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Crítica
29 de Julho de 2017   Metafísica

Artefactos

Peter Van Inwagen
Tradução de Vítor Guerreiro

Imagine um deserto, um verdadeiro deserto onde nada cresce e nada há senão areia. Imagine que um regimento da Legião Estrangeira chega a um determinado ponto nesse deserto com ordens para garantir a segurança das rotas locais de caravanas, contra a bandidagem. A primeira coisa que os legionários fazem é construir um forte. Trazem retroescavadoras e com elas empurram as areias do deserto até que o solo do deserto, antes nivelado, se parece com o seguinte:

Forte de areia

Terão trazido algo (um forte, digamos) à existência? Devo dizer que não o fizeram. O que fizeram, para usar uma expressão que já empreguei, foi rearranjar a mobília do mundo sem acrescentarem coisa alguma à sua lista. As pás das retroescavadoras empurraram grãos de areia — ou simples organizados de modo graniforme — e empilharam-nos de um modo militarmente útil, mas não trouxeram um só objecto à existência. (Contudo, se um dos legionários afirmasse, “Construímos um forte”, afirmaria desse modo uma proposição verdadeira.) O forte, portanto, é um objecto virtual. Poderá servir de modelo no nosso pensamento acerca de artefactos. Outros artefactos diferem desse somente na medida em que os objectos virtuais que são as suas “partes” — os objectos virtuais que vêm a ser agregados no decorrer da sua construção — diferem entre si em dimensões, forma e outras propriedades mais do que diferem entre si os grãos de areia, e na medida em que estas “partes virtuais” se encontram tipicamente ligadas por um conjunto mais diverso de forças físicas (o forte mantém-se coeso, acima do nível granular, inteiramente pela gravitação e pela fricção). Mas estas diferenças não são ontologicamente relevantes.

Desconheço o que os filósofos diriam na sua maioria acerca do nosso forte. Mas pelo menos alguns descreveram um caso semelhante de um modo radicalmente incompatível com a imagem que procurei esboçar no parágrafo anterior. O caso que tenho em mente é o do pedaço de ouro e a (pelo menos momentaneamente) contérmina estátua de ouro. Esse caso foi introduzido na secção 2 quando discutíamos a tese de que todos os objectos têm no máximo uma soma. Mencionei brevemente aí que alguns filósofos defendem que o pedaço e a estátua são numericamente distintos. Quero agora discutir mais cuidadosamente essa ideia. Uma vez que será conveniente ao meu propósito imaginar uma estátua feita de uma matéria que possa ser facilmente trabalhada com os dedos, irei, como um alquimista notoriamente incompetente, transformar o ouro em barro.

Suponhamos que um escultor se depara com um banal pedaço de barro e o molda com a forma de um homem. Segundo os filósofos em quem penso, o escultor traz por esse meio um objecto — uma estátua — à existência. Mas (dizem esses filósofos) o pedaço de barro continua a existir. Ocupa a mesma região do espaço que a estátua e tem a mesma forma e peso e cor e textura, mas mantém a sua identidade separada. Temos de supor isso (dizem-nos esses filósofos) porque há algo ali que tem propriedades que a estátua não tem. Essas são, aproximadamente, as propriedades que Descartes atribuiu ao seu célebre pedaço de cera. Há, por exemplo, algo ali que pode ser moldado numa entre uma infinidade de formas, na sua maioria diferindo radicalmente da forma que presentemente tem. Mas a estátua não tem essa propriedade. Não pode ser radicalmente deformada. Mesmo uma deformação modesta destrui-la-ia. Esse objecto que não é a estátua e que pode sobreviver à deformação radical é, evidentemente, o pedaço de barro. (Alguns filósofos diriam que, além da estátua e do pedaço de barro, há uma terceira coisa, o barro, que, ao contrário do pedaço, pode sobreviver a ser disperso pelos quatro cantos da Terra. Não discutirei “o barro”, pois me parece não levantar quaisquer problemas de princípio, além dos que são já levantados pelo pedaço.) E não se trata apenas dessa propriedade disposicional ou modal que o pedaço de barro não partilha com a estátua. As propriedades históricas do pedaço diferem também das da estátua, uma vez que o pedaço existe há mais tempo do que a estátua.

Qualquer filósofo que adopte essa posição acerca da estátua e do pedaço, presumivelmente, rejeitará a nossa asserção de que os legionários nada trouxeram à existência com as suas retroescavadoras. Dirá (presumivelmente) algo como: jazendo no solo do deserto quando a Legião chegou, misturada com muitos outros do seu género, estava uma certa massa de areia; as retroescavadoras empurraram-na até se tornar fortiforme (separando-a, nesse processo, de outras do seu género), produzindo assim um novo objecto, um forte, um objecto que diferia da agora fortiforme massa de areia, nas suas propriedades históricas e modais — mas somente nessas.

Isso parece-me uma perspectiva inacreditável. Consideremos o caso da estátua e do pedaço de barro. Suponhamos que a estátua e o pedaço existem ambos (embora na verdade eu negue que qualquer deles exista). Assim, seguramente, as palavras “a estátua” são simplesmente um nome que se aplica ao pedaço em diversos pontos do seu percurso temporal. A propriedade ser uma estátua é exemplificada pelo pedaço onde quer que o pedaço tenha a forma apropriada. (Note-se que isso é justamente o que o defensor da distinção numérica do pedaço e da estátua afirma vis-à-vis a propriedade ser espacialmente coincidente com a estátua: essa propriedade é exemplificada pelo pedaço sempre que o pedaço tem a forma apropriada.) Se o leitor adoptar essa perspectiva incrível, então, creio, deve também adoptar a perspectiva de que qualquer forma outré que um pedaço de barro possa ter, esse pedaço é espacialmente coincidente com um objecto com o qual, embora ambos sejam distintos, partilha todas as suas propriedades momentâneas. Tomemos um pedaço de barro e moldemo-lo com alguma forma complicada e arbitrária. Chame-se “zingarelho” a qualquer coisa que seja essencialmente dessa forma. Será que o leitor trouxe à existência um zingarelho? Estou em crer que se o nosso escultor trouxe uma estátua à existência, então o leitor trouxe um zingarelho à existência. “Estatuiforme” é um predicado para forma menos definido do que “zingarelhiforme”, sendo um predicado para o qual dispomos de um uso, e o nosso escultor tencionou produzir algo zingarelhiforme. Mas esses factos pareceriam irrelevantes para quaisquer questões acerca da existência da coisa produzida. Se o leitor pode fazer uma estátua deliberadamente, moldando barro, então pode fazer um zingarelho acidentalmente, moldando barro. Mas se pode fazer um zingarelho por acidente moldando barro, então tem de, à medida que trabalha idilicamente o barro com as mãos, causar a geração e corrupção dos membros de uma série compacta de objectos de duração infinitesimal. É isso que me parece inacreditável.

Se, apesar destas considerações, o leitor estiver ainda inclinado a crer na estátua que é distinta do pedaço de barro, considere o seguinte. Temos uma serpente, uma serpente muito longa, fina e rija. Sem cortar ou de algum modo ferir a serpente, enredamo-la engenhosamente na forma de uma rede (usando uma arte de que dispomos) e suspendemos a rede entre duas árvores. Somos, portanto, artesãos. Fizemos que houvesse uma rede onde antes não havia rede alguma. Não obstante, não expandimos o conteúdo do mundo mas apenas o rearranjámos. Se imaginarmos que a nossa serpente é um ser inteligente e a imaginarmos refletindo sobre a questão “Haverá um objecto — uma rede — que é numericamente distinta de mim mas de momento coincide espacialmente comigo?” então prestamos um grave desserviço à reputação intelectual da nossa indefesa criatura ficcional se a fizermos responder afirmativamente a essa questão. Uma serpente inteligente, genuinamente inteligente, nas curiosas circunstâncias que imaginámos concluirá, após não mais do que um momento muito breve de reflexão, “Não, não… Nada há aqui além de mim”. Se somos também inteligentes, concordaremos com ela.1 Mas se concordarmos mesmo que a serpente se transforma momentaneamente numa rede, então, sem dúvida, devemos também concordar (se acreditamos de todo em qualquer destas coisas) que o pedaço de barro se transforma momentaneamente numa estátua e a massa de areia se torna momentaneamente um forte. Mas por que razão acreditar em qualquer dessas coisas? Por que razão (só para nos centrarmos em intuições) acreditar na massa de areia? Supondo que os grãos de areia existem — e, evidentemente, não creio neles, tão-pouco — que razão poderia haver para acreditar na massa? Não me ocorre razão alguma a não ser uma aderência ao Universalismo, e o Universalismo, como vimos,2 é falso.

Não há, portanto, mesas e cadeiras, e não há quaisquer outros artefactos — com a excepção improvável de umas poucas coisas como a nossa rede viva. Os artesãos não criam; não, pelo menos, no sentido de causarem a existência de coisas. Rearranjam objectos no espaço e fazem certas relações de vinculação ocorrer ou deixar de ocorrer (como no caso do escultor que delapida um bloco de mármore) entre objectos. Mas, em última análise, o labor de Miguel Ângelo e do mais habilidoso relojoeiro são tão destituídos de qualquer genuína questão metafísica como o labor dos nossos legionários. Todas essas pessoas estão simplesmente a deslocar de um lado para o outro a matéria do mundo. (Espero não ser necessário afirmar que essa descrição do labor dos artesãos, por muito importante que seja para a metafísica, não tem quaisquer consequências para a estética em particular ou para a teoria do valor em geral. Considere-se o valor económico. Suponhamos que é necessário para um dado propósito científico posicionar duas peças de equipamento que se encontram a cerca de cem quilómetros de distância entre si, de tal modo que a distância entre eles é conhecida à marca de cem milionésimos de centímetro. Os cientistas podem passar três semanas e gastar dez mil dólares a fazer isto e considerar bem gastos o tempo e dinheiro. O posicionamento relativo preciso dos dois dispositivos, portanto, é uma “coisa” de considerável valor económico, e provavelmente algo muitíssimo frágil e cuidadosamente protegido. Mas ninguém suporia que ao posicionar assim as duas peças de equipamento os cientistas fizeram vir algo à existência. Arranjaram coisas preexistentes à sua disposição e assim criaram valor económico. Vermeer arranjou coisas preexistentes à sua disposição e assim criou valor estético. O valor pode residir no arranjo de uma pluralidade de coisas; não tem de ter um objecto único como veículo.)

Ora, se não há artefactos, então não há problemas filosóficos acerca de artefactos. Ou, no mínimo, aqueles problemas filosóficos acerca dos quais devíamos ter dito que eram “acerca de artefactos” são problemas reais somente na medida em que as frases usadas para os formular podem ser traduzidas por frases das quais se pode ver claramente que não decorre a existência de quaisquer objectos físicos a não ser os simples e os organismos. E não sei de qualquer problema tradicional acerca dos artefactos que possa sobreviver a esse género de tradução. Isto é particularmente verdadeiro acerca de problemas de identidade e persistência através de mudanças mereológicas. O maior e mais profundo dos problemas clássicos acerca da identidade dos artefactos é o quebra-cabeças do barco de Teseu. (Confio que quem se tenha disposto a ler até aqui conhece a história.) A resposta à questão especial da composição que propus lida, evidentemente, de forma abrupta com este quebra-cabeças: não há barcos e portanto não há quebra-cabeças acerca da identidade de barcos. Mas, embora isso seja inteiramente verdadeiro, pode ser desenvolvido. Narremos a história do barco de Teseu numa linguagem que não faça sequer uma referência visível a barcos. (Para simplificar esse projecto, suponhamos que esses objectos virtuais a que chamamos “barcos” são compostos inteiramente por simples chamados “tábuas”. Ou, se preferir, podemos dizer que ao narrar a nossa história tratamos as tábuas como “simples”, visto que as suas identidades individuais não estão em causa e visto que as suas partes virtuais e propriedades causais virtuais relevantes se mantêm invariantes ao longo da história. Isso é um dispositivo útil que nos permite usar palavras familiares como “tábua” e portanto nos permite narrar a nossa história com um mínimo de aparato. Mas se alguém insistir nisso, podemos permutar a nossa conversa acerca de tábuas por uma conversa acerca de simples organizados tabuiformemente.)

Era uma vez certas tábuas que foram organizadas de modo naviforme. Chamemos-lhes as Primeiras Tábuas. (“As Primeiras Tábuas” é um designador plural rígido, como “Os Empiristas Britânicos”.) Uma das Primeiras Tábuas foi removida das outras e colocada num campo. Foi então substituída por uma nova tábua; ou seja, um carpinteiro fez que a nova tábua e as Primeiras Tábuas remanscentes ficassem organizadas de modo naviforme, e justamente de tal modo que a nova tábua estava em contacto com as mesmas tábuas com que a tábua removida estivera em contacto, exactamente nos mesmos pontos. Chame-se às tábuas que foram então organizadas de modo naviforme “Segundas Tábuas”. Uma tábua que foi simultaneamente uma das Primeiras Tábuas e uma das Segundas Tábuas foi removida das outras, colocada num campo e substituída (segundo o procedimento já explicado), com a consequência de que determinadas tábuas ficam organizadas de modo naviforme. Então uma tábua que foi uma das Primeiras Tábuas e uma das Segundas Tábuas e uma das Terceiras Tábuas… Este processo foi repetido até todas as Primeiras Tábuas estarem no campo. Foi então que se fez as Primeiras Tábuas ficarem organizadas de modo naviforme, e justamente de tal maneira que cada uma delas ficou em contacto com as mesmas tábuas com que estivera em contacto quando as Primeiras Tábuas estiveram organizadas pela última vez de modo naviforme, e em contacto com elas justamente nos mesmos pontos.

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Dúvidas?

Não faz parte desta história que quaisquer barcos comecem a existir ou deixem de existir ou que alguma vez tenham existido. Na história não sucede senão que as tábuas são reorganizadas, misturadas, postas em contacto, separadas e empilhadas. Mas em nenhuma circunstância duas ou mais dessas tábuas compõem seja o que for, e nenhuma tábua é sequer uma parte apropriada de coisa alguma. E isso não é uma imperfeição na história ou no meu modo de a narrar. Nada de interesse filosófico foi excluído da história. Tudo o que se passou está representado (algo abstractamente, reconheço) na minha descrição do modo como as tábuas foram misturadas durante um determinado período. Não há, portanto, quaisquer questões filosóficas a colocar acerca dos eventos que descrevi. Em particular, não uma questão como “Qual dos dois barcos existentes no final da história é o barco com que a história começou?” pois a história terminou como começou: sem quaisquer barcos, de todo.

“Mas é certo que, no decorrer da vida quotidiana, proferimos frases de identidade que referem artefactos. E ao proferir essas frases, por vezes afirmamos coisas que são verdadeiras e por vezes coisas que são falsas. Se afirmamos, “Esta é a casa que o João construiu” e se trata da casa que o João construiu, então temos razão, e se se trata da casa que a Joana construiu, então estamos errados. Como explicaria o leitor esta diferença?”

Quão seriamente devemos tomar os termos singulares nessas afirmações de identidade? Suponha que sucede os marcianos não dizerem “Esta é a casa que o João construiu”; suponha que dizem algo que se deixa traduzir literalmente por “A esses foi dada uma organização casiforme pelo João”. (“Esses o quê?” Bom, isso o quê? “Essa casa”. Essas coisas organizadas de modo casiforme.) Não vejo razão para pensar que os marcianos não se poderiam “orientar no mundo” tão bem quanto nós o fazemos. Mas será a nossa frase metafisicamente superior à dos marcianos, na medida em que contém o pronome demonstrativo “isso” e o substantivo contável “casa”, além de um verbo agencial, “construir”, que, ao contrário do “organizar” dos marcianos, tem um objecto singular? Será que a nossa frase revela mais adequadamente a estrutura do mundo que a dos marcianos? Não creio. Diria ainda que não penso que a linguagem dos marcianos seja superior à nossa. Pode ser que a deles “revele mais adequadamente a estrutura do mundo”, no sentido de que carece de determinadas características susceptíveis de induzir em erro filósofos que procuram descrever a estrutura do mundo e que são, consciente ou inconscientemente, orientados nestas tentativas pela estrutura da linguagem que usam para falar acerca do mundo. Mas a linguagem não evoluiu com o fim de orientar a especulação filosófica. Não é para isso que serve. (Trata-se de uma questão acerca da história biológica da linguagem. Mas praticamente a mesma se põe acerca das histórias das línguas particulares. As línguas não evoluem com o propósito de orientar a especulação filosófica. Não é para isso que servem.) Pode ser, portanto, que uma língua em que se tem de dizer “está a chover”, ou na qual se pode usar “existe” como um predicado, seja ontologicamente traiçoeira de modos que outras línguas imagináveis não o são. Mas isso reflecte-se adversamente em tais línguas tanto quanto o facto de algumas garrafas de vinho darem maus rolos da massa se reflecte adversamente nessas garrafas de vinho.

A paráfrase, como o nosso recontar da história do barco de Teseu ou a nossa análise anterior de “Algumas cadeiras são mais pesadas do que algumas mesas” tem interesse filosófico sobretudo porque nos dá alternativas aos nossos maneiras comuns de falar, alternativas que se pode pôr em funcionamento quando os filósofos as sujeitam a pressões dialécticas que não foram concebidas para suportar. Considere um problema simples de identidade acerca de casas. O Porco Sábio construiu uma casa inteiramente feita de tijolos (simples honoríficos), dez mil tijolos. Isso foi há três gerações. Ao longo dos anos, os seus industriosos descendentes substituíram dois mil deles. Supondo que existe uma casa que o Porco Sábio construiu e que existe uma casa aqui e agora, então ou a casa aqui e agora é a que o Porco Sábio construiu ou não é, ou a Lei do Terceiro Excluído tem de sofrer algum género de correção.3 Se o leitor crê que há, num sentido filosófico estrito, casas — se crê que quando se organiza tijolos de modo casiforme eles compõem algo — então enfrenta o problema de escolher uma dessas alternativas. Mas suponha que insistimos que quando se discute estritamente questões acerca da identidade de artefactos, se leva a cabo um debate numa linguagem que nada refere além de simples e organismos vivos e objectos abstratos. Se seguirmos essa regra, não seremos de todo capazes de formular quaisquer questões filosóficas acerca da identidade dos artefactos. As únicas questões que encontraremos serão do seguinte género: “Havia tijolos organizados de modo casiforme nesse momento?”; “Quantos dos tijolos que estavam entre os que foram organizados de modo casiforme nesse momento se encontram entre os que estão organizados de modo casiforme agora?”; “O que foi feito dos tijolos que foram substituídos?”

A minha posição, portanto, é a seguinte: estou tão disposto quanto o leitor a usar frases que contêm “casa” ou “barco” nos afazeres quotidianos da vida. Mas se começamos por insistir que as coisas de que falamos estritamente e em cada aspecto se conformam a princípios lógicos gerais como a lei do terceiro excluído, então insistirei que nos afastámos dos afazeres quotidianos da vida e consequentemente insistirei que adoptemos uma linguagem capaz de suportar o peso de uma aderência plena e abrangente à lei do terceiro excluído: uma linguagem que nada refere além de simples e organismos vivos e objectos abstratos. Afinal de contas, isso é essencialmente o que devemos fazer, e o que o próprio leitor faria, em muitas outras circunstâncias. Se o leitor se tornar intransigente acerca da aderência estrita ao princípio de não-contradição — isto é, se insistir que mesmo a estrutura superficial das minhas frases nunca tem a forma “p e não-p” — então não mais direi “Está e não está” em resposta a “Está a chover?” e falarei, ao invés, em neblinas. Se insistir que todo o fragmento de discurso com a forma sintáctica de uma expressão singular referencial denota um objecto e que todo o predicado exprime uma propriedade possível, não mais direi “Um pai mediano tem 1.3 filhos” e direi que o número de crianças dividido pelo número de progenitores masculinos é 1.3. Se insistir em levantar a questão de o nigre4 que vemos diante de nós é o nigre que vimos na semana passada, então recusar-me-ei de todo a usar o substantivo contável “nigre” e falarei em animais organizados de modo nigriforme. Recuando assim para outros géneros de linguagem, como é óbvio, afirmo implicitamente que a linguagem para a qual recuei é tal que qualquer verdade que possa ser expressa na linguagem original pode ser expressa na “linguagem de refúgio”.

Será que a nossa linguagem de refúgio (a linguagem empregue em paráfrases de frases de quantificação múltipla na secção 11) na realidade nos dão um refúgio satisfatório? Não é fácil determinar. Sem dúvida que há algumas coisas que podem ser ditas, ou podem aparentemente ser ditas, na linguagem comum que não parecem exprimíveis na linguagem de refúgio. Eis um exemplo saliente: “A mesmíssima casa que está aqui agora permaneceu continuamente aqui durante trezentos anos”. Seja o que for que possamos afirmar na linguagem de refúgio, parece ao mesmo tempo demasiado vago e demasiado informativo para ser uma paráfrase correcta dessa frase. Suponha que experimentávamos o seguinte: “Há tijolos organizados de modo casiforme aqui agora e têm estado neste local tijolos organizados de modo casiforme em cada momento do tempo nos últimos trezentos anos, e em quaisquer dois momentos no decurso desses anos, separados somente por um curto intervalo, os tijolos organizados de modo casiforme nesses dois momentos eram basicamente os mesmos tijolos, e os tijolos neste local sempre estiveram organizados basicamente do mesmo modo”. Essa afirmação parece demasiado vaga porque contém expressões explicitamente vagas, como “curto” e “basicamente o mesmo”, que não correspondem a quaisquer elementos explicitamente vagos na original. Essa afirmação parece demasiado informativa porque a história que conta é sobremaneira específica. Sem dúvida que haverá outras histórias, além desta acerca dos tijolos que (como comummente suporíamos) compõem uma casa, que nos levariam a afirmar que a mesma casa permanecera aqui durante trezentos anos? (Não poderia uma ala inteira ser adicionada à casa num acesso febril de esforço laborioso? Não poderia uma ala ter sido demolida mais rapidamente ainda? Não poderia uma casa reter a sua identidade através de tamanhas modificações catastróficas?)

Poder-se-ia tentar desenvolver a nossa paráfrase de modo a ter em conta essas dificuldades. Mas embora não disponha de qualquer argumento a favor disso, creio que nenhuma paráfrase de “A mesmíssima casa que está aqui agora permaneceu aqui durante trezentos anos” na linguagem da reorganização de tijolos é possível. Ou, pelo menos, creio que isso é verdadeiro se a paráfrase tem de referir somente tijolos e as suas relações mútuas, porque creio que a frase original faz referência velada às actividades e intenções de seres inteligentes, no que diz respeito à reorganização de tijolos.

Imaginemos uma situação em que determinadas pessoas — “nós” — têm intenções bastante definidas no que diz respeito à reorganização de alguns objectos — digamos, três. Suponhamos que organizamos três lápis sobre uma mesa para formar um triângulo. Suponhamos que fazemos um voto solene de manter essa organização tanto quanto possível na sua forma original. (Talvez acreditemos que essa organização afasta forças malignas.) Suponhamos que o conteúdo do que prometemos realmente se parece, em detalhe, com algo do género:

Se a organização dos lápis for desfeita, quem quer que repare nisso reorganizá-los-á imediatamente do modo como estavam antes.

Se qualquer dos lápis desaparecer, será feita uma busca pelo mesmo; se não puder ser encontrado ou se ficar danificado, será providenciado um lápis tão semelhante a esse quanto possível para ocupar o seu lugar.

Verificar-se-á a organização pelo menos uma vez por hora, para ver se há ou não que atender a um dos pontos anteriores; será publicado um horário para os responsáveis por essa acção no quadro de comunicações.

Podemos imaginar que formamos uma sociedade e levamos os novos membros a desempenhar esses deveres no caso de os membros mais velhos morrerem ou renunciarem. Suponhamos que passaram trezentos anos desde a fundação da sociedade e que nesse período sete lápis (incluindo todos os originais) desapareceram e a eles se substituiu outros. O conteúdo de um diário ou registo das actividades da sociedade ao longo dos anos, ou o evento prorrogado e complexo, cujo decorrer é registado nesse diário, será aquilo que designarei como “história de manutenção”. Uma história de manutenção começa com uma organização de objectos (tipicamente, objectos virtuais) e é constituída pelas actividades de um grupo de seres inteligentes agindo em concordância com as prescrições de uma “constituição” (como a que consiste nas três regras anteriores e algumas regras acerca da substituição de membros da sociedade) para manter essa organização. Em qualquer dado ponto numa história de manutenção, podemos afirmar que essa história tem determinados “objectos actuais”: os objectos que se organiza assim segundo o padrão que a instituição foi instituída para manter. No nosso exemplo, em qualquer dado momento, três lápis são nesse momento os objectos actuais da história de manutenção.

Um exemplo mais realista de uma história de manutenção poderia ser dado pela história de uma pilha de lenha. Os troncos são inicialmente empilhados de um certo modo, e esses troncos vão sendo substituídos de acordo com uma instituição informal, em vigor entre as pessoas que usam a pilha. Ou, mais uma vez, os nossos legionários presumivelmente agem de acordo com as prescrições de uma determinada instituição ao manter a organização de grãos de areia apresentada anteriormente; se não o fizessem, o deserto logo ficaria plano mais uma vez. Os troncos empilhados, portanto, são os objectos actuais de uma história de manutenção, assim como os grãos de areia empilhados. E, como argumentámos, uma casa difere de um forte de areia ou uma pilha de lenha somente na medida em que os objectos virtuais que a compõem e as forças físicas que garantem a estabilidade da sua organização são mais diversos. E uma casa, evidentemente, tem por norma uma história de manutenção. (Mesmo se uma casa nunca sofreu quaisquer reparações, há normalmente pessoas cujas responsabilidades e disposições para as desempenhar as levariam a repará-la sob certas circunstâncias — como poderíamos dizer, não há entradas no registo, mas as regras para as fazer foram estabelecidas. E esse tanto é suficiente para a casa ter uma história de manutenção.)

Podemos parafrasear “A mesmíssima casa que está aqui agora permaneceu aqui durante trezentos anos”, do seguinte modo:

Há tijolos (ou, mais geralmente, objectos) organizados de modo casiforme aqui agora, e esses tijolos são os objectos actuais de uma história de manutenção que começou há trezentos anos; e em nenhum momento nesse período estiveram os então-actuais objectos dessa história organizados de modo casiforme senão aqui.

(Se eliminássemos a última oração, obteríamos uma paráfrase de “A casa que está aqui agora existiu durante trezentos anos”.) Sem dúvida que se poderia melhorar essa paráfrase. Considere, por exemplo, a seguinte dificuldade. Suponha que os tijolos que virtualmente compõem uma casa permaneceram nesse local até há pouco tempo, quando foram desmontados por um demónio caprichoso e imediatamente organizados, uma vez mais, de modo casiforme, mas seguindo um desenho inteiramente diferente. Então, a frase original exprimiria uma falsidade mesmo quando compreendida no sentido lato e popular. Mas a paráfrase pode muito bem ser verdadeira, pois pode suceder que os blocos continuam a ser objectos de uma história de manutenção tricentenária; se os responsáveis por manter a casa começam imediatamente a desfazer o trabalho do demónio e a colocar os tijolos novamente como estavam antes, então deveríamos saber que isso teria sucedido. Uma segunda dificuldade: suponha que toda a gente no mundo morria subitamente de uma causa que deixasse os tijolos imperturbados. Nesse caso não há mais uma história de manutenção da qual os tijolos são os objectos actuais, mas “A casa existe” continua a exprimir seja que género de verdade for que exprimia antes de todas as constituições se tornarem vácuas.

Creio que a todos esses exemplos se pode dar resposta. Por exemplo, podemos afirmar que determinados tijolos são objectos “apropriadamente actuais” da história de manutenção, que figuram na nossa história se são os objectos actuais dessa história e, se estão agora organizados de modo casiforme, não estão organizados de modo casiforme devido à aplicação de forças que operam independentemente da constituição que pertence a essa história. (No nosso primeiro exemplo, os tijolos que estão aqui e agora organizados de modo casiforme não são objectos apropriadamente actuais da história da qual são objectos actuais, uma vez que a sua presente organização casiforme se deve a um demónio cujas actividades não fazem parte dessa história.) Tendo introduzido esse conceito, podemos modificar a nossa paráfrase de modo que diga “(...) são os objectos apropriadamente actuais (...)” Quanto ao segundo exemplo, talvez fosse suficiente acrescentar uma oração mais ou menos como “(...) ou se não são os objectos actuais de qualquer história de manutenção, estão organizados muito aproximadamente a como a última história de manutenção de que faziam parte os deixou”.

Sem dúvida que se poderia imaginar outros casos que tornariam imprescindível um desenvolvimento ulterior da técnica de paráfrase que introduzi por via do exemplo. (Por exemplo, o que dizer de coisas como taças para vinho, que nunca são reparadas quando danificadas? E o que dizer de coisas como charutos, que são, num certo sentido, feitas para serem destruídas?) Não desenvolverei muito mais esta linha, pois estou convencido de que a proposta que fiz está na pista certa: afirmações que são aparentemente acerca da persistência de artefactos fazem referência velada às disposições de seres inteligentes para manter determinadas organizações de matéria. Podemos comparar afirmações desse género com afirmações aparentemente acerca da persistência de constelações (“Os céus mudam lentamente; as constelações de hoje são as constelações a que os gregos deram nome”), as quais fazem referência velada às perspectivas de efectivos ou possíveis observadores dos céus.

Essa proposta tem a virtude de explicar certas tendências intrigantes que temos no nosso discurso acerca da persistência de objectos virtuais. Por que razão queremos dizer que o velho Ingersoll do tio Henrique está agora em pedaços sobre a banca do joalheiro, e que não há relógios na lata de retalhos do joalheiro, embora se pudesse construir cinquenta relógios (de cem mil modos diferentes) a partir das engrenagens e molas que ali se encontram? Resposta: porque as engrenagens e molas espalhadas sobre a banca do joalheiro são os objectos actuais de uma história de manutenção e nenhuma das engrenagens e molas na lata de retalhos o é (ou seja, não há x tais que os x estão na lata de retalhos e os x são os objectos actuais de uma história de manutenção).5 Por que razão é pelo menos uma piada dizer que isso é o machado do meu bisavô, embora tenha tido duas novas cabeças e cinco novos cabos desde o tempo daquele? Por que razão temos pelo menos uma tendência para afirmar que este barco é o barco original de Teseu, embora as tábuas que Teseu originalmente pisou se encontrem alhures e estejam organizadas entre si tal como estavam quando ele as pisava? A resposta em cada caso reside no facto de determinados objectos (virtuais) agora diante de nós serem os objectos actuais de uma história de manutenção.6

A teoria de artefactos que propus nesta secção não responde a todas as questões filosóficas acerca de artefactos. No restante da secção tratarei de cinco questões acerca de artefactos que ficaram sem resposta. O meu tratamento dessas questões pretende dar exemplos de modos pelos quais se poderia ampliar e aplicar a teoria. Mas é concebível que um filósofo que aceitasse a teoria pudesse preferir outros tratamentos a algumas dessas questões ou todas.

Primeira questão: o que dizer de adições ou modificações estruturais consideráveis a um artefacto? Não pode uma nova ala ser adicionada a uma casa? Quando a velha ala norte é consumida num incêndio, não podem os proprietários decidir não a reconstruir? Não poderá uma casa ser consideravelmente reconstruída de modos que não podem ser descritos em termos de adição ou subtração de quartos ou alas? Não pode uma casa manter a sua identidade através desses episódios, em seja que sentido for passível de manter a sua identidade através da substituição gradual dos tijolos que a compõem? Não haverá questões análogas acerca de barcos e pontes — e mesmo acerca de relógios e sapatos? Quanto a mim, pode-se dar respostas plausíveis a essas questões no enquadramento da teoria que propus, se pressupormos que as “constituições” que subjazem a pelo menos alguns géneros de história de manutenção permitem acréscimos e decréscimos significativos no número de objectos actuais dessas histórias ou permitem mudanças significativas no modo como os objectos estão organizados, tal como a constituição de um estado pode permitir um acréscimo ou decréscimo significativo no número pastas ministeriais, ou mudanças estruturais significativas na organização ministerial. (Nesse caso, poderia ser mais apropriado falar numa história de manutenção e modificação, em vez de simplesmente numa história de manutenção, mas manterei a expressão original.) Se, como parece razoável, uma história de manutenção pode ser regida por uma constituição com esta característica, então há um modo óbvio de escrever paráfrases de frases aparentemente acerca da persistência de artefactos através da reconstrução. Eis uma paráfrase modelo: “Quando foi construída, essa casa acolá era menor, uma vez que só em 1952 foi acrescentada a garagem” é parafraseada como “Os objectos iniciais da história de manutenção dessas coisas organizadas de modo casiforme acolá ocupavam colectivamente menos espaço do que ocupam essas coisas acolá, uma vez que só em 1952 os então objectos actuais dessa história incluíram coisas organizadas de modo garagiforme”. Se alguém ficar desconfortável com o contraste entre a frase original simples e idiomática e a sua paráfrase pouco natural e abstrusa, deixai-o reflectir no contraste entre a frase simples e idiomática “O Sol pôs-se atrás dos ulmeiros” e a sua paráfrase pouco natural e abstrusa (p. 112).

Segunda questão: O que dizer acerca de frases modais e contrafactuais que aparentemente são acerca de artefactos? Ou seja, frases como “Esta casa podia ter sido maior” ou “Se esta casa fosse maior seria mais fácil avistá-la do outro lado do rio”? Uma paráfrase da primeira pode servir como modelo: “Estas coisas organizadas de modo casiforme são os objectos de uma história de manutenção tal que poderia ter tido objectos que colectivamente ocupassem mais espaço do que essas coisas efectivamente ocupam”. O leitor notará que desta sugestão decorre que a nossa capacidade de atribuir verdade ou falsidade a proposições expressas por frases como “Esta casa podia ter sido maior” depende da nossa capacidade de identificar eventos em situações contrafactuais. Podemos atribuir valor de verdade a essas frases somente na medida em que somos capazes de afirmar acerca de uma história de manutenção efectiva que isso, esse mesmo evento, teria ocorrido sob determinadas circunstâncias contrafactuais.7

Terceira questão: O que dizer de frases nas quais ocorrem palavras ou expressões que são aparentemente nomes próprios de artefactos — frases como “O Palácio de Buckingham é confortável”?8 Talvez notemos que os eventos, como os continuantes, podem ter nomes próprios: “Segunda Guerra Mundial”, “Revolução Francesa”, e assim por diante. Mas nesse caso não há razão pela qual uma história de manutenção não poderia ter um nome próprio — um nome como, digamos, “a história do Palácio de Buckingham”. (Os nomes próprios de histórias de manutenção não precisam de conter nomes próprios — ou aparentes nomes próprios — de artefactos. Poder-se-ia introduzir um nome próprio para uma história de manutenção simplesmente apontando e dizendo algo como “Vê essas coisas organizadas palacianamente? Chamemos à história de manutenção de que elas são os objectos actuais “Winifred””.) Se assim for, então “Os objectos actuais da história do Palácio de Buckingham estão organizados de modo confortável” pareceria uma paráfrase aceitável de “O Palácio de Buckingham é confortável”.

Essa sugestão pode, evidentemente, ser combinada com a sugestão anterior para gerar um modo de parafrasear frases como “O Palácio de Buckingham podia ser ainda mais confortável”.

Quarta questão: O que dizer acerca de artefactos que se mantêm a si próprios? Podemos imaginar uma máquina que se reparasse e realizasse outros tipos de manutenção a si própria. Ou, se o leitor preferir, podemos imaginar uma série de partes de uma máquina organizadas de modo tal a preservar determinadas características da sua organização mútua contra a dissolução entrópica, explorando de um modo flexível as oportunidades que lhes são oferecidas pelo seu ambiente. Essas partes nunca seriam os objectos de uma história de manutenção no sentido de uma história de operações realizadas sobre elas por agentes externos capazes de agir segundo propósitos. Noutro sentido, mais liberal, de “história de manutenção”, evidentemente, seriam os objectos de uma história de manutenção idêntica às operações mútuas dessas mesmas partes. Não haveria pelo menos tanta razão para afirmar que essas partes de máquina comporiam um objecto real, que persiste no tempo, quanta a que há para afirmar o mesmo acerca dos átomos ou simples cuja actividade constitui a vida de um organismo?

Bom, talvez. Não afirmei, estritamente falando, que não há quaisquer artefactos, mas somente que (além dos simples) não há senão organismos vivos. Lembremos a nossa serpente inteligente, que foi momentaneamente um artefacto. Se um superbiólogo do futuro chegasse a fazer uma ameba “directamente” a partir de átomos, talvez essa ameba fosse simultaneamente um artefacto e um organismo. Talvez a criatura do Dr. Frankenstein fosse simultaneamente um artefacto e um organismo. E talvez uma máquina que se pudesse manter a si própria fosse um organismo. (Talvez o nosso clube de autómatos seja um exemplo de semelhante máquina: não vejo qualquer razão para pensar que um organismo, em termos de necessidade conceptual, tenha de ser um objecto espacialmente conectado.) Quando as pessoas falam na possibilidade de os cientistas “criarem vida”, normalmente pensam na possibilidade de criar coisas vivas cujas partes virtuais não-vivas de maiores dimensões são enormes moléculas orgânicas: coisas que têm o tipo de vida que nós e os cães e as amebas temos. Mas talvez possa haver coisas vivas que têm molas e diodos ou montagens desses componentes como suas partes virtuais não-vivas de maiores dimensões. Não é fácil determinar isso. Se é ou não difícil determinar porque a possibilidade dessas “máquinas vivas” está muito afastada da nossa experiência e não temos senão uma ideia muitíssimo vaga de como se supõe que devem ser, ou se isso é difícil de imaginar simplesmente porque o conceito de vida é vago, é em si mesmo difícil de determinar.

Alguém que em geral simpatize com a minha posição poderá pensar que esta tem de ser tornada mais flexível. Essa pessoa poderá sugerir que o tipo de evento que deve figurar numa resposta correcta ao problema especial da composição é um tipo de que as vidas “moles” ou “orgânicas” ou “biológicas” são um caso especial, um tipo que poderia ter como membros não só vidas moles mas “vidas rígidas”: eventos constituídos pelas operações mútuas de objectos virtuais não-vivos suficientemente grandes para serem visíveis. Não sou irremediavelmente hostil a essa sugestão. Tão-pouco estou preparado para a subscrever.

Quinta questão: “As histórias de manutenção, em alguns aspectos, são como aquilo a que chamámos “vidas”. São indubitavelmente eventos homeodinâmicos. Por que não explorar essa semelhança e “inserir” artefactos na nossa ontologia? Mais formalmente, por que não dar a seguinte resposta ao problema especial da composição?

(∃y os x compõem y) se e somente se

a atividade dos x constitui uma vida ou os x são os objectos actuais de uma história de manutenção.

Essa resposta contraria todos os meus instintos mais profundos. A questão de determinadas coisas constituírem ou não uma vida é uma questão acerca das relações que têm entre si e acerca de nada mais. A questão de determinadas coisas serem ou não os objectos actuais de uma história de manutenção, porém, é uma questão acerca dessas mesmas coisas e também de outras. Podemos afirmar que agir de modo a constituir uma vida é uma relação multígrada “interna” e que ser o objecto corrente de uma história de manutenção é uma relação multígrada “externa”. Os meus instintos mais profundos dizem-me que a composição é uma relação interna e que, portanto, uma resposta apropriada ao problema especial da composição tem de assumir a forma de uma afirmação que assere uma equivalência extensional necessária entre a relação expressa por “os x compõem algo” e uma qualquer relação multígrada interna. Ou podemos evitar falar em relações externas e internas e dizer simplesmente que uma resposta apropriada ao Problema Especial da Composição tem de ser conforme ao seguinte princípio:

Se os x compõem algo, e se os y duplicam perfeitamente os x (tanto nas suas propriedades intrínsecas e nas relações espaciotemporais e causais que têm entre si), então os y compõem algo.

Considere-se, por exemplo, alguns blocos que são empilhados de modo torriforme. Suponha que Deus criava uma réplica perfeita, átomo-a-átomo (ou simples-a-simples) de cada bloco e que alguém empilhava as réplicas para formar uma torre exactamente do mesmo modo que os originais se encontram empilhados. (Ou seja, suponha que alguém fazia que o seguinte se verificasse: Para cada x, y, e R, se x e y são dois dos blocos originais e R é uma relação causal ou espaciotemporal, a réplica de x está em R com a réplica de y se, e somente se, x está em R com y.) Então as réplicas compõem algo (uma torre de blocos, presumivelmente), se, e somente se, os originais compõem algo.

A resposta “liberal” ao problema especial da composição que ora consideramos não se conforma ao princípio da replicação (como lhe chamo). Suponha que uma criança esvazia um saco de blocos sobre o soalho e que alguns desses blocos por acaso caem de tal modo que formam uma pilha torriforme. Suponha que ninguém reparou neste facto. Suponha que a criança empilhou outros blocos exactamente do mesmo modo quando visitava uma tia afectuosa e sentimental, que decidiu manter esses blocos precisamente como a criança os deixou, em memória da sua visita. Se a resposta “liberal” está correcta, então os blocos do último exemplo compõem algo e os blocos do primeiro exemplo não, o que viola o princípio da replicação. (Podemos notar que o princípio da replicação exclui qualquer metafísica de acordo com a qual a existência de coisas físicas depende das atitudes ou actividade mental de seres humanos ou outros observadores do mundo. Se não houvesse seres humanos — ou marcianos ou seja o que for — então haveria estrelas e electrões e montanhas se, e somente se, há efectivamente estrelas e electrões e montanhas. A nossa actividade conceptual pode envolver muito o delimitar de fronteiras, mas delimitar uma fronteira em torno de uma região espacial repleta não torna verdadeiro que há uma dada coisa que preenche precisamente essa região. Se as operações causais mútuas das coisas nessa região podem fazer isso, não requerem qualquer assistência das actividades mentais de observadores externos, e se não podem fazer isso, nenhuma actividade externa as pode ajudar a fazê-lo.)

Ora, poder-se-á argumentar que a tese central deste livro, a resposta proposta, não se conforma ao princípio da replicação. Suponha-se (como poderia prosseguir o argumento) que há alguém exactamente igual a mim — até ao patamar subatómico — excepto que essa pessoa perdeu a orelha direita. Sejam os x os átomos que compõem a dita pessoa, e sejam os y os átomos que me compõem, não tomando em consideração os que compõem a minha orelha direita. Nesse caso, segundo a resposta proposta, os x compõem algo, mas os y, que replicam perfeitamente os x nas suas propriedades intrínsecas e nas relações que têm entre si, não compõem coisa alguma. E essa consequência da nossa suposição viola o princípio da replicação. Respondo que a suposição é impossível, devido ao facto de que as actividades dos átomos adjacentes à minha orelha direita são afectados pela presença dos átomos que compõem (virtualmente) essa orelha, e assim não reproduzem as actividades dos átomos na posição correspondente na minha contraparte mutilada, que compõem tecido cicatricial e não são adjacentes a seja o que for além de ar. Mais geralmente, se os x compõem um organismo mutilado, então não poderia haver y tais que os y replicam perfeitamente os x e os y se encontram apropriadamente entre alguns objectos que compõem um organismo não-mutilado. (Um universalista poderia formular a ideia do seguinte modo: nenhuma parte apropriada de um organismo não-mutilado poderia ser uma réplica perfeita de um organismo mutilado.) “Mas suponha que no preciso instante em que a orelha da sua contraparte é amputada a substituem por um apêndice inorgânico que replica perfeitamente os poderes causais da orelha amputada. Então os átomos adjacentes ao “interface” comportar-se-iam exactamente como se teriam comportado se a orelha não tivesse sido amputada”. Se o “apêndice” replicasse perfeitamente os poderes causais da orelha amputada, até ao patamar atómico, teria de ser uma réplica átomo-a-átomo da orelha e portanto não seria “inorgânica”. Os átomos que virtualmente a comporiam seriam imediatamente assimilados pela minha contraparte, que assim se tornaria uma réplica perfeita de mim.9 E esse resultado não contradiria o princípio da replicação.

Não sei como defender a minha fidelidade instintiva a esse princípio excepto tentando, como tentei, apresentar o princípio a uma luz tão apelativa quanto possível. Em todo o caso, é fácil ver por que razão alguém dotado dos meus instintos rejeitaria uma resposta ao problema especial da composição que envolva essencialmente o conceito de uma história de manutenção.

Há uma segunda razão para rejeitar qualquer resposta semelhante. Considere-se uma vez mais o barco de Teseu. Afirmámos que apelar à noção de uma história de manutenção explica por que razão temos uma forte tendência para afirmar que o barco que “sofre manutenção” é o barco cujas tábuas Teseu originalmente pisou. Mas não esqueçamos que temos também uma forte — talvez mais forte — tendência para afirmar que o barco “reconstruído” é esse barco. Se aceitamos uma resposta ao problema especial da composição que implique que tábuas organizadas de modo naviforme podem compor um objecto, então seremos confrontados com a tarefa de reconciliar essas tendências opostas, e essa é uma tarefa que seria agradável evitar. (Note-se que não há qualquer tendência para identificar um organismo “reconstruído” com o “original”. Se Deus “reagrupasse” os átomos que me compuseram há dez anos, o organismo resultante seguramente não seria eu.)

Nesta secção discutimos certas frases portugesas, como “Esta casa permaneceu aqui durante trezentos anos”, que são normalmente discutidas em ligação com “o problema da identidade ao longo do tempo”. Mas se a nossa resposta ao problema especial da composição estiver correcta, essas frases não podem ter qualquer conexão mais íntima com esse problema (seja o que for ele ao certo), pois nesse caso não há casas ou outros artefactos, e assim não há qualquer problema acerca da sua persistência ao longo do tempo.

Na secção seguinte, a secção 14, examinaremos a persistência ao longo do tempo dos únicos objectos que há: organismos e simples. (Examinaremos também o problema da identidade contrafactual ou “identidade transmundial” para organismos e simples.) Na secção 15 discutiremos um problema especial, porém importante, da identidade ao longo do tempo para organismos: o problema do “transplante cerebral”.

Peter Van Inwagen
Material Beings (Ítaca: Cornell University Press, 1990), secção 13. Revisão da tradução de Lucas Miotto.

Notas

  1. Um argumento que provavelmente nos ocorrerá, visto que somos tão inteligentes, é que — supondo a sobreveniência do mental relativamente ao físico — se há uma rede distinta de uma serpente, a rede tem todas as mesmas crenças que a serpente (deixando de parte minudências acerca de crenças indexicais). Como a serpente, a rede crê que existia antes de a serpente ter sido entretecida para formar uma rede e que continuará a existir depois de a serpente ser desenredada. Ao contrário da serpente, porém, a rede estará errada nessas crenças. A rede está, por exemplo, felizmente insciente de que deixará de existir quando a serpente for desenredada. Dado que nenhuma serpente deixa de existir quando a serpente é desenredada, a rede está errada ao pensar que é uma serpente.↩︎
  2. O autor aqui faz referência ao capítulo 8 de Material Beings. Nesse capítulo, o autor caracteriza o Universalismo como a tese de que “Em todo mundo possível no qual, por exemplo, Tom, Dick e Harry existem, também existe um conjunto que só os contém a eles” (p. 74). N. do T.↩︎
  3. Note-se que a hesitação acerca de como responder à questão “Será a casa que está agora aqui a mesma que estava aqui então?” não é para ser explicada por referência à nossa hesitação acerca de aplicar ou não algum termo geral vago — a menos que esse termo seja “mesma”. Embora “casa” seja indubitavelmente um termo geral vago, esse facto pareceria irrelevante para a nossa hesitação, visto que — podemos assim estipular — a casa que está agora aqui e a casa que aqui estava então são ambas casos centrais, perfeitamente claros de casas. Ou pelo menos isso é verdadeiro se as casas são objectos tridimensionais. Se as casas são objectos tetradimensionais, que se prolongam no tempo bem como no espaço, então podemos explicar a hesitação acerca de como responder à pergunta sobre a casa “agora” e a casa “então” serem ou não a mesma, por referência à hesitação acerca de aplicar ou não um termo geral vago. Esse ponto será desenvolvido em detalhe na secção 18, que inclui também uma discussão da vagueza e da Lei do Terceiro Excluído.↩︎
  4. “Nigre” é o termo usado por van Inwagen para se referir a um animal que, ao longe, se parece com um tigre negro, mas que na verdade é uma colecção de seis animais agrupados na forma de um tigre negro. Inwagen usa o exemplo para ilustrar que tal como incorreríamos em erro ao afirmar “há aqui um nigre” — já que não há no mundo um objecto que seja um nigre, mas apenas diferentes objectos agrupados na forma de um nigre — incorreríamos igualmente em erro ao afirmar que cadeiras, mesas, ou outros artefactos. Nada no mundo, de acordo com Inwagen, é uma mesa ou cadeira. Há apenas objectos agrupados na forma de uma mesa ou cadeira. Leia-se a piada original sobre o nigre em Material Beings, p. 103–105. N do T.↩︎
  5. Não afirmo que a teoria de artefactos que propus “torna verdadeira” a frase “O velho Ingersol do tio Henrique está agora em pedaços sobre a banca do joalheiro”. Se isso é ou não assim, depende de que proposição foi, de acordo com a nossa teoria, expressa por essa frase. Seguramente não é verdadeiro que as peças sobre a banca estão agora organizadas de modo relojiforme, e pode-se argumentar plausivelmente que a frase citada exprime uma verdade (de acordo com a nossa teoria) somente se essas peças estão agora organizadas de modo relojiforme. Afirmo apenas que essa teoria dos artefactos explica a nossa tendência para proferir aquela frase e a correspondente ausência de qualquer tendência para proferir qualquer frase semelhante no que diz respeito às partes que estão na lata dos retalhos.↩︎
  6. Concedo, porém, que a nossa teoria nada faz para explicar a nossa tendência pelo menos igualmente forte para afirmar que o barco reconstruído a partir das tábuas “originais” é o barco original.↩︎
  7. As minhas próprias perspectivas acerca da identidade contrafactual de eventos encontram-se em “Ability and Responsability”, Philosophical Review 87 (1978): 201–224, e An Essay on Free Will (Oxford: The Clarendon Press, 1983), pp. 167–170.↩︎
  8. Esta questão foi-me colocada por Eric Olson.↩︎
  9. Isto é talvez demasiado simples. O que é seguramente verdadeiro é o seguinte: pelo menos a camada de átomos que compõem virtualmente a superfície do apêndice justamente na interface do apêndice carnal teria de ser uma réplica perfeita da camada correspondente de átomos na orelha amputada, se o apêndice na realidade replicasse perfeitamente os poderes causais da orelha amputada. Mas então esses átomos seriam assimilados pelo organismo. Podemos aplicar esse raciocínio uma e outra vez, uma camada de átomos de cada vez, até que todo o apêndice tenha sido assimilado — e seja, efectivamente, uma orelha.↩︎
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