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Crítica
10 de Outubro de 2010   Filosofia

Para que serve a filosofia?

Vítor Guerreiro

Lembro-me de há vários anos ter visto um livro sobre as frases mais insensatas dos filósofos. A referência exacta não é realmente importante. Nesse livro citava-se supostos exemplos das afirmações filosóficas mais insensatas. Uma delas, se não me engano (se estiver enganado tanto faz), era a “11.ª Tese sobre Feuerbach”, de Marx: “Os filósofos têm-se limitado a interpretar diversamente o mundo, a questão, porém, é transformá-lo”. Outra era um aforismo de Nietzsche que já não recordo. Também não é importante. Não estou directamente interessado em mostrar por que razões esta afirmação de Marx em particular é insensata (embora o faça depois), nem por que os aforismos de Nietzsche valem tanto quanto os aforismos opostos do grande e carismático filósofo inexistente Ehcsztein.

Estou mais interessado em desmontar outra ideia, da qual a tese de Marx é uma versão mais restrita — a ideia de que a filosofia não serve para coisa alguma. A diferença entre a tese de Marx e esta ideia é que podemos pensar que a filosofia é inútil sem pensarmos que é inútil por não ser uma “arma de arremesso” na transformação política da sociedade. Podemos ter outras motivações para pensar que a filosofia é inútil. Contudo, mostrar o que está errado na afirmação de Marx é uma boa maneira de compreender o que está errado no cepticismo acerca do valor da filosofia em geral.

A ideia da inutilidade da filosofia deve muito a uma tendência comum que as pessoas têm para pensar que aquilo a que dão mais importância é a única coisa que tem importância. Assim, é normal, mesmo na filosofia, as pessoas acharem que os problemas que mais lhes interessam são os únicos problemas relevantes. Uns acham que a filosofia política é que é, ao passo que a metafísica geral são só uns quebra-cabeças para entreter quem anda com a cabeça no ar e não vive neste mundo. Para outros, só os problemas acerca da linguagem são realmente importantes, ao passo que, digamos, a filosofia da arte é apenas um divertimento pueril (não é o “verdadeiro atletismo intelectual”, por assim dizer). Ora, é natural que o indivíduo com uma inclinação semelhante mas cujas preocupações não incluam qualquer destes problemas pense que a filosofia em bloco não serve para coisa alguma (“Por que perdes tempo a estudar essas coisas? Aprende antes a...”). No fundo, todas são manifestações da mesma atitude de desprezo para com aquilo que à primeira vista não nos parece relevante: um pouco como um engenheiro que considere irrelevante tudo o que não seja saber como fazer as pontes manterem-se de pé e os edifícios não desabarem em cima das pessoas, confundindo a importância destas coisas com a irrelevância daquelas.

No caso de Marx, a atitude não é particularmente sábia, uma vez que se queremos mudar o mundo, não será má ideia tentar compreendê-lo tão bem quanto possível. O próprio Marx passou anos a escrever O Capital, que é também uma “interpretação do mundo”. Na filosofia, como na ciência, a questão é saber quais das nossas interpretações são verdadeiras. Tanto a obra Sobre a Origem das Espécies, de Charles Darwin, como um ensaio sobre epistemologia ou metafísica são interpretações do mundo (ou de aspectos do mundo). Mas não é particularmente sábio apoucar a obra de Darwin por ser “apenas” uma interpretação do mundo, independentemente de a transformação política do mundo ser ou não um item na nossa lista de prioridades. Afinal, a reciclagem do lixo também pode estar na nossa lista de prioridades mas isso não diminui, só por si, a importância do teatro.

Neste ponto, um defensor do cepticismo acerca do valor da filosofia podia talvez alegar que enquanto a ciência nos ajuda realmente a compreender o mundo a filosofia não o faz. Mas nesse caso é irrelevante se a questão é ou não a de transformar o mundo. A questão é saber se a filosofia nos ajuda ou não a compreender melhor o mundo. O que fazemos depois com essa compreensão é outra coisa.

Mas permite a filosofia compreender melhor o mundo? Considere-se, por exemplo, a ideia de que tudo o que há para saber acerca do mundo só pode ser conhecido empiricamente. É evidente que não podemos conhecer empiricamente a verdade ou falsidade desta interpretação; só podemos descobrir essa verdade ou falsidade reflectindo intensamente sobre aquilo com que nos comprometem as interpretações do mundo que podemos justificadamente aceitar como verdadeiras. Ou seja, para saber se a filosofia nos ajuda a compreender melhor o mundo temos de fazer filosofia, visto que não podemos mostrar empiricamente o contrário.

Contudo, não vou insistir no carácter autoderrotante do cepticismo acerca do valor da filosofia, para o qual se chamou mais de uma vez a atenção em vários artigos aqui publicados. Não é só dando resposta aos problemas filosóficos fundamentais que a filosofia nos ajuda a compreender melhor o mundo. Se não pensarmos cuidadosamente, podemos ficar inicialmente muito impressionados com afirmações insustentáveis; ou podemos ser levados a aceitá-las ou rejeitá-las pelas razões erradas. Deparo-me frequentemente com situações que mostram como as pessoas podem beneficiar de uma formação filosófica elementar. Na sua maioria, estas situações dizem respeito à falta de formação no manuseamento de conceitos, incapacidade de formular claramente ideias e de compreender as suas relações, uso desastrado do léxico filosófico básico e confusões categoriais.

Eis apenas alguns exemplos que me ocorrem: confundir contingência com temporalidade; condições necessárias, com propriedades essenciais; metafísico, com imaterial; validade, com verdade; falacioso, com falso; expressão, com representação; abstracto, com conceptual; noções epistemológicas, com noções metafísicas. A lista poderia continuar. Assim, é fácil numa conversa tropeçarmos em inferências deste género: “Nasci português, portanto ser português é uma propriedade essencial minha”. Neste caso, confunde-se o que é essencial com a inalterabilidade do passado.

Outro aspecto importante é que a mera erudição não diminui a probabilidade de fazermos confusões deste género, se não beneficiarmos ao mesmo tempo de uma formação elementar em filosofia. Esta formação elementar não pode consistir apenas na leitura solitária de textos. Ler muitos textos de filosofia não nos ajudará a ter um pensamento mais organizado se não nos habituarmos a testar as nossas ideias discutindo com outras pessoas que se interessam pelos mesmos problemas. A mera erudição sem o hábito de testar argumentativamente as nossas ideias, em particular através da discussão intensa com outros, é o que leva por vezes mesmo alguns filósofos a fazerem afirmações bombásticas mas pouco sensatas. E se nós próprios não beneficiarmos dessa formação, seremos tentados ou a ignorar o que os filósofos disseram, ou a avaliá-los não pelo modo como defenderam argumentativamente as suas ideias, mas pelo maior ou menor poder sugestivo das suas afirmações, incluindo os aforismos menos sensatos mas muito bombásticos.

Mesmo que pensemos que a filosofia só interessa aos filósofos, a verdade é que usamos constantemente termos filosóficos e fazemos afirmações cujo âmbito é filosófico e não científico. Isto é inevitável. Não podemos deixar de pressupor e usar ideias acerca da natureza fundamental da realidade, da natureza do tempo, da identidade pessoal, do livre-arbítrio, do valor moral, do valor estético, da natureza do conhecimento ou da justificação das nossas crenças, entre vários outros tópicos que na filosofia são estudados de um modo sistemático e cuidado. Recusar a filosofia não é o mesmo que conseguir efectivamente eliminar os pressupostos filosóficos das nossas interpretações do mundo, tal como ignorar a ciência não nos salva de ter crenças falsas acerca de Marte. Em ambos os casos, apenas ficamos mais ignorantes.

Vítor Guerreiro

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ISSN 1749-8457