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Crítica
7 de Julho de 2015   Epistemologia

Dados dos sentidos

G. E. Moore
Tradução de Álvaro Nunes

Seguro neste envelope. Olho para ele e espero que todos olheis para ele. E agora baixo-o outra vez. Ora, o que aconteceu? Diríamos certamente (se olharam para ele) que vimos todos o envelope, que vimos todos o mesmo envelope. Eu vi-o e vocês também o viram. Vimos todos o mesmo objecto. E por aquilo que vimos entendemos um objecto que, em qualquer dos momentos em que estávamos a olhar para ele, ocupava apenas um dos muitos lugares que constituem a totalidade do espaço [...]

Mas então que aconteceu a cada um de nós quando vimos esse envelope? Começarei por descrever parte do que me aconteceu. Vi uma mancha particular de uma cor esbranquiçada, que tem um certo tamanho e uma certa forma, uma forma com ângulos ou cantos particularmente marcados e delimitada por linhas bastante direitas. Estas coisas: vi realmente esta mancha de uma cor esbranquiçada e o seu tamanho e forma. E proponho chamar a estas coisas, a cor, o tamanho e a forma, dados dos sentidos, coisas dadas ou apresentadas pelos sentidos — dadas, neste caso, pelo meu sentido da vista. Houve muitos filósofos que chamaram a estas coisas a que chamei dados dos sentidos, sensações. Eles diriam, por exemplo, que aquela mancha particular de cor era uma sensação. Mas parece-me que o termo “sensação” é propenso a enganos. Deveremos certamente dizer que quando vi essa cor tive uma sensação. Mas quando digo que tive uma sensação, o que quero dizer é, julgo eu, que tive a experiência que consistiu em ver a cor. Isto é dizer que o que entendemos por uma “sensação” nesta frase é o acto de ver a cor, não a cor que vi. Esta cor não parece que seja o que pretendo dizer que tive quando digo que tive uma sensação de cor. Não é natural dizer que tive a cor, que tive esse cinzento esbranquiçado particular ou que tive a mancha que era dessa cor. O que tive de certeza foi a experiência que consistiu em ver a cor e a mancha. E quando, portanto, falamos de ter sensações, penso que o que entendemos por “sensações” é as experiências que consistem em apreender determinados dados dos sentidos, e não os próprios dados dos sentidos. Penso então que o termo “sensação” é propenso a enganos, porque pode ser usado em dois sentidos diferentes, que é muito importante distinguir. Pode ser usado quer para a cor que vi quer para a experiência que consistiu em ver a cor [...]

Posso expressar pelo menos parte do me aconteceu dizendo que vi um certo dado dos sentidos: vi uma mancha de cor esbranquiçada com uma forma e tamanho particulares. E não tenho dúvidas de que isto é parte, pelo menos, do que aconteceu a todos vós. Vós também vistes um certo dado dos sentidos; e também espero que os dados dos sentidos que vistes sejam mais ou menos semelhantes aos que eu vi. Vós também vistes uma mancha de cor que pode ser descrita como esbranquiçada, de um tamanho não muito diferente do tamanho da mancha que eu vi e de uma forma semelhante pelo menos nisto: que tinha cantos vincados e era delimitada por linhas bastante direitas. Mas aquilo para que quero chamar a atenção agora é o seguinte: embora tenhamos (como nós diríamos) visto o mesmo envelope, o mais provável é que não tenhamos visto exactamente o mesmo dado dos sentidos. O mais provável é que cada um de nós tenha visto, para começar por aí, um matiz de cor ligeiramente diferente. Todas estas cores podem ter sido esbranquiçadas, mas provavelmente cada uma era no mínimo ligeiramente diferente de todas as outras, consoante o modo como a luz incidiu no papel relativamente às diferentes posições em que estais sentados e, uma vez mais, consoante as diferenças da vossa capacidade de visão ou da vossa distância do papel. E do mesmo modo a respeito do tamanho da mancha de cor que vimos: diferenças na capacidade dos vossos olhos e na distância do envelope com toda a probabilidade originaram ligeiras diferenças no tamanho da mancha de cor que vistes. E o mesmo outra vez a respeito da forma. Os que estão deste lado da sala viram uma figura romboidal, enquanto os que estão diante de mim viram uma figura quase rectangular [...]

Ora tudo isto parece-me tornar evidente que, se nós vimos todos efectivamente o mesmo envelope, o envelope que vimos não era idêntico aos dados dos sentidos que vimos: o envelope não pode ser exactamente a mesma coisa que cada um dos conjuntos de dados dos sentidos que cada um de nós viu; porque com toda a probabilidade cada um deles era ligeiramente diferente dos outros e, portanto, não podem ser todos exactamente a mesma coisa que o envelope.

G. E. Moore
Some Main Problems of Philosophy (Londres: Allen & Unwire, 1952), pp. 30–33.
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ISSN 1749-8457