico desde que continue a argumentar do modo que caracteriza a filosofia analítica. É precisamente o que faz Putnam. Quem alguma vez negou seriamente que ele tenha sido e continue a ser um filósofo analítico? Só isso basta para mostrar que a verdadeira diferença entre analítico e Continental é formal, como afirmo. Portanto, é no plano formal que se deve situar o debate entre partidários e adversários da filosofia analítica.

Ora, no plano formal, a filosofia analítica tradicional não tem nenhuma dificuldade em fazer prevalecer o seu ponto de vista. Quem pretenderia recusar o ideal estilístico da filosofia analítica? Este ideal consiste no emprego de argumentos tão explícitos quanto possível, de modo a clarificar o debate filosófico e a favorecer, pela elucidação das teses em presença, a crítica mútua das teorias adversas. Alguns, no terreno pós-analítico, parecem ter a intenção de recusar este ideal, mas abstêm-se de passar à acção. Assim, Putnam declara que David Lewis não é mais “claro” que Derrida — dando a entender que o que é ou não claro é questão de convenções — mas ele próprio escreve mais como David Lewis do que como Derrida. Deveremos ver nisso uma muito contingente questão de hábito? Não creio: enquanto filósofo, Putnam não seria Putnam se escrevesse de forma diferente. É essencial a Putnam o filósofo ser um filósofo analítico que escreve como escreve. Seja como for, Putnam é um caso extremo — não muito menos extremo do que Rorty. Os outros partidários da superação tomam o cuidado de precisar que querem “continentalizar” um pouco a filosofia analítica no plano doutrinal (quer dizer, importar ideias novas) conservando as qualidades estilísticas da filosofia analítica.

Em conclusão, parece-me que estamos em presença de uma disjunção pouco favorável ao ponto de vista pós-analítico. Das duas uma:

Será realmente impossível ou indefensável uma caracterização substancial da filosofia analítica? Sustentei esta posição argumentando com o facto de não haver doutrina ou método que um filósofo analítico não possa eventualmente recusar, continuando a ser um filósofo analítico. Mas este argumento nada pode contra uma caracterização substancial mais flexível, fundada na noção de tipicidade. Um filósofo analítico “típico” (na verdade, um “protótipo” do filósofo analítico) seria um filósofo como Carnap, que adere a determinadas doutrinas, no interior de um determinado domínio, utilizando determinados métodos. Quanto maior fosse a distância relativamente a este protótipo, menos se estaria na filosofia analítica. Nesta óptica, reconhece-se a possibilidade de fazer filosofia analítica tratando de ética aplicada ou de metafísica, ou rejeitando este ou aquele dogma do empirismo lógico, mas conserva-se ainda assim a ideia de uma caracterização substancial fundada num pequeno número de traços distintivos.

Não creio que esta aproximação dê conta de forma satisfatória do que se chama “filosofia analítica”, pois tende a minimizar a sua evolução. A filosofia analítica evoluiu de tal modo no decurso da sua história que o que era típico numa época deixou de o ser. Assim, era típico numa época rejeitar a metafísica, e um metafísico confesso (Whitehead, por exemplo) não podia deixar de se situar fora da filosofia analítica. Mas actualmente a metafísica é um dos principais domínios da filosofia analítica, a ponto de um filósofo analítico típico como David Lewis ser antes de mais um metafísico. Não pode portanto reduzir-se a evolução e a pluralização da filosofia analítica ao aparecimento de filósofos analíticos relativamente atípicos no que respeita aos critérios que prevaleciam nos anos 20 (e que nos permitiriam, hoje ainda, avaliar a tipicidade ou atipicidade de um filósofo analítico); foram os próprios critérios de tipicidade que evoluíram. Houve, se se quiser, uma multiplicação dos “protótipos”.

É verdadeiro que se poderia sustentar que a noção de filosofia analítica se esbateu um pouco desde o afastamento do ideal positivista. A pluralidade da filosofia analítica faz a noção estar um pouco menos circunscrita, um pouco mais subtil que no passado. Mas o que é importante, aos olhos dos zeladores da filosofia analítica, é o que permanece, o que não mudou: o estilo, o apego a certos valores como a clareza e a intersubjectividade. Encontramos de novo o mal-entendido princeps: aqueles que querem “superar” a filosofia analítica entendem-na num sentido estreito que precisamente os seus zeladores recusam.

De resto, existe mesmo uma diferença de atitude relativamente à filosofia Continental. O partidário da superação da filosofia analítica é benévolo, o partidário da filosofia analítica é desconfiado. Também neste caso está envolvida a escolha de uma caracterização substancial ou formal. Porque se existem grandes diferenças estilísticas entre a filosofia analítica e filosofia Continental, pode existir pontualmente uma certa aproximação de doutrinas. Decorre daqui um argumento “prático” a favor de uma concepção substancial (em vez de formal ou estilística) das solidariedades filosóficas: uma tal concepção conduz ao pluralismo, ao passo que o partidário da filosofia analítica se fecha na sua capela e no seu sectarismo, e não quer deixar entrar ninguém que não seja geómetra. Chamo a este argumento prático “o argumento do pluralismo”.

Respondo que o pluralismo que assim se privilegia é um pluralismo muito particular: com um espírito ecuménico, toleram-se estilos, modos diferentes de filosofar, e aquilo que conta é a convergência das doutrinas, ou melhor, o parentesco dos universos filosóficos instaurados nestes diversos modos. A filosofia analítica, essa, favorece um outro tipo de pluralismo, que consiste em encorajar a multiplicação das doutrinas e das divergências teóricas, e o que conta é a qualidade da argumentação. O primeiro pluralismo é testemunho de uma orientação mais “ideológica”, no sentido que dei a este termo na introdução ao primeiro número de L’âge de la science (27): o fim conta mais que os meios, as conclusões são mais determinantes que os argumentos que a elas conduzem. Seja como for, trata-se de duas formas diferentes de pluralismo, e não de uma oposição entre pluralismo e não pluralismo. Existe um sentido em que a filosofia analítica se define pelo seu pluralismo, pelo seu carácter essencialmente “aberto” (em virtude precisamente do seu carácter argumentativo, lógico). Este pluralismo vale o outro.

Para terminar desejaria evocar um contra-ataque possível do filósofo pós-analítico: este poderia sustentar que precisamente uma caracterização puramente formal da filosofia analítica, como a que preconizo, é impossível. Existem pelo menos duas teses que um filósofo analítico não poderia recusar, e que parecem definir um fundo comum de doutrina partilhado por todos os filósofos analíticos. Por um lado, a tese segundo a qual é possível, pela crítica mútua e pela refutação, progredir de forma colectiva em filosofia; esta tese, como anteriormente sublinhei, é a justificação última da prática argumentativa dos filósofos analíticos. E por outro lado a tese segundo a qual a filosofia, enquanto disciplina argumentativa, se ocupa de problemas e visa uma realidade diferente de si mesma. Estas duas teses são constitutivas de uma posição metafilosófica que denomino por “cognitivismo”, e que está subjacente à prática dos filósofos analíticos. Ao cognitivismo opõe-se uma concepção de filosofia como disciplina “auto-interpretativa” fechada sobre si mesma e votada ao repisar da sua própria história. Estas duas concepções defrontam-se sobre a questão das relações que a filosofia mantém com a sua história, por um lado, e com a ciência e o senso comum, por outro. À concepção cognitivista ligam-se as duas ideias seguintes, vigorosamente rejeitadas pela filosofia Continental: que se pode dissociar a filosofia da história da filosofia (como se pode dissociar a química da história da química), e que não existe solução de continuidade entre a filosofia, a ciência e o senso comum.

Admito de boa vontade que uma metafilosofia de tipo cognitivista está implicada na própria prática da filosofia analítica, mas defendo que está implicada de forma essencialmente prática. Por outras palavras, as teses cognitivistas enunciadas acima devem ser concebidas como princípios reguladores de valor normativo e não como princípios teóricos ou descritivos. Aceitá-las leva a fazer boa filosofia do ponto de vista analítico, ou seja, uma filosofia clara e argumentada, e neste sentido têm valor de normas para a filosofia analítica; mas a sua aceitação a este título não implica necessariamente a sua adopção a título de elementos de doutrina.

Assinalemos em primeiro lugar que Martial Guéroult, um dos filósofos que mais insistiu sobre o carácter auto-referencial da filosofia — e mais especificamente da obra filosófica singular — por oposição ao discurso da ciência, também insistiu muito, apesar disso, no facto de que a filosofia só se pode realizar através de um projecto de tipo cognitivo ou científico (projecto ilusório, segundo ele, mas todavia necessário) (28). Guéroult reconhecia portanto o valor normativo ou regulador do cognitivismo. De resto, Guéroult rejeitava como falsa a concepção cognitivista da filosofia, ainda que visse nela a expressão de um projecto essencial à filosofia. Poderá o filósofo analítico fazer o mesmo e rejeitar, no plano teórico, as duas teses mencionadas mais acima, afirmando ao mesmo tempo a sua importância enquanto princípios reguladores? Não poderia fazê-lo sem sucumbir a uma forma de contradição pragmática análoga àquela que afecta o filósofo pós-analítico quando continua a praticar uma forma tradicional de filosofia analítica. Portanto, existe efectivamente um problema para o ponto de vista que defendo: parece que uma caracterização puramente formal da filosofia analítica esbarra com a impossibilidade em que se veria um filósofo analítico de rejeitar as duas teses mencionadas mais acima sem cair numa contradição de tipo pragmático. Se, além disso, e à semelhança do filósofo pós-analítico, se considera que estas teses são contestáveis, parece que se está no direito de rejeitar a filosofia analítica na medida em que esta não pode deixar de incorporar (de modo mais ou menos explícito) as teses em questão.

Uma primeira forma de defender a filosofia analítica face a este contra-ataque consistiria em admitir que uma caracterização puramente formal da filosofia analítica é impossível e em assumir como consequência o cognitivismo enquanto doutrina teórica incidente sobre a natureza da filosofia. Desta forma, o filósofo analítico evita a contradição pragmática: adopta uma teoria da filosofia que justifica a maneira como pratica a filosofia — neste caso, aceita o cognitivismo em metafilosofia para justificar uma prática argumentativa da filosofia. Ao fazer isto, todavia, o filósofo analítico expõe-se às críticas daqueles que, como os filósofos pós-analíticos, rejeitam a metafilosofia cognitivista. Mas existe uma outra forma de salvar a filosofia analítica da contradição pragmática, que não implica a adopção do cognitivismo enquanto doutrina teórica e que permite manter a ideia de uma caracterização puramente formal da filosofia analítica. É este segundo tipo de defesa que gostaria de apresentar como conclusão destas observações.

Contrariamente a Martial Guéroult, não creio que se possa interpretar o cognitivismo metafilosófico como doutrina teórica; portanto, não creio que faça sentido rejeitar o cognitivismo no plano teórico, como Guéroult faz. Parece-me que o cognitivismo — e, mais geralmente, toda a metafilosofia — tem somente um valor normativo ou prático. Se tenho razão, nenhuma contradição pragmática pode surgir entre cognitivismo prático e anticognitivismo teórico, visto que não existe algo que seja cognitivismo ou anticognitivismo teórico. O cognitivismo não tem conteúdo teórico e não pode efectivamente ser aceite como verdadeiro nem rejeitado como falso.

É o debate metafilosófico que não tem, de forma global, conteúdo teórico. Isto deve-se ao facto de que o objecto do debate metafilosófico, a saber, a própria filosofia, não tem uma “natureza” que esteja fixada de antemão, de forma a tornar possível referir-se a ela para circunscrever o debate metafilosófico. O que é a filosofia? A filosofia é em primeiro lugar um “corpus” que compreende noções, ideias, temas, teses, problemas, doutrinas, nomes, textos e obras. É também uma prática que consiste em produzir trabalhos filosóficos, ou seja, trabalhos que se ligam ao corpus filosófico e que têm vocação para se integrar nele. Para tornar possível uma tal prática, é essencial que o corpus em questão seja aberto. Mas a sua própria abertura acarreta a indeterminação da sua natureza: a natureza da filosofia não está fixada, porque é afectada pela prática da filosofia, que pode evoluir livremente à vontade dos que a fazem. A filosofia é em larga medida o que se faz dela, e é neste sentido que não tem uma natureza pré-determinada.

Na medida em que as metafilosofias correspondem a vários usos que se podem fazer da filosofia, não estão verdadeiramente em conflito umas com as outras, porque não falam de uma realidade objectiva independente que se tratasse de determinar; cada uma tem a sua parte de verdade, pelo facto de serem expressão de uma prática. Basta praticar uma filosofia estilisticamente unificada com o resto do discurso teórico, como fazem os filósofos analíticos, para fundamentar o cognitivismo e conferir-lhe a sua parte de verdade. Da mesma forma, a filosofia Continental realiza o seu anticognitivismo metafilosófico praticando uma filosofia auto-insularizada relativamente ao resto do discurso cognitivo.

A metafilosofia cognitivista do filósofo analítico não tem nesta perspectiva mais conteúdo teórico que qualquer outra metafilosofia (29). Ela tem um valor essencialmente prático e expressivo (e não substancial ou doutrinal) da oposição analítico/Continental — não se trata de um debate teórico em que uns podem ter razão e os outros estar enganados. Não existe debate teórico entre a filosofia analítica e a filosofia Continental, contrariamente ao que pensam os filósofos pós-analíticos. O verdadeiro debate situa-se num plano diferente do teórico; infelizmente, os filósofos pós-analíticos procedem como se esse debate, o único que verdadeiramente importa, não existisse.

François Recanati
Crítica: Revista de Pensamento Contemporâneo, 10 (Maio de 1993).

Notas

  1. J. Piel, na introdução do número especial de Critique consagrado à filosofia analítica anglo-saxónica (n.os 399-400, Agosto-Setembro de 1980), fala da “ramificação de interesses” testemunhada pela evolução da filosofia analítica. Como exemplo deste fenómeno, Putnam (Realism and Reason, p. 180) menciona o interesse tardio pela filosofia dos valores que se seguiu à publicação por John Rawls de Uma Teoria da Justiça.
  2. Sobre Tugendhat veja-se o artigo de V. Descombes em Critique, n.o 407, Abril de 1981, e o de J. Bouveresse ao n.o 425, Outubro de 1982. Um número especial de Critique foi, aliás, consagrado à filosofia alemã contemporânea: n.o 413, Outubro de 1981.
  3. Vejam-se as obras de Putnam, Rorty e Bouveresse mencionadas no princípio deste artigo.
  4. R. Rorty, “Solidarité ou objectivité?”, Critique, n.o 439, Dezembro de 1983.
  5. É nomeadamente o que diz Putnam na passagem de Realism and Reason citada mais atrás, na nota 1.
  6. Sobre Ajdukiewicz, veja-se o artigo de P. Engel em Critique, n.os 440–441, número especial sobre a Polónia, Janeiro-Fevereiro de 1984.
  7. L. Rougier (org.), Actes de Congrès International de Philosophie Scientifique, Hermann, 1936, vol. I, p. 19.
  8. H. Reichenbach, The Rise of Scientific Philosophy, University of California Press, 1951, p. 118.
  9. L. Rougier (org.), op. cit., pp. 19-20.
  10. Veja-se Realism and Reason, e a recensão de Putnam ao livro póstumo de Gareth Evans sobre a referência, “A Tecnhical Philosopher”, London Review of Books, vol. V, n.o 9, Maio de 1983.
  11. Sobre a atitude dos filósofos analíticos face à história da filosofia, veja-se o número especial de Critique mencionado na nota 1.
  12. Elements of Simbolic Logic, Macmillan, 1947, cap. 1, §5.
  13. R. Carnap, The Logical Sintax of Language, Routledge and Keagan Paul, 1937, p. 285.
  14. Ibid., §§ 63, 64 e 74.
  15. Cf. L. Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, § 4122. Veja-se também M. Schlick, “The Future of Philosophy” in G. Ryle (org.) Proceedings of the Seventh International Congress of Philosophy, Oxford University Press, 1931, pp. 112–116.
  16. Le philosophie chez les autophages, p. 67.
  17. La philosophie analytique, Cahiers de Royaumont, n.o 4, ed. De Minuit, 1962, reimp. 1979, pp. 339-340.
  18. Os Problemas da Filosofia, p. 240 da edição inglesa.
  19. La philosophie analytique, pp. 292–293; encontra-se uma citação análoga nos Philosophical Papers de Austin, 2.a ed., Oxford University Press, 1970, p. 232.
  20. Cf. Word and Object, MIT Press, 1960, p. 272, nota 2.
  21. Philosophical Papers, p. 124.
  22. Philosophy of Logic, Prentice Hall, 1970, p. 12.
  23. Ibid., pp. 11–12.
  24. la philosophie analytique, p. 343. Veja-se também Word and Object, p. 272.
  25. Esta é uma questão “platónica”, mas a estratégia que estou a descrever é geral e não implica uma concepção da filosofia que dê um papel central a este tipo de questão.
  26. A expressão “filosofia continental” é inadequada porque a filosofia analítica pratica-se também no continente europeu: a filosofia analítica não é essencialmente “anglo-saxónica”, como muitas vezes se diz. (De facto, a Sociedade Europeia de Filosofia Analítica [ESAP], que surgiu em 1990, agrupa, além dos britânicos, filósofos de mais de 20 países europeus.) Kevin Mulligan sugeriu uma solução tipográfica para eliminar a ambiguidade da expressão “filosofia continental”: emprega “filosofia Continental” (com maiúscula) para designar o tipo de filosofia que comummente se opõe à filosofia analítica. Adopto esta convenção neste artigo. (Sobre a filosofia Continental, veja-se o número da revista Topoi dirigido por Mulligan: “Continental Philosophy Analysed”, Topoi 10:2, Setembro de 1991.)
  27. L’âge de la science (nova série), vol. 1: “Ethique et philosophie politique”, Editions Odile Jacob, 1988, p. 8. Neste texto cito Jean-François Revel: a ideologia, afirmo, “consiste em tomar em consideração, em presença de um pensamento ou da expressão de um sentimento, não a força das provas ou o peso dos factos nos quais se baseiam, mas sim o carácter desejável ou indesejável das conclusões que comportam, relativamente à prosperidade de uma teoria ou de um modo de sentir que se defende” (J.-F. Revel, Porquoi des philosophes? seguido de La cabale des dévouts, Robert Laffont, 1976, p. 185).
  28. Veja-se, por exemplo, M. Guéroult, “La légitimité de l’histoire de la philosophie”, em E. Castelli et al., La philosophie de l’histoire de la philosophie (Vrin, 1956), pp. 51–52 e 66-68.
  29. É interessante constatar que o expressivismo meta-metafilosófico permite pôr o cognitivismo metafilosófico ao abrigo da crítica.
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ISSN 1749-8457