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Crítica
9 de Março de 2008   Metafísica

Gibbard e a identidade contingente

Sagid Salles Ferreira

Introdução

Um pedaço de barro solta-se de um grande barranco, formando por coincidência, e ao mesmo tempo, uma estátua de Machado de Assis. Três dias depois a estátua é completamente destruída; ao ser atingida por um machado ela se parte em vários pedaços. Chega ao fim, então, a existência tanto da estátua como do pedaço de barro da qual ela é feita. Notemos que ambos vieram a existir ao mesmo tempo e também ao mesmo tempo deixaram de existir. No período de tempo que existiram tudo o que aconteceu a uma aconteceu a outra.

Allan Gibbard acredita que com um exemplo deste tipo pode nos dar um caso de identidade contingente. No artigo “Contingent Identity” ele tenta mostrar a plausibilidade de um caso onde uma estátua s é igual ao pedaço de barro c e, no entanto, é possível que ambos existam e s seja diferente de c. Com isto ele pretende atacar algumas noções de Kripke sobre coisas concretas e nomes próprios.

Em “Identity and Necessity” Kripke argumenta que nomes próprios são designadores rígidos. Um designador rígido denota o mesmo particular em todos os mundos possíveis onde esse particular existe. Deste modo “Machado de Assis” denota Machado de Assis em todos os mundos onde ele exista. Podemos pensar em uma situação onde Machado de Assis não escreveu O Alienista; neste caso, estamos nos referindo ao mesmo particular (Machado de Assis) que nesta situação não escreveu a tal obra. Conseqüentemente, se temos casos de identidade envolvendo nomes próprios, como por exemplo, “Véspero é Fósforo”, e se estes nomes realmente denotam o mesmo particular no mundo atual, então eles denotarão o mesmo particular em todos os mundos possíveis.1 Ora, sabendo que uma verdade é necessária se ela não poderia ter sido falsa em nenhuma situação contrafactual, somos levados a concluir que toda identidade envolvendo nomes próprios é necessária.

Entretanto, se o exemplo de Gibbard estiver correto, se é possível que no mundo atual uma estátua seja idêntica ao pedaço de barro do qual ela é feita, e em uma situação contrafactual em que ambas existam elas sejam diferentes, então teríamos um caso de identidade contingente envolvendo nomes próprios. Se dermos um nome ao pedaço de barro e outro à estátua, então os dois denotam o mesmo objeto no mundo atual, mas não em todos os mundos possíveis. Deste exemplo surgem algumas conseqüências que serão discutidas neste texto. Uma delas é que a noção de nomes próprios que Kripke nos oferece precisa ser reformulada, pois Kripke não oferece uma noção correta. Se minha interpretação estiver correta, a teoria dos nomes próprios apresentada por Gibbard em seu artigo depende da veridicidade de seu exemplo, ou da possibilidade de identidade contingente.

Não tentarei defender nem a possibilidade nem a impossibilidade da identidade contingente. No entanto, tentarei mostrar que o exemplo dado por Gibbard não representa um caso de identidade contingente — não representa nem um caso de identidade. Não discordo que se alguém fosse capaz de apresentar um exemplo onde de fato ocorra identidade contingente, sua teoria seria uma boa alternativa. Mas acredito que na medida em que seu exemplo não funcione e não temos outro, não temos motivo para aceitar o restante de sua tese. Isto, é claro, se a teoria sugerida por ele em seguida realmente toma como certo a verdade do exemplo de identidade contingente. Começarei expondo o caso de identidade contingente dado por Gibbard (parte I), em seguida farei uma breve exposição de sua teoria dos nomes próprios (parte II), onde sustentarei que ela só deve ser aceita se o exemplo de identidade contingente funcionar. Por fim, discutirei o exemplo dado por ele concluindo que não representa um caso de identidade (parte III).

I

Na parte I de seu texto Gibbard coloca a seguinte pergunta:

In what sort of case might a statue s be identical with the piece of clay c, of which it is made? (p. 188)

Gibbard começa por explicar em que sentido toma a identidade. A identidade é tomada em um sentido estrito, qual seja, para que duas coisas sejam idênticas elas têm de ter todas as propriedades em comum, durante todo tempo da sua existência. Portanto, as duas coisas devem surgir ao mesmo tempo e também deixar de existir exatamente ao mesmo tempo. Assim, Gibbard terá de oferecer um critério de persistência (“persistence criteria”) para estátuas e pedaços de barro. Pois teríamos de ser capazes de determinar com exatidão quando uma estátua ou um pedaço de barro começam e deixam de existir. Isto é necessário porque se não tivermos uma idéia exata do início e do fim de sua existência não podemos dizer se são ou não idênticos, no sentido requerido por Gibbard. Suponhamos que o pedaço de barro surgiu antes da estátua — antes de ser uma estatua foi, por algum tempo, meramente um pedaço de barro. Neste caso, não poderíamos afirmar a identidade entre ambos; o pedaço de barro teria uma propriedade que a estátua não teria: o seu período de duração seria maior. Deste modo, o próximo passo de Gibbard será oferecer o critério mencionado acima.

Em primeiro lugar, Gibbard afirma que por “pedaço de barro” não quer dizer a porção de barro do qual ele é feito. Esta porção poderia ser espalhada e ainda assim a identificaríamos como a mesma porção, enquanto o pedaço de barro, para continuar existindo, tem de ter suas partes fixadas umas nas outras. Um pedaço de barro começaria a existir ou por pequenas partículas que se fixam umas nas outras ou por uma grande parte que se quebra de outra. Não é difícil imaginar um exemplo onde o primeiro caso ocorra: nós mesmos podemos juntar várias partículas (com um objetivo qualquer) e formar um pedaço de barro (uma bola, por exemplo). O segundo caso pode ser exemplificado pelo que foi mencionado no primeiro parágrafo da introdução: uma parte de um barranco pode soltar-se, formando um novo pedaço de barro. Um pedaço de barro pode deixar de existir ou por se quebrar ou por se fixar a ele outros pedaços de barro que não fazem parte dele. Este aspecto precisa de algumas observações. Gibbard não quer dizer que o pedaço de barro seria destruído pela união de qualquer partícula à porção de barro da qual ela é feita, nem que seria destruído pela separação de qualquer partícula. Haveria certa tolerância para pequenas modificações ao longo do tempo. Isto quer dizer que a porção de barro da qual o pedaço de barro é feita poderia sofrer pequenas alterações ao longo do tempo e o pedaço de barro continuaria sendo mesmo. Entretanto, se o pedaço de barro fosse quebrado ao meio ou em pedaços, deixaria de existir. Igualmente, se fosse fixado a ele outra porção de barro considerável, deixaria de existir. Não se estipula qualquer padrão para as leves alterações que a porção de barro da qual o pedaço é feito pode sofrer, enquanto o pedaço de barro continua sendo o mesmo (o que não implica que este padrão não possa ser estipulado por alguém que o desejar). Até aqui falamos somente do critério de duração de um pedaço de barro; falta ainda o de uma estátua.

Por “estátua” Gibbard, não quer dizer a sua forma. Por “estátua” ele entende uma coisa particular concreta. Várias estátuas podem ter a mesma forma sem ser a mesma estátua, isto é, sendo objetos diferentes. Uma estátua de barro é um pedaço de barro que tem uma determinada forma; começa a existir quando o pedaço de barro existe e vem a ter aquela forma, e deixa de existir tão logo o pedaço de barro deixa de existir ou de ter aquela forma. Aqui, pequenas alterações também seriam permitidas. Uma estátua dura enquanto o pedaço de barro do qual ela é feita dura e sua forma muda somente levemente. Gibbard defende que o critério por si oferecido para estátuas e pedaços de barro não está longe do que nossa noção comum. O importante aqui é notar que do modo como a estátua e o pedaço de barro foram definidos, podem ser designados por nomes próprios, sem que isso colida com a lógica da nossa linguagem corrente. De toda forma não disputarei o critério oferecido por Gibbard até aqui; o que disputarei (na parte II deste texto) é que segundo os seus próprios critérios possamos considerar que o seu exemplo represente um caso de identidade contingente.

Com o critério de persistência oferecido por Gibbard podemos notar que uma estátua é frequentemente diferente do pedaço de barro do qual ela feita. Por exemplo, o caso em que o período de duração da estátua é menor do que o do pedaço de barro do qual ela é feita. O que faz o pedaço de barro ter pelo menos uma propriedade que a estátua não tem. Todavia, Gibbard tentará mostrar que em casos específicos uma estátua pode ser idêntica ao pedaço de barro do qual é feita. O exemplo começa da seguinte maneira:

Suppose, though, a clay statue starts to exist at the same time as the piece of clay of which it is made, and ceases to exist at the same time as the piece of clay ceases to exist. (p. 190)

Este é o exemplo dado na introdução. Gibbard cita um caso onde nós pegamos uma estátua (de Machado de Assis, por exemplo) e partimo-la ao meio. De seguida, colamos as duas partes, dando origem, ao mesmo tempo, à estátua e ao pedaço de barro do qual é feita. Um dia depois partimos a estátua com uma machadada, quebrando-a em vários pedaços; neste caso, a estátua e o pedaço de barro teriam a mesma duração. Durante as suas existências tiveram as mesmas propriedades, a mesma cor, tamanho, forma, etc. Tudo o que aconteceu a uma aconteceu, ao mesmo tempo, ao outro (incluindo o surgimento e a destruição). Portanto, a estátua e o pedaço de barro seriam, sobre estas circunstâncias, idênticos. Daí surgiria um caso de identidade contingente envolvendo nomes próprios. Se chamarmos “M” à estátua e “P” ao pedaço de barro do qual ela é feita (poderíamos dar-lhes qualquer outro nome) teríamos o seguinte:

M = P & ◊(M existe & P existe & M ≠ P).

Ou seja, embora M seja idêntico a P no mundo atual, há uma situação contrafactual na qual diferem. Em um mundo possível tanto M como P existem e ainda assim são diferentes. Não é difícil pensar em uma situação onde isto ocorra. Se ao invés de quebrar a estátua em pedaços a tivéssemos amassado até a transformar numa bola, a estátua seria destruída, mas o pedaço de barro continuaria a existir (apenas com uma forma diferente). Neste caso, o período de duração da estátua seria menor que a do pedaço de barro, e os dois não poderiam ser idênticos.

Se Gibbard está correto, então temos um caso onde M = P contingentemente. Duas maneiras gerais de refutá-lo seriam ou mostrar que a identidade entre M e P não é contingente, mas necessária, ou mostrar que não há identidade no exemplo dado por ele. Na parte III deste texto optarei pelo segundo caminho. Contudo, antes devo expor a teoria de nomes próprios apresentada por Gibbard.

II

Na parte III de seu artigo, Gibbard apresenta uma crítica à noção kripkiana de nomes próprios. Na base desta crítica, como veremos, está o pressuposto de que há identidades contingentes. Em seguida, apresenta uma nova formulação de designadores rígidos — que eu pretendo mostrar que só deve ser aceita se aceitarmos que o seu exemplo de identidade contingente funciona.

Logo no primeiro parágrafo Gibbard afirma que se Kripke tivesse oferecido uma perspectiva plausível de nomes próprios, então a afirmação de que M = P no exemplo anterior deveria ser rejeitada. Como vimos, Kripke defendeu que os nomes próprios eram designadores rígidos, no sentido em que se denotam uma determinada coisa no mundo atual, denotam essa mesma coisa em qualquer situação contrafactual em que essa coisa existe. Ou seja, no mundo atual usamos nomes próprios tanto para falar sobre o mundo atual como para falar sobre como ele poderia ter sido. “Sócrates”, por exemplo, designaria Sócrates em todos os mundos possíveis em que ele existe. O que Kripke quer dizer com isto não é que Sócrates não poderia ter tido outro nome numa situação contrafactual. Não há problema algum em dizer que Sócrates, numa situação contrafactual, poderia ter se chamado “Platão”. Porém, ao fazer isto ainda estamos usando o nome “Sócrates” para nos referir a Sócrates. Isto porque se o nome “Sócrates” denota Sócrates no mundo atual, então denotará Sócrates em todas as situações contrafactuais onde Sócrates existe. Uma conseqüência desta perspectiva é que todas as identidades verdadeiras envolvendo apenas nomes próprios seriam necessárias. Deste modo, se “M” é um nome próprio para uma estátua, e “P” um nome próprio para o pedaço de barro do qual ela é feita e no mundo atual “M” e “P” denotam o mesmo objeto, então denotarão o mesmo objeto em todos os mundos possíveis. Ou seja, se no mundo atual M = P, então necessariamente M = P. Todavia, se Gibbard está correto, isto é, se ele realmente conseguiu dar um exemplo onde de fato M = P, mas é possível que ambos existam e M ≠ P, então a afirmação de Kripke acerca de nomes próprios deveria ser rejeitada.

Gibbard pensa ter mostrado um caso onde teríamos uma identidade contingente. E a pergunta a que tentará responder a partir daí é a seguinte: presumindo que no exemplo dado a estátua é de fato idêntica ao pedaço de barro do qual é feita, que perspectiva dos nomes próprios daí emergiria? (p. 194). Gibbard argumenta que nomes próprios como “M” ou “P” se referem a uma coisa como uma coisa de um certo tipo. Na parte anterior falamos sobre os critérios de duração de estátuas e pedaços de barro. No exemplo da identidade contingente entre a estátua e o pedaço de barro do qual ela é feita, uma mesma coisa envolveria dois critérios de persistência diferentes. Aconteceu que no mundo atual M = P, mas “M” nomeia uma coisa com um certo critério de persistência e “P” nomeia uma coisa com outro critério de persistência. O critério de persistência de uma estátua é diferente do critério de persistência de um pedaço de barro, o que não impede que de acordo com estes diferentes critérios os objetos sejam idênticos em algumas situações contrafactuais. Em nosso mundo atual, diríamos “M” e “P” nomeiam a mesma coisa, mas a identidade entre elas é contingente, pois segundo o critério de persistência de cada um, poderia ter-se dado o caso de um ter uma duração maior que o outro.

Para tornarmos isto mais claro pensemos no seguinte: Gibbard não nega que “M” designe a mesma coisa em todos os mundos possíveis. O que ele nega é que “M” designe a mesma coisa que “P” em todos os mundos possíveis. Do mesmo modo, também não nega que “P” designe a mesma coisa em todos os mundos possíveis; nega é que “P” designe a mesma coisa que “M” em todos os mundos possíveis. “M”, por exemplo, seria um designador rígido, mas apenas relativamente à estátua e não ao pedaço de barro, e “P” seria um designador rígido, mas apenas relativamente ao pedaço de barro e não à estátua. “M” designa a mesma estátua em todos os mundos possíveis. Isto quer dizer que designadores são rígidos relativamente a um tipo ou categoria (sortal). Gibbard expressa isto da seguinte maneira:

A designator may be rigid with respect to a sortal: [...] a designator, for instance, is statue-rigid if it designates the same statue in every possible world in which that statue exists and designates nothing in any other possible world. (p. 195)

Assim, um nome próprio invoca um certo tipo ou categoria com um certo critério de persistência. “M”, por exemplo, invoca aquele critério de persistência de estátuas. E denota a mesma coisa daquele tipo em todo o mundo possível. Portanto, a referência de um nome num mundo possível W1 depende não só de sua referência no mundo atual, mas também do critério de persistência que invoca. Uma importante conseqüência disso é que nem todas as identidades envolvendo nomes próprios são contingentes. A contingência só ocorre quando uma mesma coisa envolve dois diferentes critérios de persistência; quando a mesma coisa pertence a de dois tipos diferentes. A identidade entre Véspero e Fósforo seria assim necessária, pois é verdadeira em qualquer mundo possível no qual Véspero e Fósforo existam. Isto é assim não somente porque no mundo atual os nomes “Véspero” e “Fósforo” denotam a mesma coisa, mas também porque as coisas denotadas por esses nomes têm os mesmos critérios de persistência.

Se minha interpretação estiver correta, a noção que Gibbard nos dá nomes próprios deve ser aceite na medida em que aceitarmos que o seu exemplo de identidade contingente funciona. A inovação de Gibbard em relação a Kripke é mostrar que não é somente a referência de um nome no mundo atual que determina sua referência em situações contrafactuais, mas também o critério de persistência associado à coisa nomeada. No entanto, para provar esta afirmação, Gibbard usa o caso de identidade contingente entre M e P. Ou seja, o fato de M ser idêntico a P (contingentemente) é incompatível com o que Kripke pensava acerca dos nomes próprios. Podemos notar isto no seguinte trecho (“Goliath” e “Lumpl” são os nomes dados respectivamente por Gibbard para a estátua e o pedaço de barro do qual ela é feita):

The claim that Goliath = Lumpl, then is incompatible with Kripke's account of proper names. Suppose, then, that Goliath is indeed identical with Lumpl; what view of proper names emerges? (p. 194)

A declaração de identidade contingente entre a estátua e o pedaço de barro nos levaria à necessidade de uma nova perspectiva acerca de nomes próprios, e o problema é resolvido quando passamos a considerar o critério de persistência envolvido no caso. Como afirmei na Introdução, não atacarei diretamente a teoria de Gibbard acerca dos nomes próprios. O que atacarei é o exemplo dado por ele na parte I do seu texto. E se o que ele disse acerca de nomes próprios realmente depende diretamente da verdade do seu exemplo, então acredito que minhas críticas, se corretas, atacariam indiretamente a sua noção acerca de nomes próprios. Portanto, não argumentarei nem a favor nem contra, de maneira geral, a possibilidade da identidade contingente. Argumentarei apenas que no exemplo de Gibbard não ocorre tal coisa.

III

Gostaria de começar esta parte citando dois trechos do artigo de Gibbard:

  1. Concrete things, I want to maintain, are made up in some simple, canonical way from fundamental physical entities. Now what I have said of the relation between a statue and its piece of clay fits such a general view of concrete things. (p. 192)
  2. A concrete thing — a piece of salt, for instance — cannot have the counterfactual property

    X is in water □→ X dissolves (p. 210)

Estes dois trechos serão importantes para a discussão que será feita nesta parte. Em 1 Gibbard nos oferece uma perspectiva sobre as coisas concretas. Em 2 afirma que estas coisas não podem ter propriedades contrafactuais ou disposicionais, como a solubilidade do sal na água. Antes de discutir o exemplo dado por Gibbard de identidade contingente, devemos falar sobre estes dois aspectos. Começarei pela afirmação 1.

1 afirma que o que foi dito da estátua e do pedaço de barro do qual ela é feita se encaixa na perspectiva de coisas concretas que foi oferecida. Suponhamos agora, diz Gibbard, que tomamos instantes-ponto (point-instants) como sendo as entidades físicas fundamentais e concebemos uma coisa concreta como um conjunto de entidades físicas fundamentais. Então M = P simplesmente porque as coisas concretas envolvidas são o mesmo conjunto de entidades físicas fundamentais. Se ao invés disso tomarmos partículas como sendo nossas entidades físicas fundamentais e concebermos as coisas concretas como um conjunto de partículas mutantes (changing set of particles), então M = P porque em cada instante M e P são o mesmo conjunto de partículas. Partículas e instantes-ponto seriam, afirma Gibbard, o tipo de coisa que poderíamos esperar de uma física fundamental bem confirmada, que nos daria leis fundamentais do universo. Assim, Gibbard espera que o que disse acerca da estátua e do pedaço de barro esteja de acordo com uma tal física.

Por outro lado, 2 afirma que as coisas concretas não poderiam ter propriedades contrafactuais ou disposicionais. Para justificar esta afirmação, Gibbard cita o exemplo dado por si. Não faria sentido dizer que aquela coisa concreta que é tanto M como P deixaria de existir se eu a amassasse até transformá-la numa bola, por exemplo. O que Gibbard quer dizer é que a verdade da afirmação “se eu amassasse esta coisa e transformasse numa bola, ela deixaria de existir” muda de acordo com o modo como o objeto é designado. Por exemplo, vimos que no mundo atual M e P são a mesma coisa, mas a afirmação só seria verdadeira de M mas não de P. Para exemplificar isto notemos o seguinte:

  1. "Se eu amasso e transformo M numa bola, ela deixa de existir” é verdadeira.
  2. "Se eu amasso e transformo P numa bola, ele deixa de existir” é falsa.

Se reconhecemos que “M” e “P” designam a mesma coisa no mundo atual, percebemos que as propriedades em causa não podem pertencer a coisas concretas. Pois “uma propriedade, para ser uma propriedade, tem de se aplicar ou não a uma coisa independentemente do modo como ela é designada” (p. 201; ver também p. 210). A saída que Gibbard oferece para esta situação não nos interessa aqui. Para o propósito deste texto basta notar que a afirmação de que as coisas concretas não podem ter propriedades contrafactuais está diretamente ligada com a assunção de que M = P contingentemente.

Como já foi dito, tentarei mostrar que no exemplo dado por Gibbard não há um caso de identidade contingente — porque não há sequer um caso de identidade. Argumentarei que os dois não podem ser idênticos porque no exemplo citado, P teria uma propriedade que M não teria, qual seja, P poderia adquirir várias formas (por exemplo, a de uma bola, a de um cubo, etc.) e continuaria sendo o mesmo, enquanto M não. Todavia, a propriedade que reivindico para P seria uma propriedade disposicional e poderia ser expressa do seguinte modo:

Se eu amassar P, transformando-o numa bola, P continua a existir.

Se Gibbard está correto, as coisas concretas não têm propriedades disposicionais e, portanto meu argumento seria invalidado. Deste modo, o meu primeiro passo será mostrar que o meu argumento não poderia ser invalidado pela sua afirmação de que as coisas concretas não têm propriedades disposicionais.

Vimos que para provar que as coisas concretas não podem ter propriedades contrafactuais ou disposicionais Gibbard usa o seu exemplo de identidade contingente. Todavia, desejo sustentar que ao mostrar que P é idêntico a M contingentemente, Gibbard já pressupôs que as coisas concretas não podem ter propriedades disposicionais. Portanto, cairíamos num círculo vicioso. Na parte I de seu artigo Gibbard afirma que para que duas coisas sejam idênticas devem ter todas as propriedades em comum; mas ao estipular um exemplo no qual uma estátua é idêntica ao pedaço de barro do qual ela é feita, Gibbard simplesmente desconsidera propriedades disposicionais. Se tivesse levado em conta, na formulação de seu exemplo, as propriedades disposicionais, não teria sido capaz de afirmar que a estátua é idêntica ao pedaço de barro do qual ela é feita; seria obrigado a afirmar que o pedaço de barro tem propriedades (disposicionais) que a estátua não tem. O pedaço de barro teria a propriedade de poder assumir formas diferentes e continuar sendo o mesmo. Por outro lado, este mesmo exemplo de identidade contingente é usado para provar que as coisas concretas não têm propriedades disposicionais. O que Gibbard afirma é que as coisas concretas não podem ter propriedades disposicionais porque isto entraria em contradição com o exemplo que ele deu. Por outras palavras, se as coisas concretas tivessem propriedades disposicionais, então não poderíamos considerar que M = P; mas dado que M = P, segue-se que as coisas concretas não têm propriedades disposicionais. Eu sustento, então, que ao dar o seu exemplo, Gibbard já havia pressuposto que as coisas concretas não têm propriedades disposicionais. O problema é Gibbard pressupor isso sem qualquer justificativa anterior, usando de seguida este mesmo exemplo (que pressupõe que as coisas concretas não têm propriedades disposicionais) para provar que as coisas concretas não têm propriedades disposicionais.

O que eu disse até aqui não prova nem que as coisas concretas têm tais propriedades, nem que não têm. Limitei-me a argumentar que Gibbard não nos dá um argumento para recusarmos que as coisas concretas têm propriedades disposicionais. Entretanto, no nosso discurso corrente e na ciência (como por exemplo, na química) costumamos aceitar que as coisas concretas têm propriedades como a solubilidade na água (que é uma propriedade disposicional). Portanto, se aceitarmos que M não pode ser idêntico a P porque P tem propriedades disposicionais que M não tem (o que seria concordante tanto com as posições de Kripke acerca da identidade envolvendo nomes próprios como com suas posições sobre nomes próprios, não levando ao imperativo de alterar qualquer das duas) não somos refutados por nenhum dos argumentos de Gibbard. O dilema no qual nos encontraríamos seria o seguinte:

Ou rejeitamos, sem motivo anterior, que as coisas concretas têm propriedades disposicionais, e portanto a identidade entre M e P seria possível”;

Ou aceitamos, também sem motivo anterior, que as coisas concretas têm propriedades disposicionais, e portanto M não pode ser idêntico a P, porque P tem uma propriedade que M não tem.

Se o que eu disse até aqui está correto, Gibbard consegue, no máximo nos deixar com esta escolha.

Ora, a primeira opção nos força a abandonar um número considerável de crenças correntes, enquanto a segunda acomoda estas crenças num sistema coerente. Deste modo, o ônus da prova seria de Gibbard e não de Kripke. E se isto é assim, não teríamos motivo algum para aceitar que o exemplo de identidade contingente de Gibbard funcione, a não ser que tenhamos um argumento para mostrar que as coisas concretas não podem ter propriedades disposicionais. Da mesma forma, não teríamos motivos para abandonar as posições de Kripke acerca de nomes próprios, pois a teoria de nomes próprios que Gibbard nos oferece deve ser aceite, como argumentei na parte anterior, na medida em que aceitamos a identidade entre M e P.

No entanto, Gibbard ainda poderia fazer duas objeções. Em primeiro lugar, poderia objetar que parte de um exemplo muitíssimo intuitivo, qual seja, que M = P, e deriva toda a sua teoria daí. Se Kripke deseja mesmo dar relevância às nossas intuições, então deveria aceitar que intuitivamente M = P, ou seja, a estátua de barro é idêntica ao pedaço de barro do qual é feita. Gibbard limita-se a aceitar as nossas intuições no que diz respeito a este ponto, para em seguida extrair as conseqüências que emergem dele. Uma dessas conseqüências seria que este é um caso de identidade contingente. Isto porque em uma situação contrafactual M ≠ P. Outra conseqüência é que as coisas concretas não podem ter propriedades disposicionais. Desta maneira, Gibbard escaparia da acusação de circularidade e não teríamos motivo para recusar o seu exemplo de identidade contingente e, conseqüentemente, a sua teoria de nomes próprios.

Em segundo lugar, Gibbard poderia objetar que a sua teoria é a que melhor se encaixa na visão de coisas concretas que oferece, que estaria de acordo com uma física que nos fornecesse leis fundamentais do universo. Kripke, ao contrário, não conseguiria nos oferecer uma perspectiva da identidade ou dos nomes próprios compatível com a afirmação de que uma coisa concreta é um conjunto de instantes-ponto ou um conjunto de partículas mutantes. Não disputarei esta possível objeção. Isto envolveria discussões mais específicas, como a de saber se a teoria de Kripke é ou não compatível com esta perspectiva, se de fato esta seria a melhor opção a adotarmos como perspectiva das coisas concretas, etc. Nem mesmo Gibbard discute estes tópicos no seu texto. Embora eu não dispute este aspecto, acredito que é uma questão em aberto. Discutirei aqui apenas a primeira objeção.

Como disse, a primeira objeção que Gibbard poderia fazer à crítica apresentada neste texto é que a sua teoria emerge do fato de aceitarmos como verdadeiro o exemplo altamente intuitivo de identidade entre M e P. Se aceitamos a identidade entre M e P, conseqüentemente teríamos de negar que ela seja necessária e que as coisas concretas têm propriedades disposicionais. Entretanto, vimos anteriormente que se aceitamos que as coisas concretas têm propriedades disposicionais (o que também é altamente intuitivo) temos de recusar que M seja idêntico a P. A pergunta a fazer a Gibbard então é a seguinte:

O que é mais plausível? Recusar que as coisas concretas têm propriedades disposicionais devido ao fato de aceitarmos que M = P, ou recusarmos que M = P devido ao fato de as coisas concretas terem propriedades disposicionais?

Se optamos pela segunda, então temos de recusar que o exemplo de Gibbard, que por sinal é um exemplo bastante convincente. Todavia, se optarmos pela primeira, temos de recusar que ser solúvel na água seja uma propriedade do sal ou do açúcar, que o metal tenha a propriedade de ser um bom condutor de energia, que a madeira seja um mau condutor, que ser maleável ou dúctil seja uma propriedade dos objetos, etc. O que quero dizer é que se Gibbard realmente deseja assumir que está levando em conta as nossas intuições, então terá de assumir a segunda opção como a mais plausível. Não faz sentido abandonar nossas crenças de que as coisas concretas têm propriedades disposicionais em função de um exemplo muito específico de identidade (contingente) entre uma estátua e o pedaço de barro do qual é feita. Principalmente quando o caminho inverso pode ser feito.

Sugiro, portanto, que seria mais plausível aceitar que as coisas concretas têm propriedades disposicionais e, em função disto, recusarmos a identidade entre M e P. Tomar o caminho de Gibbard seria danoso. Como afirmei, no nosso discurso corrente e na ciência costumamos aceitar que as coisas concretas têm propriedades como a solubilidade na água, a maleabilidade, e assim por diante. Não vale a pena reformular boa parte do nosso discurso corrente e científico devido a um exemplo que talvez só ocorra em textos de filosofia, e que são bastante raros. Não estou sugerindo que o exemplo de Gibbard deva ser rejeitado injustificadamente. Todavia, acredito que só devemos aceitá-lo na medida em que oferecer uma boa justificação para recusarmos que as coisas concretas têm propriedades disposicionais. O caso é que Gibbard não oferece tal justificação. Justamente por isso, não temos motivo para aceitar o seu exemplo de identidade contingente nem, conseqüentemente, a sua teoria dos nomes próprios.

Sagid Salles Ferreira

Notas

  1. Ao dizer que nomes próprios são designadores rígidos Kripke não se compromete com qualquer posição metafísica. Nós podemos discordar de sua tese metafísica acerca de propriedades essenciais e acidentais por exemplo, e ainda assim concordar que os nomes próprios são designadores rígidos. Poderíamos recusar que ser um ser humano é uma propriedade essencial de Machado de Assis, ou seja, aceitar que Machado de Assis poderia não ter sido um ser humano, mas ao mesmo tempo aceitar que nomes próprios sejam designadores rígidos. Neste caso, diríamos que “Machado de Assis” denota um extraterrestre num certo mundo possível, por exemplo. Portanto, a recusa do essencialismo não implica a recusa da designação rígida.

Bibliografia

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ISSN 1749-8457