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Crítica
2 de Maio de 2008   História da filosofia

Devemo-lo aos árabes?

José Pedro Teixeira Fernandes
Aristote au Mont Saint-Michel: Les Racines Grecques de l’Europe Chrétienne
de Sylvain Gouguenheim
Paris: Éditions du Seuil, 2008, 280 pp.

O historiador e medievalista francês, Sylvain Gouguenheim, professor da Escola Normal Superior de Lyon, publicou recentemente um livro polémico, que já lhe valeu a hostilidade de vários colegas de profissão. Nesse livro, o autor analisou em detalhe a tese, muito vulgarizada actualmente, de que a Europa tem um importante débito face ao Islão, na transmissão do saber da Antiguidade Clássica grega, sobretudo através do Al-Andalus (a Península Ibérica muçulmana medieval) e da Sicília. Como o autor vai evidenciando ao longo do trabalho, esta é uma percepção que, embora com fundamento histórico, tende a ser bastante exagerada, algo que se pode comprovar através de um exame mais minucioso da própria Idade Média europeia. De facto, em parte, essa percepção exagerada deve-se a um relativo (des)conhecimento do período medieval europeu, visto superficialmente como uma idade das trevas. Normalmente é subestimado o grau de persistência da herança cultural da Antiguidade Clássica, apesar de tudo apreciável, bem como o trabalho autóctone de tradução — como foi, por exemplo, o caso do desenvolvido na abadia do Mont Saint-Michel, em relação aos textos de Aristóteles e outros filósofos da Antiguidade. Este trabalho de tradução, precedeu em cerca de meio século o efectuado no Al-Andalus. (Note-se que tudo isto não é muito surpreendente, se nos lembrarmos que o grego era a língua dos Evangelhos, como recorda Sylvain Gouguenheim, o que constituía um importante estímulo para o seu conhecimento.) Além disso, baseia-se também numa tendência dos historiadores ocidentais para a subvalorização do relevante contributo da civilização bizantina na transmissão do saber da Antiguidade Clássica ao Ocidente latino e germânico, durante o período da Alta Idade Média. Alimenta-se, ainda, de uma vulgar confusão que existe na Europa e Ocidente, entre árabes e muçulmanos.

Outro aspecto normalmente desconhecido, pelo menos do grande público, é que grande parte do trabalho de tradução dos manuscritos gregos foi efectuado não por muçulmanos, mas por cristãos árabes (sobretudo aramaicos ou sírios) do Médio Oriente, os quais, entre os séculos VIII e X constituíam a maioria da população do império árabe islâmico na região e eram praticamente os únicos que tinham as competências linguísticas necessárias para essa tradução, pelo menos nos primeiros tempos. Por outro lado, e este é também um ponto crucial, o interesse pela Antiguidade Clássica e o legado da Filosofia grega, nunca foi incorporado na cultura islâmica dominante, sendo restrito a uma elite intelectual (Averróis, Avicena, etc.), ao contrário do que aconteceu na Europa, onde acabou por ter uma difusão alargada e se misturar com o próprio cristianismo, como é bem visível no Renascimento dos séculos XIV a XVI. Isto não significa, naturalmente, que o Islão não tenha influenciado o Ocidente cristão em vários aspectos culturais, tecnológicos e até mesmo teológicos. Por exemplo, como assinalou Jacques Ellul, no domínio teológico essa influência pode detectar-se nos apelos papais aos milites Christi (soldados de Cristo), a partir do final do século XI, com bulas concedendo benefícios aos que integrassem as cruzadas. Estes denotam uma influência dos textos dos teólogos-juristas muçulmanos medievais (sobretudo dos comentários ao Corão e aos ahadith, as acções e ditos do Profeta Maomé) sobre a jihad (entendida como uma espécie de bellum justum). Tais textos exortavam os muçulmanos à participação na jihad e prometiam recompensas aos que nela participassem com a sua vida e bens, um modelo de sucesso que o cristianismo ocidental — mas, curiosamente, não o Cristianismo ortodoxo bizantino — procurou imitar através das cruzadas.

Sem estar isento de críticas ou debilidades em aspectos pontuais, este livro acaba por constituir uma leitura interessante e merecedora de reflexão. Note-se que o tema, apesar do seu distanciamento histórico, ainda hoje move paixões e não é neutro politicamente, sobretudo no actual clima de relações conturbadas com o mundo islâmico onde paira o espectro de um conflito de civilizações. Todavia, o seu principal mérito é o de funcionar como um válido contraponto face a um enviesamento do passado que tende a ser gerado por um certa vulgata histórica, imbuída, consciente ou inconscientemente, de uma ideologia multiculturalista. Esta, ao projectar no período medieval formativo da Europa os ideais e utopias do presente, acaba por recriar uma nova história que se vê a si mesma como progressista e aberta ao outro. A ironia é que, embora sob outras formas, esta visão precisa de descobrir as suas próprias mitologias (multiculturalistas) para se legitimar. A mais conhecida é a de um Al-Andalus das três culturas, onde muçulmanos, cristãos e judeus conviviam lado o lado. O problema com este tipo de imagens multiculturais é que não são menos distorcidas do que as difundidas pela historiografia nacionalista. Também esta descobria episódios e heróis nacionais no período medieval e pré-medieval, como forma de se autolegitimar. Como é bem conhecido (e justamente criticado), no apogeu desse tipo de historiografia, o passado era frequentemente reinterpretado à luz da ideologia e imperativos do presente. Hoje estamos perante um fenómeno similar; o que mudou foi a ideologia dominante: ao nacionalismo sucedeu o multiculturalismo. Impõe-se, por isso, adoptar também aqui uma saudável dose de cepticismo, como aquela que foi adoptada face à narrativa da historiografia nacionalista.

José Pedro Teixeira Fernandes

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ISSN 1749-8457