Não é possível ensinar bem filosofia da arte sem saber bastante de arte, tal como não é possível ensinar filosofia da matemática sem saber matemática, por exemplo. Sucede que a filosofia da arte é matéria meramente opcional do programa de filosofia do secundário. Daí que alguns professores da disciplina, sentindo que lhes falta aquela base de conhecimento de arte e história da arte necessária para poderem ensinar adequadamente a subunidade de estética, optem por não a leccionar, visto não saberem onde encontrar tal base. É para ajudar a ultrapassar tão lamentável estado de coisas que se torna útil este livro de Florian Heine.
Claro que o erro está no programa oficial da disciplina — pela sua relevância, tanto no passado como contemporaneamente, a filosofia da arte deveria ser matéria obrigatória, e não meramente opcional, de qualquer currículo adequado de iniciação à filosofia. Claro que os professores de Filosofia também têm obrigação de superar as falhas da sua formação académica e científica — mas quantas acções decentes de formação em filosofia da arte são disponibilizadas aos professores do secundário? Quase nenhumas, certamente. E a consequência deplorável de tudo isto acaba por ser o desinteresse de muitos alunos da disciplina de filosofia do secundário pela arte.
O livro de Florian Heine não é um resumo de história da arte, nem sequer de história da pintura, como o próprio autor esclarece no prefácio:
“The First Time não é um livro acerca de história da arte no sentido convencional. Não trata do desenvolvimento dos estilos artísticos, nem da sua sucessão ao longo da História” (p. 6).
De seguida, o autor especifica o seu objectivo:
“Centraremos a nossa atenção naquelas obras de arte em que se tentou fazer algo pela primeira vez, algo que nunca existira até então nessa forma. É acerca de quadros que fundaram um novo género (por exemplo, naturezas mortas, paisagens) e daqueles que deram nome a um novo movimento — quer se tenha tratado da atribuição de um título (impressionismo) ou da expressão rancorosa de um crítico que depois se transformou num epíteto (cubismo). Nem sempre apresentaremos os melhores ou os mais famosos quadros de um determinado pintor, mas antes aqueles que representam o início de um novo movimento. Descreveremos como diferentes temas e problemas artísticos foram abordados, até que um pintor tenha experimentado algo de diferente e, ao criar uma destas “primeiras vezes”, tenha influenciado desenvolvimentos posteriores” (p. 6).
O objectivo é alcançado com relativo sucesso, diga-se desde já. Note-se que este não é de modo algum um livro estritamente académico; é antes uma obra de divulgação de arte para um público não profissional interessado em história de arte e muito em especial em pintura. O estilo de escrita é bastante claro, apresentando as tais diversas inovadoras “primeiras vezes” de modo francamente acessível ao leitor, que fica muito melhor informado acerca destes momentos-chave de inovação e subsequente viragem na prática da arte, designadamente da pintura.
É assim que ficamos a conhecer, entre outras coisas, Masaccio e a primeira aplicação da perspectiva na pintura (capítulo 9), Jan Van Eyck e o primeiro auto-retrato (capítulo 11), Jacopo Barbaro e a primeira natureza morta da era moderna (capítulo 14), Ticiano e o primeiro quadro em que Maria e o seu filho Jesus não estão no centro da imagem (capítulo 15), Altdorfer e a primeira paisagem pura (capítulo 16), Dürer e a primeira representação pictórica do próprio sonho de um artista (capítulo 17), Adam Elsheimer e a primeira representação da Via Láctea (capítulo 19), Monet e o primeiro quadro impressionista (capítulo 23), Kandinsky e a primeira aguarela abstracta (capítulo 24), Braque e o primeiro quadro cubista (capítulo 25), Georg Baselitz e o primeiro quadro figurativo “de pernas para o ar”, por assim dizer — no caso o fabuloso óleo de 1969, com a árvore cujo tronco nasce da terra, na parte superior do quadro, e cujos ramos se espalham pelo meio de um céu coberto de nuvens, na parte inferior, invertendo completamente a representação figurativa tradicional (capítulo 30).
Leia-se, por exemplo, o capítulo 2 acerca de Giotto. Este pintor, segundo Florian Heine,
“tornou este estilo de pintura [a pintura medieval] obsoleto. A base da arte de Giotto foi a observação rigorosa da natureza e das pessoas, enquanto os seus contemporâneos ainda estavam dominados pelas formas e fórmulas tradicionais da Idade Média” (p 13).
Por isso mesmo escreveu Vasari lapidarmente que Giotto era “a arte renascida”. A partir das pinturas da Igreja de San Francesco, em Assis, representando cenas da vida de S. Francisco de Assis (cuja atribuição a Giotto, embora não discutida por Heine, não é absolutamente garantida no estado actual da discussão da questão), Heine sintetiza algumas características que tornam o trabalho pictórico de Giotto absolutamente original:
“Giotto é responsável por diversas inovações na pintura — de facto, fez tudo diferente dos seus predecessores. Deu às suas figuras a sua própria solidez, obtendo volumes através do uso da luz e da sombra (…). As suas figuras são insufladas de vida; os seus gestos e a sua mímica mostram emoção e parecem reagir às acções de outras figuras. As figuras de Giotto já não se posicionam sobre um fundo dourado, mas sim num contexto realista. Liga os temas religiosos às percepções do quotidiano, tornando-os compreensíveis e vivos. Obtém a unidade da imagem distribuindo ritmicamente as suas várias partes pela sua superfície. São desenvolvimentos extraordinários para a época, que lhe conferiram uma reputação de grande reformador que permanece intacta até hoje” (pp. 13–14).
A análise do trabalho de Giotto leva Heine inevitavelmente aos frescos da Capella degli Scrovegni, em Pádua, e às diversas cenas da vida de Maria e Jesus que Giotto lá pintou, e cujo conjunto é, do que sobreviveu, justamente considerado a sua obra-prima. Como em todo o livro, aliás, são elegantemente reproduzidas algumas pinturas e quadros de que Heine fala, permitindo ao leitor visualizar as obras pictóricas e acompanhar a explicação do autor. A comparação com obras anteriores, de temática semelhante, a que Heine recorre ao longo de todo o livro, favorece a percepção das inovações do pintor a que se dedica. Como escreve Heine,
“aquilo que foi verdadeiramente revolucionário foi o facto de Giotto ter incorporado na sua pintura aquilo que efectivamente via, e não o que a tradição ditava” (p. 16).
Giotto abriu assim a porta a toda a pintura do Renascimento.
Mas Florian Heine não se limita à pintura — por exemplo, a invenção da primeira fotografia de Nicéphore Niepce (1827), ocupa o capítulo 22. E as consequências da invenção da fotografia na pintura são bem referidas por Heine:
“Desde o Renascimento que a representação precisa da natureza era uma das mais importantes tarefas da pintura, e isso agora poderia ser muito melhor conseguido com a fotografia. Isto concedeu novas liberdades à pintura, e forneceu-lhe a possibilidade de se concentrar noutros assuntos e meios de expressão. Os pintores tornaram-se mais preocupados com o seu próprio mundo emocional; e a cor, que durante bastante tempo não teria lugar na fotografia, tornou-se uma característica central da pintura. Talvez não seja coincidência que o impressionismo tenha nascido num período em que a fotografia estava a gozar de um dos seus primeiros picos de sucesso” (p. 123).
Seriam possíveis as “revoluções” na pintura ocorridas entre o final do século XIX e o início do século XX caso não tivesse sido descoberta a fotografia?
Se o sucesso de Heine na identificação e análise de várias “primeiras vezes” inovadoras é indesmentível, não é possível ignorar, porém, uma falha grave da obra. De facto, a mais radical revolução artística do século XX não merecia ficar reduzida, como fica no livro de Heine, a um simples parágrafo. Falo, obviamente, de Duchamp e do primeiro ready-made, que merecia por si só todo um capítulo do livro. Trata-se, afinal, de um alargamento sem precedentes da definição de obra de arte que Duchamp leva a cabo. Escreve Heine nesse único parágrafo:
“Tão cedo quanto 1913, o pintor Marcel Duchamp (1887–1968) pegou numa roda de bicicleta, colocou-a num banco, assinou-a e fê-la participar numa exposição: o primeiro ready-made, ou objecto banal promovido a arte. Duchamp, contudo, considerava que até a selecção de um objecto era um acto criativo e artístico. Até então, presumia-se que a arte devia dar expressão e forma a uma ideia com sentido universal. Duchamp rejeita tal conceito. Paradoxalmente, a questão do sentido é colocada através da ausência do sentido” (p. 156).
Comecemos por corrigir Heine: o referido ready-made de 1913, “Roue de bicyclette”, nunca foi enviado para qualquer exposição — isso aconteceu sim, por exemplo, com o mais famoso e polémico ready-made de 1917, “Fonte”, o urinol assinado “R. Mutt”, e rejeitado por não ter sido identificado como obra de arte pelos organizadores.
Mas o trabalho de Duchamp levanta efectivamente a questão do sentido da arte. Se tudo pode ser arte, como o ready-made mostra, então como definir especificamente o objecto artístico? A partir do ready-made de Duchamp torna-se muito mais difícil distinguir entre o que é e o que não é arte. O conceito de arte transforma-se um conceito aberto. O ready-made será então, afinal, um símbolo da “morte da arte”? Ou será, pelo contrário, a expressão máxima da identificação entre a arte e a vida, tão desejada por Nietzsche?
Certo é que, desde então e até agora, toda a discussão acerca do sentido da arte encontra em Duchamp e no ready-made um marco incontornável da contemporaneidade. E isso não fica explícito, como deveria ter ficado, neste livro de Florian Heine.