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Crítica
19 de Março de 2002   Filosofia

Questões abertas e fechadas

Martin Hollis
Tradução de Vítor João Oliveira

Será que há pequenos seres azulados em Vénus? Esta é uma questão fechada, uma vez que sabemos como solucioná-la. Se ainda não temos a resposta, sabemos pelo menos como obtê-la. Talvez não seja fácil consegui-la, se a informação de que dispomos sobre Vénus for insuficiente. Seriam necessários combustíveis, metais ou instrumentos aperfeiçoados para que pudéssemos empreender uma busca completa, o que provavelmente custaria muito mais do que estamos dispostos a gastar. Porém, essas questões relacionadas com a técnica e a vontade não afectam nossa compreensão a respeito do que essa busca significa. É uma questão comum e, portanto, passível de análise e resolução.

O caso limite de uma questão fechada dá-se quando já sabemos a sua resposta. A criança pergunta de onde veio aquele ovo todo salpicado e nós respondemos “Foi um tordo que o pôs”. O estudante pergunta em que ano foi redigida a Constituição e o professor dá-lhe a resposta; ou pode ser que a sua pergunta seja um pouco mais difícil, e então pede-se-lhe que procure a resposta na biblioteca.

Estas são perguntas que comportam uma infinidade de informações e não são nem um pouco enigmáticas. Assemelham-se a simples incursões no compartimento de memória do computador. Tais questões são conhecidas pela denominação de “totalmente fechadas”.

Questões mais difíceis começam a pôr em xeque o stock de informações disponível. Quanto é 29 317 × 82 410 379? Talvez ninguém jamais tenha formulado esta questão precisamente nesses termos e, por isso, talvez não haja um arquivo que contenha sua resposta. A técnica para respondê-la, contudo, está disponível e pode dissipar prontamente a nossa ignorância. Há inúmeros outros factos que poderíamos provar, se assim o desejássemos, assim que tivéssemos à mão a técnica adequada. Nas áreas em que já dispomos de técnicas, as questões que lhes dizem respeito estão praticamente fechadas também.

As questões do senso comum, porém, rapidamente extrapolam as técnicas existentes. Será que há seres azuis em Alfa Centauro? Não somos capazes de dizê-lo actualmente. Podemos dizer que, pelas provas de que dispomos, as probabilidades são remotas. A sonda que nos poderia dar a resposta ainda é uma ficção científica. Por outro lado, também esta é uma questão confessadamente trivial. Ela requer tão-somente uma nave avançada o bastante para cobrir grandes distâncias, de modo a esclarecer qual das duas possibilidades, se há ou não seres azuis, corresponde à realidade, e, em princípio, sabemos o que implicaria a construção de tal nave espacial. Portanto, também esta pode ser considerada uma questão fechada.

Presta atenção às palavras: “em princípio”. Elas marcam o início da área difusa do banal. Existirão pequenos seres azuis a habitar regiões tão remotas do universo que seriam necessários milhões de anos para que os alcançássemos?

Não está claro se há um meio de saber isso. “Em princípio”, uma viagem terrivelmente longa feita a bordo de uma nave devidamente equipada para tanto solucionaria o problema. Portanto, “em princípio”, isso é também o que faria uma nave dotada de um propulsor de distorção de tempo que saltasse os pontos intermediários. Todavia, estas possibilidades ainda não estão ao nosso alcance. Por outro lado, a mera distância parece não fazer diferença. Se for algo corriqueiro, a existência ou não de fadas que nos espreitam nos jardins, então deveríamos igualmente questionar-nos a respeito da existência delas na galáxia mais próxima. “Em princípio”, trata-se do mesmo tipo de pergunta. Digamos que seja uma questão fechada, porém não totalmente, porque “ainda não temos a resposta para ela, tão-pouco a técnica que nos possibilitaria respondê-la. É fechada, não obstante, porque (grosso modo, por enquanto) podemos exprimir as condições necessárias à veracidade ou falsidade da hipótese relativa à existência de pequenos seres azuis.

As questões fechadas podem ser representadas por uma imagem que talvez ajude a simplificar as coisas. Trata-se de um mapa e da sua elaboração. O cartógrafo chega a uma região desconhecida com uma página de papel em branco, explora o local e vai aos poucos registrando os seus vários aspectos. Antigamente, explorar o nosso planeta era tão complicado quanto a exploração do espaço nos dias de hoje. O cartógrafo talvez não soubesse registar a curvatura da Terra; é até possível que achasse que a Terra era plana. Porém, em princípio, a paisagem lá estava à sua espera. As suas montanhas altas lá estavam, lá estavam os seus rios com os seus dragões ocultos ou não. O problema daquele cartógrafo estava bem definido, ou seja, reproduzir as coisas tais como as via. Esta é uma imagem poderosa acerca da natureza de muitas perguntas da vida quotidiana e da ciência. A sua aplicação não se restringe unicamente a desvelar a natureza das coisas, mas também a determinar como eram ou como serão. Os historiadores, por exemplo, não podem ir para trás no tempo, no entanto, geralmente pensamos neles como cartógrafos cujo trabalho se vale ou não conforme o seu grau de precisão. A imagem retrata um mundo independente do que pensamos a seu respeito, cujas características constituem um teste derradeiro e objectivo daquilo que pensamos.

Questões abertas

A imagem faz sentido com muito menos frequência do que se poderia supor. Será que há vida consciente em algum lugar do universo? Os pequenos seres azuis poderiam servir-nos como exemplo mas (…) “vida consciente” compreende muito mais do que isso; portanto, temos desde logo montado o quebra-cabeças do que se deve levar em conta. Suponha-se que encontramos no mapa de Alfa Centauro a observação “Presença de gases cubóides” e acrescentemos a isso tudo o mais que tal observação puder revelar-nos sobre o seu comportamento. Ainda assim ficaríamos em dúvida se se trata de uma forma de vida e se é consciente. Parece haver algo aqui que escapa à cartografia.

A réplica óbvia a essa questão é que ela está errada. É como se disséssemos ao cartógrafo que registasse todas as características importantes e não o informássemos do que deveria considerar importante, e muito menos ainda lhe explicássemos o significado de “importante”. Certamente que isto é uma possível falha que provavelmente acarretará perda de tempo. Por exemplo, se um satélite fosse posicionado permanentemente sobre o estado de Nebraska, poder-se-ia discutir se ele circundaria a Terra na sua trajectória. Sim, uma vez que orbita em torno do ponto central nocional da Terra; não, uma vez que não percorre na sua trajectória a superfície da Terra. Qual é a resposta correcta? Na verdade, não importa, já que somente o uso que se quer dar ao verbo “circundar” está em jogo. No entanto, este é um exemplo deliberadamente trivial e não se deve generalizá-lo. O verdadeiro questionamento dá-se em relação ao que se considera vida consciente. Se isso não estiver muito claro no caso dos gases cubóides, procure pensar nas atitudes em relação ao feto humano nas discussões acerca do aborto. Não resta dúvida de que esta é uma questão moral, por isso parece especial; porém, há também a questão de como definir um feto, o que nos leva a outros desenvolvimentos.

O dado novo é que a região a ser explorada já não é mais independente do nosso pensamento. É claro que a questão de existirem ou não as montanhas nunca foi independente daquilo que entendemos por “montanha”, porém esta não é minha preocupação. Mesmo que nos recusássemos a chamar o Everest de montanha, ainda assim seria uma montanha. Quer chamemos ou não de montanha uma elevação de 3.000 metros, isso é indiferente em relação à paisagem. Todavia, há uma variedade de conceitos que simplesmente não admitem rótulo. Os conceitos participam também do modo como percebemos as coisas antes de as interpretar e explicar. Na verdade, ao perceber, com frequência já estão a exercitar a interpretação e a explicação. Essa é a ligação que existe entre as leituras aparentemente desconexas da questão inicial. As viagens espaciais, conforme eu disse, poderão modificar a imagem que temos do espaço e de nós mesmos. Essa ligação poderá revolucionar a nossa maneira de pensar sobre o que existe, tornando-nos conscientes, em primeiro lugar, do mapa; e depois, dos modos de executar o mapa, e finalmente de nós mesmos, autores do mapa. Em vez de conceber novas decisões segundo uma determinada estrutura do pensamento, tais decisões poderiam modificar a estrutura. As questões fechadas são as que, não obstante a sua dificuldade e importância, proporcionam respostas que contribuem para a nossa informação. As questões abertas põem em risco as regras através das quais decidimos no que acreditar.

Essa distinção pode ser mais facilmente observada com o auxílio da história. Vamos situar num contexto mais antigo a questão da existência de vida no espaço. Na astronomia medieval cristã, a Terra ocupava o centro do firmamento, era imóvel e permanecia encapsulada pelas esferas concêntricas de cristal da Lua, do Sol e das estrelas fixas. Essas esferas moviam-se eternamente em redor da Terra e somente abaixo da esfera da lua havia mudança ou deterioração. Essa cosmologia não se diferenciava da visão que se tinha a respeito da vida na Terra. Ambas estavam circunscritas a uma estrutura cristã associada a uma visão da natureza humana. O Homem era um ser único no cosmos porque fora criado com livre-arbítrio e alma imortal; estava no centro do projecto divino tanto física quanto espiritualmente. Fisicamente, a Terra ocupava o centro literal das coisas. Espiritualmente, o homem era a única razão por que Deus não criara um universo totalmente automático, sem lugar para a escolha entre o bem e o mal. A vinculação dos aspectos físico e espiritual era fundamental nesse mistério. Nessa estrutura, seria algo estranho perguntar-se sobre a existência de vida consciente em algum outro lugar. Contanto que a estrutura permanecesse imutável, a resposta era um “Não” bem sonoro. Brincar com a ideia da existência de outros seres conscientes, talvez outros jardins do Éden e outras crucifixões, era pura perda de tempo. Para a questão fechada a resposta era definitiva. Ainda assim, persistia a curiosidade. Na verdade, a estrutura era frágil e sob crescente pressão da religião e da ciência. As tensões que levaram à Reforma subverteram a autoridade tradicional da Igreja católica e, consequentemente, o seu poder de manter fechadas as questões fechadas. Os astrónomos começaram a insistir na elaboração de um novo mapa dos céus, deslocando a Terra do centro, e, conforme se declarou posteriormente, as esferas de cristal estilhaçaram-se como vidraças. Tornou-se lógico indagar sobre a existência de vida consciente noutros lugares — uma questão subversiva, agora aberta, cujo sentido se tornara muito pertinente, graças à ascensão de uma estrutura que lhe fora propícia. O processo era gradual e controverso. A bem da verdade, era perigoso — já que os hereges corriam o risco de ser queimados vivos. Somente nos séculos XVI e XVII o mapa moderno do céu e da Terra tomou a forma hoje amplamente aceite. Podemos agora perceber, não sem um ligeiro tremor, que a nossa Terra é somente um satélite situado num diminuto sistema solar com pouco mais de 7.350 milhões de milhas, incrustada numa galáxia de tamanho mediano com 100 biliões de estrelas, estando ela mesma numa teia de galáxias cujo fim os nossos mais potentes telescópios não podem alcançar. Isso permite compreender que a existência da vida humana, medida por esse relógio astronómico, não passa de um mero tique do seu ponteiro. Tal é o contexto que permite estruturar a questão.

Com um certo atraso, podemos agora notar como uma questão fechada se pode tornar aberta e a seguir, com o surgimento de uma nova estrutura, começar a fechar-se outra vez. Todavia, ela não se fechou completamente. Já não insistimos mais em situar no centro a vida humana, a ponto de fundir a ciência e a religião. Porém, não podemos ainda compreender a natureza da vida consciente. A nossa estrutura é vulnerável à procura da experiência futura. Ao mesmo tempo, como qualquer estrutura do pensamento, ela rege a experiência. Esse relacionamento é deveras intrigante. A distinção entre as questões suscitadas no âmbito de uma estrutura e as que desafiam a própria estrutura não se dá de modo imaculado. Podemos fazê-la com razoável sucesso ao comparar as diferentes culturas ao longo do tempo (pela história), ou lugares (pela antropologia). Porém, uma perplexidade latente logo se impõe quando tentamos fazê-la no nosso próprio caso. Estamos envolvidos pela nossa maneira de pensar; para levantar questões abertas, temos de ser capazes de pensar que nosso modo de reflectir pode estar errado. Há algo de paradoxal nesse tipo de curiosidade.

Martin Hollis
Invitation to Philosophy (Oxford: Backwell), pp. 12–17.
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ISSN 1749-8457