Em 1988, o escritor indo-britânico Salman Rushdie publicou no Reino Unido um romance com o título The Satanic Verses (Os Versos Satânicos). As autoridades muçulmanas consideraram o conteúdo do livro uma ofensa ao Islamismo e, em 1989, o líder espiritual iraniano, Aiatolá Khomeini, pronunciou uma fatwa contra o autor. Uma fatwa pode ser entendida como uma sentença de morte. Temos, então, a seguinte situação: um autor publica uma obra; certas pessoas a consideram ofensiva; alguém se julga no direito de legislar sobre a morte do autor e, por fim, este passa a viver sob proteção policial. O que, em essência, ocorreu? Uma possível resposta é simplesmente que Rushdie se expressou livremente no seu romance. E as ideias nele expressas acarretaram reações extremas. Isto coloca algumas questões: deve a liberdade de expressão ter limites? Devemos não tolerar ideias tidas como ofensivas? Há momentos em que a liberdade de expressão deve ser tolhida em razão de alguma prioridade? Alguns assuntos — como a religião — devem dispor de proteção especial mesmo que isso limite a liberdade de expressão? O que é, afinal, isso de liberdade de expressão? Além destas, várias outras perguntas podem ser feitas acerca do que se convencionou chamar liberdade de expressão.
A gravidade do fato narrado e a urgência das perguntas colocadas fazem deste livro uma importante introdução a um assunto que, penso, deveria ser caro a todos. Além disso, Nigel Warburton, autor do livro, coloca o leitor diante de uma prosa clara e agradável. Em menos de 120 páginas, Warburton nos conduz a uma abordagem geral — porém cuidadosa — de temas como a ofensa e a pornografia, entre outros. O resultado é um livro ao mesmo tempo importante e agradável de ler. Antes de prosseguir, no entanto, é importante deixar bastante claro que, embora o autor discuta questões legais, o seu interesse maior situa-se na análise dos principais argumentos relacionados com a liberdade de expressão. Trata-se, portanto, de uma obra de caráter filosófico. O meu objetivo nesta resenha é expor alguns temas centrais do livro e, quem sabe, conseguir estimular uma futura leitura.
Apesar de o livro ser sobre a liberdade de expressão, o título do livro pode ser traduzido literalmente em algo como “discurso livre”. Warburton explica que a escolha da palavra “speech” (discurso) se deve ao fato de representar o ato de comunicar num meio que nos é especialmente fundamental: a voz. Desnecessário dizer que se pode retirar a voz de alguém proibindo-a, por exemplo, de publicar as suas ideias. A voz, aqui, não se relaciona somente com o ato de falar, mas também com o ato de expressar qualquer coisa em qualquer meio. Para Warburton, a palavra “expressão” pode passar a ideia de que o que o é expressado é de alguma forma subjetivo. “Voz”, portanto, tem o benefício de captar o fenômeno da expressão de modo mais amplo, independentemente de o que se expressa ser uma foto ou uma crítica subjetiva ao governo. Assim, sempre que a palavra “expressão” for lida nesta resenha, deve ser entendida em seu sentido mais amplo. No sentido que Warburton tentou atingir usando a palavra “discurso” e, por conseguinte, “voz”.
Para abordar os tipos de liberdade, Warburton recorre à diferença introduzida pelo filósofo Isaiah Berlin entre a liberdade positiva e liberdade negativa. Somente o tipo negativo de liberdade é considerado no livro. Tendo a liberdade de expressão em mente, a liberdade negativa consiste em poder expressar-se sem impedimento, constrangimento ou ambas as coisas por parte de pessoas ou instituições. Assim, se um dissidente político é impedido de se expressar ou é preso por isso, há uma clara violação de sua liberdade negativa.
Sabendo que os governos, historicamente, muitas vezes se comportam como adversários da liberdade negativa de pessoas ou grupos de pessoas, como se relaciona a liberdade de expressão com a legitimidade de um governo que se pretenda democrático? Warburton cita, aqui, a perspetiva do filósofo Ronald Dworkin. Para Dworkin, não há como existir um governo legítimo sem liberdade de expressão. Para ele, nem as leis nem as políticas têm legitimidade a menos que tenham sido adotadas mediante um processo democrático, e o processo não é democrático se o governo impedir quem quer que seja de expressar as suas convicções.
O capítulo 2 centra-se nos argumentos de John Stuart Mill. Sobre a Liberdade, obra publicada por Mill em 1859 ainda é — e provavelmente continuara sendo — uma das principais defesas da livre circulação de ideias. E como é claro, a livre circulação de ideias só é possível com a liberdade de expressão. Vejamos, pois, alguns argumentos millianos.
Para Mill, ao preservar a liberdade individual e ao preservar a diversidade numa sociedade, a sociedade pode, por fim, maximizar a sua felicidade. O argumento é consequencialista porque entende a liberdade de expressão como algo positivo em virtude das suas consequências benéficas.
Imaginemos uma discussão sobre política num plenário. Imaginemos também que, no momento, existem dois debatedores discutindo se, afinal, a democracia deve ser representativa ou plebiscitária. O debatedor 1 acredita que a democracia deve ser representativa, ao passo que o debatedor 2 acredita que esta deva ser plebiscitária. O que aconteceria se, por exemplo, o debatedor 1 impedisse a manifestação do outro debatedor a certa altura do debate? Mill diria que o debatedor 1, agindo assim, pressupõe a sua própria infalibilidade. Ao silenciar os outros, pressupomos que as nossas ideias são perfeitas a ponto de não merecerem contestações. Um dos problemas dessa postura é que o estado psicológico de certeza não garante a verdade daquilo que defendemos. Se o debatedor 1 está absolutamente certo da veracidade de uma dada proposição, esta ainda pode ser falsa.
E se atingirmos a verdade sobre algum assunto, podemos silenciar opiniões contrárias? Não. Mill poderia responder que ao silenciar opiniões contrárias, violaríamos o processo de sujeitar um ponto de vista ou proposição ao escrutínio público, que é uma etapa necessária para a validação de nossos pontos de vista, mesmo que estejam corretos.
O argumento do dogma pode ser lido como uma forma de encorajar o debate público mesmo quando o que está em jogo é uma crença verdadeira. Mill acredita que ao manter tal crença sob o escrutínio público, esta não se torna uma verdade em que as pessoas acreditam por repetição ou irrefletidamente. Ou seja, não se torna um dogma morto. Pensemos no fato da Terra girar em torno do Sol. Chamemos P a essa crença. Sabemos que P é uma crença verdadeira. Se P não tivesse passado pelo escrutínio público desde sua descoberta, poderia ter-se transformado em uma verdade dogmática. Assim, as pessoas acreditariam em P não por consideração de argumentos em favor de P. Além disso, Mill recomenda-nos que façamos o papel de “advogado do diabo” quando não há oponentes para discutir as nossas crenças. Isso consiste em colocar-nos como oponentes das nossas próprias crenças para melhor as avaliar. Trata-se, claro, de um exercício difícil. As pessoas costumam prezar as suas ideias apenas por serem suas.
Mesmo que alguém expresse uma grande porção de falsidades, pode ocorrer que no meio daquilo o que é expresso haja algo de verdadeiro. Portanto, não deixar que alguém expresse as suas ideias, por mais absurdas que sejam, pode implicar o maleficio de sermos privados do elemento de verdade contido em tais ideias.
A amplitude da liberdade de expressão idealizada por Mill tem, no entanto, um limite. E tal limite consiste no que chamado princípio do dano. Não é qualquer tipo de dano, mas apenas o dano físico (os danos psicológicos ou econômicos não entram no princípio). Podemos entender que o limite de Mill para a liberdade de expressão é, em grande parte, o que entendemos hoje por incitação à violência. As consequências dessa proposta podem desagradar a muita gente, pois permitiria a um membro da Ku Klux Klan, por exemplo, publicar artigos inferiorizando os negros.
Voltemos ao caso citado no início do texto. A repercussão em torno do lançamento de Os Versos Satânicos transformou-se em um exemplo clássico das discussões acerca da ofensa. Outro bom exemplo foi dado em 2005, quando um periódico dinamarquês publicou caricaturas de Maomé, que é tido pelos muçulmanos como seu principal profeta. Os exemplos deixam escapar uma característica muito comum quando discutimos a questão da ofensa: em boa parte dos casos as discussões referem-se a circunstâncias em que a religião está envolvida. Se há uma forma efetivamente segura de enfurecer um grande número de pessoas de uma só vez é satirizando ou questionando uma religião. Muitos religiosos não costumam ficar contentes quando veem as suas crenças sagradas sendo satirizadas ou questionadas. Algumas pessoas, assim, defendem leis que protegem as religiões de blasfêmias (entendidas aqui como tudo o que atinge uma religião).
Como explica Warburton, “os atuais defensores da proibição de blasfêmia argumentam que pelo motivo da religião ser o foco do que é mais profundamente importante para um indivíduo, deveria ter proteção especial contra abusos verbais de qualquer tipo”. Um dos problemas dessa proposta reside no fato de que tudo aquilo que está na esfera do sagrado é de tal forma vasto que quase qualquer consideração sobre dada religião poderia ser tida como abuso. Uma simples afirmação de que há apenas um deus por parte de um cristão poderia insultar um hinduísta. No mais, por que não incluir também a proteção das crenças de humanistas e ateus? No cômputo final, provavelmente quase nada se poderia dizer. A amplitude de tal proteção torna-a absurda. E se tornarmos a proteção menos ampla? Nesse caso, torna-se arbitrária. Poder-se-ia, ainda, argumentar que uma medida de proteção desse tipo incidiria apenas em ofensas destemperadas ou extremamente agressivas. Alguns religiosos, porém, mesmo recebendo críticas moderadas podem responder com reações extremas. A ofensa parece ser aquilo que ofende alguém, simplesmente. Muitas vezes, as críticas moderadas ofendem.
Além disso, não há razão para que as crenças religiosas — mesmo as mais caras — não devam ser objeto de escrutínio e crítica. Do fato de uma crença ou conjunto de crenças ser caro a um grupo de pessoas não se segue que outras pessoas devam ser impedidas de manifestar as suas opiniões sobre tais crenças — não importando o fato de ser com críticas severas ou sátiras.
Como salienta Warburton, “a ideia de que as crenças religiosas, mas não as outras, devem receber proteção especial é bizarra: todos os tipos de crença devem estar abertos ao escrutínio, crítica, paródia e ao potencialmente ridículo, numa sociedade livre”.
O discurso de ódio caracteriza-se por ser um tipo de expressão extremamente ofensivo e feito de forma deliberada. Mais frequentemente, as ofensas concentram-se em questões raciais, de orientação sexual e religião. Warburton explica que a escolha da linguagem usada e o contexto de uso, no discurso de ódio, são organizados de forma a insultar ou humilhar determinado público. Assim, um neonazista que prega a eliminação de todos os judeus, usando expressões ou ideias extremamente agressivas (como defender um novo Auschwitz, por exemplo), poderia ser qualificado como um usuário de tal modalidade de expressão.
Pode-se defender ou não a liberdade de expressão nesse tipo de caso. Uma posição extremamente liberal ira defender a liberdade do neonazista do parágrafo anterior para propagar as suas ideias, por mais estúpidas e ofensivas que sejam. Desse ponto de vista, uma vez que se adota a política da liberdade de expressão, o discurso de ódio é uma consequência infeliz, mas que deve ser tolerada em nome do princípio geral da liberdade de expressão. Alguns problemas, no entanto, devem ser considerados: muitas vezes, um determinado discurso de ódio pode ser contagioso e ameaçar a integridade de um grupo ou pessoa. Não é, como se vê, um problema fácil.
Pode-se argumentar que a melhor forma de combater o discurso de ódio é com o uso de contra-argumentos. Assim, o neonazista teria as suas posições obviamente ridículas refutadas num debate público. Lembrando novamente John Stuart Mill, o limite poderia ser traçado quando há uma clara ameaça a determinada audiência Além disso, proibir formas extremas de expressão pode tornar mais fácil impor outras proibições. A liberdade de expressão, portanto, deve ser alargada tanto a um fanático quanto a um acadêmico sensato. Em suma, deve ser concedida a todos.
Tentei apresentar alguns dos principais assuntos presentes no livro de Warburton. Evidentemente, alguns temas — como a pornografia — ficaram de fora em favor de não me estender demais. Resta, porém, um ponto fundamental: onde devemos traçar os limites — se é que devemos — à liberdade de expressão? Já vimos a posição milliana de que o limite deve ser traçado quando há uma clara ameaça à integridade física de alguém ou de algum grupo.
Warburton, no entanto, apresenta um exemplo que nos faz pensar. A imagem erotizada de uma criança numa imagem artística pode estimular a imaginação, e até mesmo a ação, de pedófilos O risco de uma imagem desse tipo acarretar consequências desastrosas seria, então, alto demais para dar à suposta imagem o benefício da dúvida. Dessa forma, a proteção das crianças parece, aqui, estar acima da liberdade de se expressar — assumindo que uma imagem é também uma forma de expressão. Será essa forma de hierarquização, mesmo ocorrendo em casos isolados, correta? Se for, que critérios devemos usar? Consequências possíveis — por mais desastrosas — devem sobrepor-se à livre expressão em alguns casos?
A liberdade de expressão tem inestimável valor e todas as sociedades que se pretendam livres devem cuidar dela como uma conquista que jamais se esgota. Porém, é também importante defender a liberdade de expressão racionalmente, e não como um dogma morto. Refletir sobre assuntos como a ameaça à integridade de pessoas e a proteção das crianças nos fazem ver que outros valores também devem ser considerados. A problematização e discussão minuciosa de um assunto tão vasto e difícil quanto a liberdade de expressão é uma forma segura de mantê-la saudável. E o confronto com outros assuntos pode ser entendido como um bom modo de harmonizar boa parte das questões que são caras a uma sociedade livre e, claro, civilizada.
“Eu desprezo o que você diz, mas irei defender até à morte seu direito de dizê-lo”. Esta frase, atribuída a Voltaire, é, digamos, a citação clássica quando se defende a liberdade de expressão. E é com ela que Warburton inicia o livro, mostrando, no decorrer da leitura, que essa simples frase traz consigo uma importante e fascinante discussão em que os problemas são difíceis e as soluções nem sempre fáceis. Mas é só com a liberdade de expressão que poderemos discutir sem medo até mesmo a própria liberdade de expressão. Só isso é, penso, um bom argumento em favor da manutenção desse bem conquistado não sem dificuldade.
Aluízio Couto