No que se baseia a moral? Os bons juízos morais baseiam-se na razão ou, pelo contrário, em última análise resultam de um certo tipo de emoção? O problema de saber se a ética se baseia na razão ou na emoção foi intensamente debatido no século XVIII, permanecendo bem vivo ainda hoje. Este capítulo é uma introdução a este debate. Vamos aqui apresentar as perspectivas de David Hume e Immanuel Kant. Enquanto Hume defende que na ética a razão desempenha apenas um papel secundário, Kant entende que agir eticamente é o mesmo que agir de uma forma puramente racional. Veremos como Kant tentou desenvolver uma ética deontológica baseada na razão. Hume e Kant apresentaram as suas teorias em duas obras muito influentes — o Tratado sobre a Natureza Humana (TNH) e a Fundamentação da Metafísica dos Costumes (FMC).
A ideia de que existe em nós uma espécie de combate entre a emoção e a razão está presente tanto ao nível do senso comum como na obra de muitos filósofos. De acordo com esta ideia, a razão impele-nos a agir de uma certa maneira, mas encontra a oposição das nossas emoções ou paixões, que muitas vezes nos impelem a agir de outra maneira. Quem pensa assim costuma acrescentar que, como criaturas racionais, devemos fazer a razão subjugar ou pelo menos controlar as nossas emoções. Segundo esta perspectiva, a razão rivaliza com as emoções para tomar conta da nossa vontade. Pressupõe-se assim que, embora muitas das nossas acções resultem de emoções, a razão por si também pode levar-nos a agir.
David Hume defende que este pressuposto é falso. Entende que por si a razão não pode levar-nos a agir, isto é, não pode indicar-nos quaisquer objectivos ou fins — pode apenas indicar-nos os meios mais apropriados para atingir os nossos fins. Hume pensa assim que, a nível prático, a razão é meramente instrumental — é apenas uma espécie de ferramenta que nos ajuda a alcançar aquilo que queremos, sem nunca fazer-nos por si mesma querer algo nem nos dizer aquilo que devemos querer. Declara Hume: “A razão é, e deve ser apenas, a escrava das paixões, e nunca poderá aspirar a qualquer outro cargo que não o de servi-las e obedecer-lhes” (TNH, p. 266).
Segundo Hume, a razão não nos impõe quaisquer fins — nunca nos diz “Faz x!”. As nossas acções resultam de certos desejos que são imunes à avaliação racional. Tudo o que a razão nos pode dizer é algo como “Dado que queres x, faz y!” ou “Se quiseres x, faz y!”. Se queres ser médico, tira uma licenciatura em Medicina, e se queres tirar uma licenciatura em medicina, esforça-te para ter boas notas — é este tipo de coisas que a razão nos permite descobrir, influenciando assim as nossas acções. Deste modo, podemos dizer que alguém age irracionalmente quando não procede de maneira apropriada para obter aquilo que deseja — se queres ser médico, mas não te esforças por ter boas notas, estás a ser irracional. No entanto, quando uma pessoa usa os melhores meios para atingir os seus fins, não podemos acusá-la de irracionalidade sejam quais for os seus fins. Hume exprimiu esta ideia controversa de uma forma muito contundente:
Não é contrário à razão preferir a destruição do mundo inteiro a esfolar o meu dedo. Não é contrário à razão escolher a minha ruína total para impedir o menor incómodo a um índio ou a uma pessoa que me é totalmente desconhecida. Tão-pouco é contrário à razão preferir até aquilo que reconheço ser um bem menor a um bem maior, e ter uma afeição mais ardente pelo primeiro que pelo segundo. Um bem trivial pode, em certas circunstâncias, produzir um desejo superior àquele que surge do prazer maior e mais valioso. (David Hume, TNH, 1739, p. 267)
Imagina uma pessoa que deseja acima de tudo exterminar todos os que não pertencem à sua raça. E imagina que, ao longo da sua vida, essa pessoa faz tudo o que está ao seu alcance para que o seu desejo se realize: funda uma organização racista, atrai jovens para a sua causa, distribui propaganda e persegue todos os que considera inferiores. Será que essa pessoa é irracional? Numa perspectiva humiana, não — se ela souber usar a razão para escolher os melhores meios para atingir o seu fim, não podemos considerá-la irracional. Mas podemos, sem dúvida, considerá-la imoral. Não há nisto qualquer contradição, pois para Hume a ética não se baseia na razão. Assim, uma pessoa pode agir de uma forma perfeitamente racional, mas profundamente imoral.
Vejamos agora, muito resumidamente, por que motivo Hume defende que a ética não se baseia na razão. O seu argumento é o seguinte:
[…] como a moral influencia as acções e emoções, segue-se que esta não pode derivar da razão, pois a razão por si, como já provámos, nunca pode exercer tal influência. A moral excita paixões e produz ou impede acções. A razão por si é totalmente impotente neste aspecto. Logo, as regras da moral não são conclusões da nossa razão. (David Hume, TNH, 1740, p. 294)
Examinemos este argumento. A ideia de Hume é que a moral é intrinsecamente motivadora — os juízos morais por si influenciam decisivamente a nossa conduta. Quem julga, por exemplo, que quebrar promessas é errado, está motivado para manter as promessas que faz. Mas a razão, como vimos, por si não nos motiva para fazer nada, pois é apenas um instrumento ao serviço das paixões. Logo, os juízos morais não resultam da razão.
Não é a razão que nos faz desejar manter promessas, pois o raciocínio, seja ele dedutivo ou indutivo, apenas nos permite formar crenças ou convicções. Por isso, reitera Hume, “é impossível que a distinção entre o bem e o mal morais seja feita pela razão, pois esta distinção tem uma influência nas nossas acções que a razão por si não pode ter” (TNH, pp. 297–8).
Se a ética não se baseia na razão, de que resultam os nossos juízos morais? Para compreendermos a resposta de Hume, imaginemos uma situação que envolve alguém que age, alguém que é afectado pela acção e alguém que observa a situação — um agente, um receptor e um espectador. João, o agente, motivado pela sua benevolência, acolhe na sua casa Paulo, que foi despejado por não ter dinheiro para pagar a renda. Paulo, o receptor, fica obviamente satisfeito por não ter que passar a viver na rua. Pedro, o espectador, observa a situação e, por simpatia, sente-se também satisfeito. Isso leva-o a aprovar a benevolência de João, considerando-a uma virtude — na verdade, a sua aprovação moral resume-se ao seu sentimento aprazível.
Os nossos juízos morais exprimem a nossa aprovação (ou reprovação) de certos tipos de conduta ou de certas qualidades do carácter. A ideia de Hume é que tal aprovação é inteiramente emotiva — consiste, mais precisamente, num sentimento de prazer desencadeado pela simpatia. É preciso explicar esta última noção, pois a palavra “simpatia” tem aqui um significado diferente do usual: a simpatia é a capacidade de entrarmos nos sentimentos dos outros e partilharmos o seu prazer ou sofrimento. Quando vemos alguém alegre, muitas vezes isso faz-nos sentir prazer, e quando vemos alguém em grande sofrimento, é provável que isso nos faça também sofrer, sobretudo se quem estiver a sofrer nos for muito próximo — a simpatia consiste nesta espécie de transmissão de emoções.
Imagina, para dar outro exemplo, que observas um grupo de homens embriagados, os agentes, a espancar um cão inofensivo, o receptor. Por simpatia, o sofrimento do cão faz-te sofrer. Tu, o espectador moral, reprovas a conduta dos homens, e a tua reprovação não é mais que o sentimento desagradável que tens ao observar a situação. Ela não se baseia em nenhum princípio estabelecido racionalmente.
Terá Hume razão? Será verdade que, em última análise, os nossos juízos morais não são racionais? Entre os que tentaram mostrar que Hume está enganado destaca-se Kant, cuja teoria moral iremos agora examinar.
Uma das ideias fundamentais de Kant é que, na avaliação moral das acções, interessa sobretudo determinar o motivo do agente. Isto não nos deve surpreender, pois no capítulo anterior já vimos que Kant rejeita o consequencialismo. Por vezes fazemos o que está certo, mas pelos motivos errados, o que faz a nossa acção não ter qualquer valor moral. Um comerciante que não engana os seus clientes, por exemplo, procede correctamente, mas terá a sua conduta valor moral? Isso, pensa Kant, depende daquilo que o leva a proceder assim. Se o comerciante não engana os seus clientes porque receia perdê-los, a sua conduta não tem valor moral, pois resulta de um desejo ou inclinação egoísta. Mas se, em vez disso, o comerciante procede assim apenas porque julga ter o dever de ser honesto, então a sua conduta tem valor moral.
Kant pensa que só têm valor moral as acções realizadas por dever. Estas distinguem-se das acções que estão em mera conformidade com o dever, ou seja, das acções que, embora estejam de acordo com aquilo que devemos fazer, não são motivadas pelo sentido do dever. Kant inclui aqui não só as acções que são manifestamente motivadas pelo interesse pessoal, mas também todas as acções que resultam de sentimentos louváveis, como a compaixão. Vejamos, por exemplo, o que diz Kant sobre os que ajudam os outros por compaixão:
Ser caridoso quando se pode sê-lo é um dever, e há além disso muitas almas de disposição tão compassiva que, mesmo sem nenhum outro motivo de vaidade ou interesse, acham íntimo prazer em espalhar alegria à sua volta e podem-se alegrar com o contentamento dos outros, enquanto este é obra sua. Eu afirmo, porém, que neste caso uma tal acção, por conforme ao dever, por amável que ela seja, não tem contudo nenhum verdadeiro valor moral, mas vai emparelhar com outras inclinações, como o amor das honras, que, quando por feliz acaso coincidem com aquilo que é efectivamente de interesse geral e conforme ao dever, são consequentemente honrosas e merecem louvor e estímulo, mas não estima; pois à sua máxima falta o conteúdo moral que manda que tais acções se pratiquem, não por inclinação, mas por dever. (Immanuel Kant, FMC, 1785, p. 28)
Depois de afirmar, nesta passagem, que quem ajuda os outros por compaixão não está a realizar um acto com genuíno valor moral, Kant contrasta os que procedem assim com alguém que, embora seja “por temperamento frio e indiferente às dores dos outros”, também ajuda quem precisa, mas só porque sabe que tem o dever de ajudar. Para Kant, só quem é exclusivamente motivado por tal dever quando ajuda os outros faz algo com valor moral.
Um conceito importante na ética kantiana é o de máxima. As pessoas agem segundo máximas — um comerciante que não engana os clientes pode agir segundo a máxima “Devemos ser honestos”, mas também pode agir segundo a máxima “Não enganes os outros se não queres perder clientes”. As máximas são assim os princípios que nos indicam o motivo dos agentes. Podemos então reformular a tese de Kant dizendo que o valor moral de uma acção depende da máxima que lhe subjaz. Deste modo, só fazemos algo com valor moral quando agimos segundo máximas ditadas pelo nosso sentido do dever, como “Mantém as tuas promessas” ou “Ajuda quem precisa”.
Mas no que se baseia o nosso sentido do dever? Na razão, pensa Kant. Assim, quando agimos por dever estamos a agir racionalmente. Quando agimos por outros motivos — por inclinação, como diz Kant — estamos a agir em função de desejos não racionais, desejos esses que, como vimos, tiram todo o valor moral às nossas acções.
O contraste com Hume não podia ser maior: Kant pensa não só que a razão por si mesma é motivadora, mas também que só têm valor moral as acções motivadas pela razão. A razão não é meramente instrumental — ela impõe certos deveres que determinam o que está certo ou errado, independentemente dos desejos que as pessoas têm. Ela diz-nos, por exemplo, “Mantém as tuas promessas!”. Um imperativo como este, por oposição a algo como “Se queres ter prestígio social, mantém as tuas promessas!”, não depende de quaisquer desejos específicos — aplica-se universalmente a todos os seres racionais.
Kant pensa que, como agentes morais, temos que respeitar certos deveres. E pensa, além disso, que tais deveres não resultam dos nossos desejos, pois são-nos impostos incondicionalmente pela razão. Mas por que julga Kant que os nossos deveres morais resultam da razão? A ideia de Kant é que toda a moral se baseia num princípio racional fundamental: racional porque todos o reconhecemos como verdadeiro usando a razão; fundamental porque é dele que derivam todos os nossos deveres morais específicos, como o de não quebrar promessas ou de ajudar os outros.
Esse princípio é o imperativo categórico — ele é categórico, por oposição a hipotético, porque se nos apresenta como uma obrigação absoluta ou incondicional. Já examinámos uma das fórmulas deste princípio no capítulo anterior — a fórmula do fim em si — a propósito do debate entre utilitaristas e deontologistas. Consideremos agora a fórmula aparentemente mais básica do imperativo categórico, conhecida por fórmula da lei universal:
Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.
O que quer isto dizer? A ideia é que só devemos agir segundo máximas que possamos querer universalizar. Se não podemos querer que todos ajam segundo uma certa máxima, então ela não é universalizável e, por isso, devemos rejeitá-la. O imperativo categórico é, sem dúvida, um princípio muito abstracto. Para o clarificar, vejamos como funciona considerando dois exemplos apresentados por Kant.
Imagina uma pessoa que está com problemas financeiros e que decide pedir dinheiro emprestado. Ela sabe que não vai poder pagar, mas sabe também que se não prometer pagar num certo prazo não lhe emprestarão o dinheiro. Ainda assim, faz a promessa e recebe o dinheiro. Ela agiu segundo a máxima “Faz promessas com a intenção de as não cumprires”. Será esta máxima universalizável? É óbvio que não. Se todos fizessem promessas com a intenção de as não cumprirem a própria prática de fazer promessas desapareceria, pois esta baseia-se na confiança entre as pessoas. É pura e simplesmente impossível todos fazerem promessas com a intenção de as não cumprirem. Por isso, não podemos querer que todos ajam segundo essa máxima — ela deve ser rejeitada.
Este exemplo mostra claramente que o imperativo categórico serve para testar as nossas máximas. Uma máxima como “Faz promessas com a intenção de as não cumprires” não passa o teste, pois não podemos querer que ela se torne lei universal. E, pensa Kant, sendo assim devemos manter sempre as promessas que fazemos.
Imagina agora uma pessoa rica que, embora possa fazer muito pelos outros sem se sacrificar muito, só se preocupa com o seu próprio bem-estar. Em toda a sua vida segue a máxima “Recusa-te sempre a ajudar os outros”. Será esta máxima universalizável? Aqui a situação é um pouco diferente da anterior, pois Kant admite que seria possível todos agirem segundo essa máxima. Ainda assim, a verdade é que todos nós ao longo de vida precisamos que os outros nos ajudem, nem que seja ocasionalmente. Por isso, não queremos viver num mundo em que ninguém nos ajude quando precisamos. Logo, não podemos querer que todos recusem sempre ajudar os outros. A máxima “Recusa-te sempre a ajudar os outros” não é então universalizável, e isto significa que é errado viver sem nos preocuparmos minimamente com o bem-estar dos outros — temos o dever de ajudar.
Depois de discutir estes exemplos, entre outros, Kant conclui:
Temos que poder querer que uma máxima da nossa acção se transforme em lei universal: é este o cânone pelo qual a julgamos moralmente em geral. Algumas acções são de tal ordem que a sua máxima nem sequer se pode pensar sem contradição como lei universal da natureza, muito menos ainda se pode querer que deva ser tal. Em outras não se encontra, na verdade, essa impossibilidade interna, mas é contudo impossível querer que a sua máxima se erga à universalidade de uma lei da natureza, pois uma tal vontade se contradiria a si mesma. (Immanuel Kant, FMC, 1785, p. 62)
Como vimos, a máxima “Faz promessas com a intenção de as não cumprires” nem sequer se pode pensar como lei universal. E a máxima “Recusa-te sempre a ajudar os outros” inclui-se na segunda categoria: embora possamos pensá-la como lei universal, não podemos querer coerentemente que ela se torne lei universal.
Qual é então o lugar da razão na ética? Como vimos, Hume defende que não é a razão que nos leva a agir moralmente, pois esta é meramente instrumental. Kant tenta mostrar que a perspectiva humiana é falsa. Afirma que a razão nos impõe a obrigação de agir apenas segundo máximas que possamos querer universalizar. Kant sustenta que esta obrigação dá origem a deveres específicos, como os de manter sempre as promessas que fazemos, de ajudar os outros, bem como os de desenvolver os nossos talentos e ou de conservar a nossa própria vida. E, como vimos, Kant pensa também que só têm valor moral as acções exclusivamente motivadas por tais deveres racionais.
Terá Kant sido bem-sucedido na sua tentativa de mostrar que Hume está profundamente enganado quanto ao papel da razão na ética? A verdade é que a teoria de Kant tem sido muito criticada, mas ainda assim há quem pense que a ética se baseia na razão. O debate continua em aberto e envolve questões muito complicadas que não podemos considerar aqui. Mas, para concluir este capítulo, vale a pena explorar um pouco esse debate. O diálogo que se segue, no qual os interlocutores discutem o imperativo categórico, fornece-te pistas importantes que certamente te permitirão pensar melhor sobre este assunto.
— Admito que estou profundamente desapontado com a teoria de Kant.
— Porquê? A mim parece-me uma excelente teoria. Julgo que o imperativo categórico é realmente o princípio ético fundamental — é um princípio, aliás, que qualquer agente racional tem de aceitar.
— Ora aí está uma coisa que não percebo. Porque é que o imperativo categórico é um princípio racional? Porque é que uma pessoa racional não pode rejeitá-lo?
— Hmmm… Uma pessoa racional tem de ser coerente, não é?
— Sim.
— Então imagina alguém que diz isto: “Eu posso quebrar as promessas que faço, mas não quero (aliás, não posso querer!) que todos quebrem as promessas que fazem”. Julgo que quem pensa assim, rejeitando o imperativo categórico, está a ser incoerente, não te parece? Julgo que o imperativo categórico é uma simples exigência de coerência que nos impede, entre outras coisas, de abrir excepções convenientes para nós próprios. Portanto, qualquer pessoa racional tem de aceitá-lo.
— Talvez tenhas razão… Talvez seja verdade que, como agentes racionais, temos que agir apenas segundo máximas que possamos querer universalizar. No entanto, este princípio parece-me vazio — ele não tem as implicações práticas que Kant indicou. Ele não implica, por exemplo, que devemos manter sempre as promessas que fazemos.
— Explica lá o teu argumento…
— Eu até estou disposto a admitir, concordando com Kant, que a máxima “Faz promessas com a intenção de as não cumprires” não é universalizável, pois se todos agissem segundo essa máxima a prática de fazer promessas desapareceria. Mas agora imagina que eu adopto uma máxima mais específica, como “Faz promessas com a intenção de as não cumprires quando isso é necessário para salvar a vida de uma pessoa”. Esta máxima é claramente universalizável, pois mesmo que todos a adoptassem isso não abalaria a prática de fazer promessas ao ponto de a destruir. Posso perfeitamente querer que as pessoas quebrem promessas para salvar vidas! E, sendo assim, o imperativo categórico não me proíbe sempre de quebrar promessas.
— És capaz de ter razão… Talvez o imperativo categórico, contrariamente ao que Kant pensou, não leve a deveres absolutos. Mas, mesmo assim, estás enganado quando dizes que ele é vazio. Este princípio tem consequências práticas importantes, pois, como acabaste de admitir, proíbe-nos de andar sempre a fazer promessas sem a intenção de as cumprir, de as quebrar só porque nos dá jeito. E é claro que poderíamos usar muitos outros exemplos.
— Tudo bem, admito isso. Mas, seja como for, é óbvio que a ética não se pode basear apenas no imperativo categórico, pois há muitas máximas claramente imorais, como “Mata os teus avós”, que são universalizáveis. Afinal, porque é que eu não posso querer que esta máxima se torne uma lei universal?
— Eu acho que essa máxima não é universalizável. Se fosses avô, gostarias que os teus netos te matassem?
— É claro que não! Mas a questão não é essa. Eu, dados os desejos que tenho, não quero que essa máxima se universalize. Mas outra pessoa qualquer, com desejos diferentes, poderia querer que essa máxima fosse uma lei universal. Imagina um homem que odeia tanto as pessoas mais velhas que até está disposto a ser morto quando chegar a velho. Se perguntares a esse homem “Queres que a máxima “Mata os teus avós” se torne lei universal?”, ele responderá que sim.
— Só um homem extraordinariamente insensível daria essa resposta!
— Ele seria insensível, sem dúvida, mas dados os seus desejos não poderias acusá-lo de ser incoerente ou irracional. O problema desse homem não seria falta de racionalidade, mas talvez lhe faltasse aquilo a que Hume chamou simpatia. Provavelmente, não teria grande capacidade de sentir o que os outros sentem, nem de se imaginar no lugar dos outros e de se identificar com os seus interesses. E, se isto é verdade, então mesmo que a razão tenha um papel importante na ética, esta não pode passar ao lado das nossas emoções.