Há quem pense que argumentar é apenas expor os seus preconceitos de outra maneira. É por isso que se pensa também que os argumentos são desagradáveis e inúteis. Argumentar pode confundir-se com discutir. Neste sentido, dizemos por vezes que duas pessoas argumentam, como numa espécie de luta verbal. Acontece muito. Mas não é isso o que os argumentos são de facto.
Nestas páginas, “apresentar um argumento” quer dizer oferecer um conjunto de razões a favor de uma conclusão, ou oferecer dados favoráveis a uma conclusão. Não se entende aqui que um argumento é apenas a afirmação de certos pontos de vista; não se considera que é apenas uma disputa. Os argumentos são aqui entendidos como tentativas de apoiar certos pontos de vista com razões. Neste sentido, os argumentos não são inúteis; na verdade, são essenciais.
Os argumentos são essenciais, em primeiro lugar, porque são uma maneira de tentar descobrir quais são os melhores pontos de vista. Nem todos os pontos de vista são iguais. Algumas conclusões podem ser apoiadas com boas razões; outras, com razões menos boas. Mas muitas vezes não sabemos quais são as melhores conclusões. Precisamos de apresentar argumentos para apoiar diferentes conclusões, e depois avaliar esses argumentos para ver se são realmente bons.
Neste sentido, um argumento é uma forma de investigação. Alguns filósofos e activistas defenderam, por exemplo, que criar animais só para fornecer carne provoca um sofrimento imenso aos animais e que, portanto, isso é injustificado e imoral. Será que têm razão? Não se consegue decidir consultando os nossos preconceitos. Estão envolvidas muitas questões. Teremos obrigações morais para com outras espécies, por exemplo, ou é só o sofrimento humano que é realmente mau? Poderão os seres humanos viver realmente bem sem carne? Alguns vegetarianos viveram até idades muito avançadas. Mostra este facto que as dietas vegetarianas são mais saudáveis? Ou é esse facto irrelevante, considerando que algumas pessoas que não são vegetarianas também viveram até idades muito avançadas? (É melhor perguntar se uma percentagem mais elevada de vegetarianos vivem até idades avançadas.) Talvez as pessoas mais saudáveis tenham tendência para se tornarem vegetarianas, ao contrário das outras? Todas estas questões têm de ser consideradas cuidadosamente, e as respostas não são, à partida, óbvias.
Os argumentos também são essenciais por outra razão. Uma vez chegados a uma conclusão bem apoiada por razões, os argumentos são a maneira que temos de explicá-la e defendê-la. Um bom argumento não se limita a repetir conclusões. Em vez disso, oferece razões e dados para que as outras pessoas possam formar a sua própria opinião. Se o leitor estiver convencido de que devemos realmente mudar a forma como criamos e usamos os animais, por exemplo, terá de usar argumentos para explicar como chegou a essa conclusão: é assim que irá convencer as outras pessoas. Ofereça as razões e os dados que o convenceram a si. Ter opiniões fortes não é um erro. O erro é só ter isso.
As regras para argumentar não são, pois, arbitrárias: têm um objectivo específico. Mas os estudantes (como outros autores) nem sempre compreendem qual é o objectivo quando, pela primeira vez, se lhes pede para escrever um ensaio argumentativo — e se não compreendemos o objectivo do que nos pedem, é improvável que o façamos bem. Muitos estudantes, quando lhes pedem que argumentem a favor dos seus pontos de vista acerca de um assunto qualquer, escrevem declarações intrincadas dos seus pontos de vista, mas não oferecem verdadeiramente razões para pensar que os seus pontos de vista são correctos. Escrevem um ensaio, mas não um ensaio argumentativo.
Este erro é natural. Na escola secundária, a ênfase é colocada na aprendizagem de assuntos que são razoavelmente pouco ambíguos e incontroversos. Não é necessário defender que foi Vasco da Gama que descobriu o caminho marítimo para a Índia, ou que Eça de Queirós escreveu Os Maias. Estes são factos que o estudante se limita a dominar, e que os seus ensaios se limitam a relatar.
Os estudantes vão para o ensino superior e esperam que as coisas sejam mais ou menos iguais. Mas muitos cursos superiores — especialmente os que exigem ensaios — têm um objectivo diferente. Estes cursos tratam das bases das nossas crenças; exigem que os estudantes questionem as suas crenças, que elaborem e defendam os seus pontos de vista. Os assuntos discutidos nos cursos superiores são frequentemente mais ambíguos e menos precisos. Sim, é verdadeiro que Vasco da Gama descobriu o caminho marítimo para a Índia, mas quais foram verdadeiramente os motivos da política expansionista? Sim, é verdadeiro que Eça de Queirós escreveu Os Maias, mas qual é o significado do romance? Há razões e dados favoráveis a diferentes respostas. Aos estudantes destes cursos pede-se que aprendam a pensar por si, que formem as suas próprias opiniões de forma responsável. A competência para defender as suas opiniões é um sinal dessa capacidade, e é por isso que os ensaios argumentativos são tão importantes.
De facto, como veremos, para escrever um bom ensaio argumentativo, o estudante tem de usar argumentos simultaneamente como um meio de investigação e como uma maneira de explicar e defender as suas conclusões. Para se preparar para escrever um ensaio, o estudante tem de explorar os argumentos a favor de pontos de vista opostos; é necessário depois escrever o próprio ensaio como uma argumentação, defendendo as suas conclusões com argumentos e avaliando criticamente alguns dos argumentos dos pontos de vista opostos.
Começaremos por discutir argumentos muito simples e terminaremos com ensaios argumentativos.
Até à secção 6, examinaremos a redacção e avaliação de argumentos concisos. Um argumento conciso limita-se a oferecer as suas razões e dados disponíveis com brevidade, usualmente em poucas frases ou num parágrafo. Começamos com argumentos concisos por diversas razões. Primeiro, porque são comuns. São de facto tão comuns que fazem parte das conversas de todos os dias. Segundo, porque os argumentos longos são muitas vezes argumentos concisos elaborados, e/ou uma série de argumentos concisos ligados entre si. O leitor deve aprender primeiro a escrever e a avaliar argumentos concisos; depois disso, será capaz de alargar as suas competências aos ensaios argumentativos.
Uma terceira razão para começar com argumentos concisos é que são a melhor maneira de ilustrar quer as formas argumentativas comuns, quer os seus erros típicos. Nos argumentos longos é mais difícil escolher tanto os pontos principais como os problemas principais. Logo, apesar de algumas das regras parecerem óbvias quando são pela primeira vez enunciadas, deve o leitor recordar que tem o benefício de estar perante um exemplo simples. Outras regras são suficientemente difíceis de compreender mesmo em argumentos concisos.
As secções 7, 8 e 9 tratam de ensaios argumentativos. A secção 7 é acerca do primeiro passo: a exploração do tema. A secção 8 traça um plano geral dos pontos principais de um ensaio argumentativo; a secção 9 acrescenta regras específicas para escrevê-lo. Todas estas secções dependem das secções 1–6, uma vez que, fundamentalmente, um ensaio argumentativo combina e elabora os tipos de argumentos concisos aí abordados. Não salte, pois, para as secções sobre ensaios argumentativos, mesmo que use este trabalho sobretudo como uma ajuda enquanto escreve um ensaio. Este trabalho é suficientemente pequeno para ser inteiramente lido até às secções 7, 8 e 9, e quando aí chegar terá então os instrumentos de que precisa para usar bem essas secções.
A secção 10 trata de falácias, que são erros que ocorrem em argumentos. Resume-se aí os erros gerais discutidos no resto deste trabalho, e terminamos com uma lista dos muitos erros no raciocínio, tão tentadores e comuns que até têm nome.
Oferece-se aqui algumas regras gerais para escrever argumentos concisos. Da secção 2 à 6 discute-se tipos específicos de argumentos concisos.
O primeiro passo para redigir um argumento é perguntar: o que se deseja provar? Qual é a conclusão? É preciso não esquecer que a conclusão é a afirmação a favor da qual se oferece razões. Chama-se “premissas” às afirmações que oferecem essas razões.
Considere-se esta observação de Winston Churchill:
Devemos ser optimistas. Não vale muito a pena ser outra coisa qualquer.
Isto é um argumento, porque Churchill está a dar uma razão para se ser optimista: a sua premissa é que “não vale muito a pena ser outra coisa qualquer”.
A premissa e a conclusão de Churchill são suficientemente óbvias, mas as conclusões de alguns argumentos podem não ser óbvias até ao momento em que são apontadas. Sherlock Holmes tem de explicar uma das suas conclusões mais importantes em A Aventura de Silver Blaze:
Estava um cão no estábulo e, no entanto, não ladrou, apesar de alguém lá ter estado e de ter levado um cavalo [...] É óbvio que o visitante era alguém que o cão conhecia bem [...]
Holmes tem duas premissas. Uma é explícita: o cão não ladrou ao visitante. A outra é um facto geral acerca de cães que Holmes pressupõe que conhecemos: os cães ladram aos estranhos. Juntas, estas premissas implicam que o visitante não era um estranho.
Quando se usa argumentos como um meio de investigação, no sentido explicado na Introdução, por vezes pode-se começar apenas com a conclusão que se deseja defender. Antes de tudo, esta deve ser enunciada claramente. Se quer aceitar a ideia de Churchill e argumentar que devemos realmente ser optimistas, diga-o explicitamente. Depois pergunte-se que razões tem para tirar tal conclusão. Que razões pode oferecer para provar que devemos ser optimistas?
Podia invocar a autoridade de Churchill: se Churchill afirma que devemos ser optimistas, quem somos nós para discutir? Contudo, esta manobra não o levará muito longe, uma vez que provavelmente um igual número de pessoas famosas recomendaram o pessimismo. Terá de pensar por si. Uma vez mais: quais são as suas razões para pensar que devemos ser optimistas?
Talvez a sua ideia seja que ser optimista lhe dá mais energia para trabalhar para atingir o sucesso, ao passo que os pessimistas se sentem logo à partida derrotados e, portanto, nem chegam a tentar. Temos assim uma premissa principal: os optimistas têm mais hipóteses de ser bem-sucedidos, de atingir os seus objectivos. (Talvez fosse igualmente isto que Churchill queria dizer.) Se esta é a sua premissa, deve afirmá-la explicitamente.
Quando o leitor chegar ao fim deste trabalho, terá uma lista muito útil de muitas das diferentes formas que os argumentos podem assumir. Use-a para desenvolver as suas premissas. Para defender uma generalização, por exemplo, reveja a secção 2, que lhe lembrará que terá de dar uma série de exemplos como premissas, e que lhe mostrará que tipos de exemplos deverá procurar. Se a sua conclusão requer um argumento dedutivo, do género dos que são explicados na secção 6, as regras nele discutidas mostrar-lhe-ão de que premissas precisa. É possível que tenha de experimentar vários argumentos antes de encontrar aquele que funciona bem.
Escreve-se habitualmente os argumentos concisos num ou dois parágrafos. Coloque a conclusão primeiro, seguida das suas razões, ou apresente as suas premissas primeiro e retire a conclusão no fim. Em qualquer dos casos, apresente as suas ideias numa ordem que desdobre o seu raciocínio da forma mais natural para o leitor. Repare neste argumento conciso de Bertrand Russell:
Os males do mundo devem-se tanto a defeitos morais quanto à falta de inteligência. Mas a humanidade não descobriu até agora um método para erradicar defeitos morais [...] A inteligência, em contraste, aperfeiçoa-se facilmente com métodos que todos os educadores competentes conhecem. Logo, até se descobrir algum método para ensinar a virtude, o progresso terá de ser alcançado pelo aperfeiçoamento da inteligência e não da moral.1
Cada afirmação desta passagem conduz naturalmente à seguiunte. Russell começa por apontar duas fontes do mal no mundo: “defeitos morais”, na sua expressão, e falta de inteligência. Afirma depois que não sabemos como corrigir “defeitos morais”, mas que sabemos como corrigir a falta de inteligência. Logo — note-se que esta palavra marca claramente a conclusão — o progresso terá de vir do aperfeiçoamento da inteligência.
Cada frase deste argumento está no lugar certo. E havia muitos lugares errados à sua disposição. Suponha-se que Russell escrevera desta maneira:
Os males do mundo devem-se tanto a defeitos morais quanto à falta de inteligência. Até se descobrir algum método para ensinar a virtude, o progresso terá de ser alcançado pelo aperfeiçoamento da inteligência e não da moral. A inteligência aperfeiçoa-se facilmente com métodos que todos os educadores competentes conhecem. Mas a humanidade não descobriu até agora qualquer método para erradicar defeitos morais.
Estas são exactamente as mesmas premissas e conclusão, mas estão numa ordem diferente, e a palavra “logo”, antes da conclusão, foi omitida. Agora o argumento é muito mais difícil de compreender: as premissas não ocorrem naturalmente juntas, e é necessário ler a passagem duas vezes só para compreender qual é a conclusão. Não espere que os seus leitores sejam assim tão pacientes.
É de esperar que serão necessárias várias reformulações do seu argumento até encontrar a ordem mais natural. As regras aqui discutidas deverão ajudá-lo: pode usá-las não apenas para descobrir de que premissas precisa, mas também para formular as suas premissas da maneira mais natural.
Por melhor que argumente a partir de premissas e a favor de uma conclusão, a sua conclusão será fraca se as suas premissas forem fracas.
Hoje em dia não há no mundo quem seja realmente feliz. Logo, parece que os seres humanos não foram feitos para a felicidade. Por que haveríamos de esperar o que nunca podemos encontrar?
A premissa deste argumento é a afirmação de que hoje em dia não há no mundo quem seja realmente feliz. Pergunte-se a si próprio se esta premissa é plausível. Não há hoje em dia no mundo pessoa alguma que seja realmente feliz? No mínimo, esta premissa precisa de alguma defesa, e é muito natural que não seja simplesmente verdadeira. Logo, este argumento não pode mostrar que os seres humanos não foram feitos para a felicidade, ou que não devemos esperar ser felizes.
Por vezes, é fácil começar por premissas seguras. Pode-se dispor de exemplos muito conhecidos, ou de autoridades bem informadas que estão claramente de acordo. Outras vezes é mais difícil. Se não tem a certeza da verdade de uma premissa, pode ter de fazer alguma investigação, e/ou de apresentar um argumento conciso para defender a própria premissa. (Regressaremos a este tema.) Se descobrir que não consegue argumentar adequadamente a favor da sua premissa ou premissas, então, está claro, é necessário desistir completamente desse argumento e começar por outro lado!
Escreva de maneira concreta: evite termos abstractos, vagos, gerais. “Andámos durante horas ao Sol” é cem vezes melhor do que “Foi um extenso período de laborioso esforço”.
Para aqueles cujos papéis envolviam primariamente a execução de serviços, por oposição com a assunção de responsabilidades de liderança, o padrão básico parece ter sido uma resposta às obrigações invocadas pela liderança, que eram concomitantes ao estatuto de membro na comunidade societal e em várias das suas unidades segmentadas. A analogia moderna mais próxima é o serviço militar executado por um cidadão comum, excepto que o líder da burocracia egípcia não precisava de uma emergência especial para convocar obrigações legítimas.2
No antigo Egipto, as pessoas comuns podiam ser recrutadas para trabalhar.
Não faça o seu argumento parecer bom à custa de caricaturar o lado oposto. Geralmente, as pessoas advogam uma posição por razões sérias e sinceras. Tente perceber o ponto de vista delas, mesmo que pense que estão completamente erradas. Uma pessoa que se opõe ao uso de uma nova tecnologia não é necessariamente a favor do “regresso às cavernas”, por exemplo, e uma pessoa que advoga uma redução nos gastos militares não é necessariamente a favor de “entregar o país aos estrangeiros”. Se não conseguimos imaginar como pode alguém defender o ponto de vista que estamos atacando, é porque ainda não o compreendemos.
Em geral, evite uma linguagem cuja única função é influenciar as emoções do seus leitores ou ouvintes, quer seja a favor ou contra a ideia que está discutindo. Isso é linguagem tendenciosa.
A sabotagem eleitoral teve um papel importante na guerra secreta do Brasil. A CIA investiu qualquer coisa como vinte milhões de dólares para financiar os conservadores nas [...] eleições brasileiras. O dinheiro foi usado para comprar candidatos em oito das onze eleições para o governo [...]3
Aqui, o próprio termo sumário “guerra” é tendencioso: não se alega qualquer envolvimento militar. “Sabotagem” e “comprar” são igualmente inapropriados. Uma eleição pode ser verdadeiramente “sabotada” se por todo o país se encherem as urnas com votos falsos, e um candidato pode ser “comprado” se for pago para votar segundo as instruções dadas. Neste excerto, contudo, a CIA é acusada apenas de dar dinheiro nas eleições aos candidatos conservadores. Não é evidente que alguém seja “comprado” apenas por receber contribuições financeiras às escondidas, especialmente se esse alguém já defende o ponto de vista que a CIA favorece. Assim, a frase de abertura devia ser:
A CIA tentou influenciar as eleições brasileiras dando dinheiro a candidatos conservadores.
Esta frase, agora neutra, não desculpa o envolvimento da CIA. Pelo contrário, este deve agora ser tomado ainda mais seriamente. A linguagem tendenciosa só prega aos fiéis já convertidos, mas a apresentação cuidadosa dos factos pode converter.
Limite-se a um único conjunto de termos para cada ideia. Se deseja argumentar que os pontos de vista do deputado Oliveira são de direita, então use a expressão “de direita” nas suas premissas, e não (ou não apenas) expressões como “de tendência conservadora” ou “do tempo da velha senhora”.
Os termos constantes são especialmente importantes quando o seu argumento depende de conexões entre as premissas.
Se estudarmos outras culturas, dar-nos-emos conta da existência de uma enorme diversidade de costumes humanos. Se compreendermos a diversidade de práticas sociais, questionaremos os nossos próprios costumes. Se tivermos dúvidas acerca da maneira como fazemos as coisas, tornar-nos-emos mais tolerantes. Logo, se expandirmos o nosso conhecimento de antropologia, é mais provável que aceitemos outras pessoas e outras práticas sem críticas.
Se estudarmos outras culturas, dar-nos-emos conta da existência de uma enorme diversidade de costumes humanos. Se nos dermos conta dessa enorme diversidade, questionaremos os nossos próprios costumes. Se o fizermos, tornar-nos-emos mais tolerantes. Logo, se estudarmos outras culturas, tornar-nos-emos mais tolerantes.
Em ambas as versões, cada uma das frases tem a forma “se X, então Y”. Na segunda versão, todavia, o Y da primeira premissa é exactamente o X da segunda, o Y da segunda é exactamente e X da terceira, e assim por diante. (Volte atrás e veja.) É por isso que o segundo argumento é fácil de ler e de compreender: forma uma espécie de cadeia. Na primeira versão, o Y da primeira premissa só aproximadamente é o X da segunda, o Y da segunda premissa só aproximadamente é o X da terceira, e assim por diante. Aqui, cada X e Y está escrito como se o autor tivesse consultado um dicionário de sinónimos a cada oportunidade. A expressão “mais tolerante” na terceira premissa, por exemplo, está escrita como “mais provável que aceitemos outras pessoas e outras práticas sem críticas” na conclusão. O resultado é que se perde a forte conexão entre as premissas individuais, e entre as premissas e a conclusão. O escritor faz um brilharete, mas o leitor — que não tem o privilégio de conhecer previamente a estrutura do argumento — é deixado a afundar-se no lodo.
A tentação oposta é usar uma única palavra em mais de um sentido. Esta é a falácia clássica da equivocidade.
As mulheres e os homens são física e emocionalmente diferentes. Logo, os sexos não são iguais e, portanto, a lei não devia fingir que são!
Este argumento pode parecer plausível à primeira vista, mas é construído com base em dois sentidos diferentes da palavra “igual”. É verdadeiro que os homens e as mulheres não são física e emocionalmente iguais, no sentido em que “igual” quer simplesmente dizer “idêntico”. A igualdade perante a lei, contudo, não quer dizer “física e emocionalmente idênticos”, mas antes “com os mesmos direitos e oportunidades”. Reformulado, pois, clarificando os dois sentidos diferentes da palavra “igual”, o argumento é o seguinte:
As mulheres e os homens não são física e emocionalmente idênticos. Logo, as mulheres e os homens não devem ter os mesmos direitos e oportunidades.
Nesta versão do argumento já não há equívoco quanto à palavra “igual”, mas não é ainda um bom argumento; é apenas o inadequado argumento original, mas agora a inadequação já não está escondida. Uma vez removida a equivocidade, torna-se claro que a conclusão do argumento não é apoiada pela premissa, e que nem sequer se relaciona com ela. Não é oferecida qualquer razão para mostrar que as diferenças físicas e emocionais devem ter alguma coisa a ver com direitos e oportunidades legais.
Algumas vezes somos tentados pela equivocidade ao tornar vaga a palavra-chave do nosso argumento. Considere-se a seguinte conversa:
- A: As pessoas são todas egoístas!
- B: Mas então e o João? Olha como ele é dedicado aos filhos!
- A: Ele está unicamente a fazer o que realmente quer fazer — e isso é ainda egoísmo!
Aqui, o sentido de “egoísta” muda da primeira afirmação de A para a segunda. Na primeira, compreendemos que “egoísta” quer dizer algo de muito específico: o comportamento ganancioso, centrado sobre si mesmo, a que geralmente chamamos “egoísta”. Na resposta de A à objecção de B, A expande o sentido de “egoísta” para incluir também o comportamento aparentemente altruísta, alargando a definição de egoísmo para “fazer o que realmente se quer fazer”. A salva apenas a palavra; mas esta já perdeu o seu sentido específico original.
Uma boa maneira de evitar a equivocidade é definir cuidadosamente quaisquer palavras-chave quando são introduzidas; depois, é necessário assegurar que estas palavras são usadas unicamente como foram definidas! Pode ser também necessário definir termos especiais ou palavras técnicas. Para uma discussão sobre o processo e os perigos da definição, veja-se o Apêndice.
Os argumentos com base em exemplos oferecem um ou mais exemplos específicos para apoiar uma generalização.
No passado, as mulheres casavam muito novas. A Julieta da peça Romeu e Julieta, de Shakespeare, ainda nem tinha catorze anos. Na Idade Média, treze anos era a idade normal de casamento para uma rapariga judia. E durante o Império Romano muitas mulheres casavam aos treze anos, ou ainda mais novas.
Este argumento parte de três exemplos — Julieta, as mulheres judias na Idade Média, e as mulheres romanas do Império Romano — e generaliza para muitas ou para a maior parte das mulheres no passado. Para ver a forma deste argumento mais claramente, podemos fazer uma lista com as premissas, pondo a conclusão no fim:
- Na peça de Shakespeare, a Julieta não tinha ainda catorze anos.
- Durante a Idade Média, normalmente, as mulheres judias casavam aos treze anos.
- No tempo do Império Romano, muitas mulheres casavam aos treze anos ou até antes.
- Logo, no passado, muitas mulheres casavam muito novas.
Irei escrever muitas vezes os argumentos concisos desta maneira, quando for importante ver exactamente como funcionam.
Quando é que premissas como estas apoiam adequadamente uma generalização?
Exige-se, claro, que os exemplos sejam fidedignos. Lembre-se da Regra 3: um argumento tem de partir de premissas seguras! Se a Julieta não tinha cerca de catorze anos, ou se a maioria das mulheres romanas ou judias não casavam aos treze anos ou antes, então o argumento é muito mais fraco; e se nenhuma destas premissas pode ser defendida, não há sequer argumento. Para verificar os exemplos de um argumento, ou para encontrar bons exemplos para os seus próprios argumentos, pode ser necessário fazer alguma investigação.
Mas suponha que os exemplos são fidedignos. Generalizar a partir deles é mesmo assim uma tarefa sujeita a muitos erros. Nesta secção, oferece-se um pequeno conjunto de regras que permitem avaliar argumentos com exemplos — quer os seus, quer os de outras pessoas.
Um caso único pode por vezes ser usado a título de exemplo. O caso da Julieta só por si pode exemplificar o casamento em idade precoce. Mas um caso único não oferece praticamente apoio algum a uma generalização. Pode ser um caso atípico, a excepção que confirma a regra. É necessário mais de um exemplo.
- As mulheres só conquistaram o direito ao voto depois de lutarem activamente.
- Logo, as mulheres só conquistam os seus direitos pela luta activa.
- As mulheres só conquistaram o direito ao voto depois de lutarem activamente.
- As mulheres só conquistaram o direito de frequentar o ensino superior depois de lutarem activamente.
- As mulheres só estão conquistando o direito à igualdade de oportunidades no emprego pela luta activa.
- Logo, as mulheres só conquistam os seus direitos pela luta activa.
Numa generalização acerca de um conjunto relativamente pequeno de coisas, o melhor argumento considera todos, ou quase todos os exemplos. Uma generalização acerca de todos os presidentes de Portugal desde a segunda guerra mundial deve considerar cada um dos presidentes. Da mesma maneira, o argumento de que as mulheres só conquistam os seus direitos pela luta activa, deve considerar todos, ou quase todos, os direitos importantes.
Generalizações acerca de conjuntos maiores de coisas exigem a escolha de uma amostra. Não podemos certamente fazer uma lista de todas as mulheres do passado que casaram novas; em vez disso, o nosso argumento tem de oferecer algumas mulheres como exemplos das restantes. Quantos exemplos são necessários depende parcialmente da sua representatividade, um ponto tratado a seguir. Depende também parcialmente da dimensão do conjunto que está a ser generalizado. Conjuntos de grandes dimensões exigem usualmente mais exemplos. A afirmação de que a sua cidade está cheia de pessoas notáveis exige mais exemplos do que, digamos, a afirmação de que os seus amigos são pessoas notáveis. Dois ou três exemplos apenas podem ser suficientes para estabelecer que os seus amigos são pessoas notáveis (depende de quantos amigos tem), mas a menos que a sua cidade seja muito, muito pequenina, são necessários mais exemplos para mostrar que a sua cidade está cheia de pessoas notáveis.
Mesmo um número elevado de exemplos podem não ser representativos do conjunto sobre o qual se está generalizando. Um número elevado de exemplos de mulheres romanas, unicamente, estabelece pouquíssimo acerca das mulheres em geral, uma vez que as mulheres romanas não são necessariamente representativas das mulheres de outras partes do mundo. O argumento precisa de considerar igualmente mulheres de outras partes do mundo.
Todos os meus vizinhos vão votar no Silveira para Presidente. Logo, o Silveira vai ganhar.
Este argumento é fraco, porque um único bairro raramente representa a totalidade da população eleitora. Um bairro próspero pode favorecer um candidato que é impopular junto da restante população. Candidatos bem-sucedidos regularmente em círculos eleitorais estudantis de cidades universitárias não conseguem ser bem-sucedidos em qualquer outro círculo. Além disso, poucas vezes temos acesso seja a que dados for, mesmo no que respeita aos pontos de vista dos nossos vizinhos. As pessoas que mais manifestam as suas posições políticas podem não ser representativas da maioria dos nossos vizinhos.
Um bom argumento a favor de“o Silveira vai ganhar as eleições” exige uma amostra representativa da totalidade da população eleitora. Não é fácil construir essa amostra. As empresas que realizam sondagens de opinião para determinar resultados eleitorais, por exemplo, constroem as suas amostras com muito cuidado. Aprenderam com os erros. Em 1936, a Literary Digest conduziu a primeira sondagem de opinião em grande escala, prevendo o resultado das eleições presidenciais americanas em que se confrontavam Roosevelt e Landon. Os nomes dos eleitores foram tirados da lista telefónica, como ainda se fazia há poucas décadas, assim como do registo de título de propriedade automóvel. O número de pessoas escolhido não era certamente pequeno: apuraram-se mais de dois milhões de intenções de voto. A sondagem previu uma vitória por uma larga margem para Landon. No entanto, Roosevelt ganhou facilmente. Retrospectivamente, é fácil ver onde está o erro. Em 1936, só uma pequena e distinta parte da população tinha telefone ou automóvel. A amostra era fortemente tendenciosa a favor dos eleitores ricos e urbanos, a maior parte dos quais apoiava Landon.4
Desde então, as sondagens melhoraram. Apesar disso, há preocupações quanto à representatividade das suas amostras, especialmente quando são muito pequenas. É certo que hoje quase toda a gente tem telefone, mas algumas pessoas têm mais de um; muitas outras têm telefones que não vêm na lista; alguns números representam muitos eleitores, e outros apenas um; algumas pessoas têm menos hipóteses de estar em casa para atender o telefone; e assim por diante. Logo, mesmo as amostras cuidadosamente seleccionadas podem não ser representativas. Muitas das melhores sondagens, por exemplo, erraram na previsão do resultado das eleições presidenciais americanas de 1980.
Logo, a representatividade de qualquer amostra é sempre de alguma forma incerta. Antecipe este perigo! Procure amostras que representem toda a população acerca da qual está a generalizar. Não faça um estudo estatístico apenas junto dos seus amigos ou vizinhos, e não aceite argumentos seja de quem for que se baseiem num estudo desses. Um estudo acerca das atitudes dos estudantes, por exemplo, não deve limitar a amostra a estudantes à saída do cinema numa sexta-feira à noite. É necessária uma amostra aleatória construída a partir dos nomes de todos os estudantes inscritos, e mesmo este método pode não produzir uma amostra inteiramente representativa, porque alguns estudantes podem estar demasiado ocupados, desinteressados, ou ofendidos, para responder.
Faça alguma investigação. A Julieta, por exemplo, é apenas uma mulher. Será representativa, mesmo em relação às mulheres do seu tempo e lugar? Use a biblioteca! Na peça de Shakespeare, por exemplo, a mãe de Julieta diz-lhe:
- Pensa agora no casamento; mais novas que tu,
- Aqui em Verona, senhoras estimadas,
- Já são mães. Pelas minhas contas,
- Fui tua mãe perto desta idade
- Que agora conheces ... (I, III, 6973)
Esta passagem sugere que o casamento da Julieta aos catorze anos não era uma excepção: de facto, com catorze anos, ela parece estar já um tanto ou quanto velha.
Ao redigir o seu próprio argumento não deve apoiar-se unicamente em exemplos que lhe vêm à cabeça. É muito provável que o tipo de exemplos que lhe surgem espontaneamente sejam tendenciosos. Uma vez mais: leia alguns livros, pense cuidadosamente em qual será a amostra apropriada, e seja honesto: descubra contra-exemplos (Regra 11).
Precisamos muitas vezes de informação de fundo antes de podermos avaliar um conjunto de exemplos.
Você devia usar os Serviços À Balda — já temos dúzias de clientes totalmente satisfeitos na sua área!
Os Serviços À Balda podem de facto ter “dezenas” de clientes “totalmente” satisfeitos na sua área — apesar de este tipo de afirmação ser muitas vezes feita sem que se disponha de dados — mas é preciso ter também em consideração o número de pessoas que experimentaram os Serviços À Balda. Se mil pessoas experimentaram os Serviços À Balda, e duas dúzias ficaram satisfeitas, então, apesar de existirem de facto “dúzias” de clientes satisfeitos, os Serviços À Balda só satisfazem 2,4 % dos seus clientes. Vá bater a outra porta.
Você devia usar os Serviços À Balda — das quarenta pessoas da sua área que nos experimentaram, mais de duas dúzias ficaram completamente satisfeitas.
Pelo menos aqui podemos começar a avaliar a estatística das “dúzias”: os Serviços À Balda parece que satisfazem mais de 50 % dos clientes. Contudo, o argumento é ainda inaceitavelmente vago (“mais de” duas dúzias, “completamente satisfeitas...”), e a representatividade das quarenta pessoas que usaram os Serviços À Balda também não é clara. Argumentos deste género exigem muitos detalhes, coisa que a publicidade raramente oferece.
Ou ainda:
A área do triângulo das Bermudas é famosa por aí terem desaparecido misteriosamente muitos navios e aviões. Só na última década houve várias dúzias de desaparecimentos.
Sem dúvida. Mas “várias dúzias” em quantos navios e aviões que passaram por aquela área? Várias dúzias, ou várias dezenas de milhar? Se só desapareceram várias dezenas de entre (digamos) vinte mil, então a taxa de desaparecimentos no triângulo das Bermudas pode muito bem ser normal, ou até baixa — em qualquer caso, nada misteriosa.
Considere a frequência com que, ao comprarmos um carro ou escolhermos uma universidade, somos influenciados pelo que nos dizem alguns amigos, ou por uma ou duas experiências que tenhamos tido. Ouvir que a cunhada de alguém passou um mau bocado com o seu Volvo é suficiente para muitos de nós não comprarmos um Volvo — apesar de as revistas de associações de consumidores poderem indicar que os Volvos são em geral carros de confiança. Deixamos que um caso vívido tenha mais peso do que o resumo e comparação cuidadosas de milhares de registos de reparação. Richard Nisbett e Lee Ross chamam a isto “argumento da pessoa que”,5 como em “conheço uma pessoa que fumava três maços de cigarros por dia e que viveu até aos cem” ou “conheço uma pessoa que tinha um Volvo que não prestava para nada”. É quase sempre uma falácia. Como afirmam Nisbett e Ross, um único carro que não presta para nada só muda muito ligeiramente a taxa de frequência das reparações.
Logo, para ajuizar acerca de uma enumeração de exemplos, temos frequentemente de considerar taxas de frequência gerais. Paralelamente, quando um argumento oferece taxas de frequência, a informação de fundo relevante tem de incluir o número de exemplos. O roubo de carros na universidade pode ter aumentado 100 %, mas se isto quer dizer que dois carros foram roubados em vez de um, não mudou muita coisa. Também este engano é frequente. Suponha que o meu salário aumenta apenas 5 % enquanto o seu aumenta 50 %. Parece uma situação injusta. Mas se o meu ordenado era de cinco mil euros e o seu de quinhentos, então eu ganho agora 5 250 euros e o leitor 750 euros, e já não é claro que eu tenha qualquer razão para me queixar.
Eis um último exemplo: um artigo argumentando que os Estados Unidos estavam por detrás de um golpe de estado no Brasil afirma o seguinte:
Depois do golpe, os investimentos estrangeiros aumentaram rapidamente [...] Quatro anos depois do golpe, o capital estrangeiro conseguira controlar o sector privado: 100 % da produção automóvel e de pneus, 90 % do cimento, 80 % da indústria farmacêutica, 60 % das fábricas de acessórios para automóveis, e mais de 50 % da produção química e de máquinas.6
Os números são impressionantes. Começam por mostrar que o investimento estrangeiro (não especificamente norte-americano, note-se) domina certos sectores da economia brasileira, apesar de não explicarem qual é a importância de qualquer destes sectores para a economia nacional no seu todo. Mas estes números são completamente inúteis para mostrar que “os investimentos estrangeiros aumentaram rapidamente”, pela simples razão de não oferecerem quaisquer números anteriores ao golpe. Sem essa informação de fundo, não há maneira de saber se o facto de 80 % da indústria farmacêutica ser controlada por capitais estrangeiros, por exemplo, representa um aumento ou um decréscimo. Tanto quanto sabemos, o investimento estrangeiro até pode ter decrescido!
Verifique as generalizações, procurando contra-exemplos.
- A guerra do Peloponeso foi provocada pelo desejo ateniense de dominar a Grécia.
- As guerras napoleónicas foram provocadas pelo desejo de Napoleão de dominar a Europa.
- A segunda guerra mundial foi provocada pelo desejo dos fascistas de dominarem a Europa.
- Logo, em geral, as guerras são provocadas pelo desejo de dominação territorial.
Serão todas as guerras, no entanto, provocadas pelo desejo de dominação territorial? Ou será talvez a generalização demasiado abrangente? O facto é que há contra-exemplos. As revoluções, por exemplo, têm causas muito diferentes. Tal como as guerras civis.
Se é capaz de pensar em contra-exemplos para uma generalização que deseja defender, reveja a generalização. Se o argumento acima fosse seu, por exemplo, poderia mudar a conclusão para “As guerras entre estados independentes são provocadas pelo desejo de dominação territorial”. Mesmo esta conclusão pode ser excessivamente generalizadora, mas é pelo menos mais defensável do que a original.
Outras vezes, pode querer disputar o suposto contra-exemplo. A primeira guerra mundial, pode alguém objectar, parece ter sido provocada não pelo desejo de dominação territorial, mas por uma rede de pactos mútuos de defesa e outras intrigas políticas, pela inquietação das classes europeias mais altas, pela agitação nacionalista na Europa de leste, etc. Face a este exemplo, é claro que o leitor pode abandonar completamente a sua tese, ou enfraquecê-la ainda mais. Outra saída, no entanto, é argumentar que o suposto contra-exemplo se conforma afinal com a generalização. Afinal (poder-se-ia argumentar), os desejos dos estados europeus de dominar a Europa foram os motivos da existência de pactos de defesa mútuos e de outras intrigas, que acabaram por dar origem à guerra. E não poderá a agitação nacionalista ser também provocada por uma dominação territorial injusta? Aqui, com efeito, tenta-se reinterpretar o contra-exemplo para passar a ser outro exemplo. A objecção inicial à sua conclusão acaba por se tornar outro dado a seu favor. Pode mudar ou não a expressão da sua conclusão; em qualquer caso, o próprio autor do argumento anterior entende agora melhor o que está afirmando, e está preparado para responder a uma objecção importante.
Tente também pensar em contra-exemplos quando está a avaliar os argumentos das outras pessoas. Pergunte se as conclusões que propõem terão de ser revistas e limitadas, ou se porventura poderão ter de ser inteiramente abandonadas, ou se um suposto contra-exemplo poderá ser reinterpretado de maneira a constituir outro exemplo. As regras que se aplicam aos seus argumentos aplicam-se também aos argumentos de qualquer pessoa. A única diferença é que nos seus argumentos o leitor pode corrigir as generalizações excessivas.
Há uma excepção à Regra 8 (“Use mais de um exemplo”). Os argumentos por analogia, em vez de multiplicar exemplos para apoiar uma generalização, partem de um caso ou exemplo específico, para provar que outro caso, porque é semelhante ao primeiro em muitos aspectos, é também semelhante noutro aspecto determinado.
O presidente americano George Bush defendeu que o papel do vice-presidente é apoiar as políticas presidenciais, concordando ou não com elas, porque “ninguém quer meter golos na sua própria baliza”.
Bush sugere que fazer parte da presidência é como fazer parte de uma equipa de futebol. Quando alguém entra para uma equipa de futebol, concorda em obedecer às decisões do técnico, porque o sucesso da equipa depende da obediência. Bush sugere que, analogamente, entrar para a administração é um compromisso de obediência às decisões do presidente, porque o sucesso da administração depende também da obediência. Distinguindo premissas e conclusão, temos o seguinte:
- Quando alguém entra para uma equipa de futebol, concorda em obedecer às decisões do técnico (porque o sucesso da equipa depende da obediência dos membros).
- A administração americana é como uma equipa de futebol (o seu sucesso depende também da obediência dos membros).
- Logo, quando alguém entra para a administração americana, concorda em obedecer às decisões do presidente.
Repare na palavra “como”, em itálico, na segunda premissa. Quando um argumento sublinha as semelhanças entre dois casos, é muito provavelmente um argumento por analogia.
Eis um exemplo mais complexo:
Ontem, em Roma, Adam Nordwell, o chefe indígena da tribo Chippewa, protagonizou uma reviravolta interessante. Ao descer do avião, proveniente da Califórnia, vestido com todo o esplendor tribal, Nordwell anunciou em nome do povo indígena americano que tomava posse da Itália “por direito de descoberta”, como Cristóvão Colombo fez quando chegou à América. “Proclamo este o dia da descoberta da Itália”, disse Nordwell. “Que direito tinha Colombo de descobrir a América quando já era habitada desde há milhares de anos? O mesmo direito tenho eu agora de vir à Itália proclamar a descoberta do vosso país”.7
Nordwell sugere que a sua “descoberta” da Itália é como a “descoberta” da América por Colombo, pelo menos num aspecto importante: tanto Nordwell como Colombo reclamaram a posse de um país que já era habitado pelo seu próprio povo há séculos. Portanto, Nordwell afirma ter tanto direito de reclamar a posse da Itália como Colombo tinha de reclamar a posse da América. Mas, é claro, Nordwell não tem o direito de reclamar a posse da Itália. Logo, Colombo não tinha o direito de reclamar a posse da América.
- Nordwell não tem o direito de reclamar a posse da Itália em nome de quem quer que seja, e ainda menos por direito de descoberta (porque a Itália é habitada pelo seu próprio povo desde há séculos).
- A pretensão de posse de Colombo em relação à América, por direito de descoberta, é como a pretensão de posse de Nordwell em relação à Itália (também a América era habitada pelo seu próprio povo desde há séculos).
- Logo, Colombo não tinha o direito de proclamar a posse da América em nome de outro povo, nem mesmo por direito de descoberta.
Como avaliamos os argumentos por analogia?
A primeira premissa de um argumento por analogia afirma algo acerca do exemplo usado como analogia. Recorde-se a Regra 3: certifique-se de que esta premissa é verdadeira. É verdadeiro que Nordwell não tem direito de reclamar a posse da Itália em nome dos indígenas Chippewa? (Sim.) É verdadeiro que quando se entra para uma equipa de futebol se concorda em obedecer às decisões do técnico? (Mais ou menos: qualquer pessoa pode querer traçar a sua própria estratégia, se o técnico procurar alcançar os objectivos errados!)
A segunda premissa em argumentos por analogia afirma que o exemplo na primeira premissa é como o exemplo acerca do qual o argumento tira uma conclusão. Avaliar esta premissa é mais difícil, e precisa de uma regra própria.
As analogias não exigem que o exemplo usado como analogia seja exactamente como o caso da conclusão. A presidência americana não é exactamente como uma equipa de futebol. A presidência é constituída por milhares de pessoas, por exemplo, enquanto uma equipa de futebol envolve trinta ou quarenta pessoas. As analogias exigem apenas semelhanças relevantes. A dimensão da equipa é irrelevante para o argumento de Bush: o argumento é acerca do que se exige no trabalho de equipa.
Uma diferença relevante entre uma equipa de futebol e a presidência americana é que num jogo de futebol tudo depende de pensar e agir rapidamente, ao passo que, normalmente, as decisões da presidência devem ser tomadas com cuidado e deliberação. Esta diferença é relevante porque, quando há tempo para deliberar, pode ser importante que o vice-presidente diga se concorda ou não com o presidente. Assim, a analogia de Bush só é bem-sucedida em parte.
Analogamente, a Itália do século XX não é exactamente como a América do século XV. A Itália é conhecida por todos os alunos da escola primária do século XX, por exemplo, ao passo que no século XV a América era desconhecida da maior parte do mundo. Nordwell não é um explorador, e um avião comercial não é o Santa Maria. Nordwell sugere, contudo, que estas diferenças não são relevantes para a analogia. Nordwell pretende simplesmente recordar que não faz sentido proclamar a posse de um país que já é habitado pelo seu próprio povo. Não interessa que essa terra seja conhecida dos alunos da escola primária do resto do mundo ou não, nem a maneira como o “descobridor” chegou lá. A reacção mais apropriada teria sido tentar estabelecer relações diplomáticas, tal como tentaríamos fazer hoje se, de alguma maneira, a Itália e o seu povo tivessem agora sido descobertos. É esse o ponto principal de Nordwell, e entendido assim, a sua analogia produz um bom argumento.
Há um argumento famoso que usa uma analogia para tentar estabelecer a existência de um criador do mundo. Podemos inferir a existência de um criador da ordem e beleza do mundo, segundo este argumento, tal como podemos inferir a existência de um arquitecto ou de um carpinteiro quando vemos uma casa bela e bem construída. Expresso na forma premissa-e-conclusão fica como se segue:
- As casas belas e bem construídas têm de ter criadores: autores e construtores inteligentes.
- O mundo é como uma casa bela e bem construída.
- Logo, o mundo tem também de ter um criador: um autor e construtor — Deus.
Uma vez mais, não são necessários mais exemplos neste argumento; o que o argumento quer sublinhar é a semelhança do mundo com um exemplo — uma casa.
Se o mundo é ou não realmente semelhante a uma casa no sentido relevante, no entanto, não é claro. Sabemos bastantes coisas acerca das causas das casas. Mas as casas fazem parte da natureza. Sabemos de facto muito pouco acerca da estrutura da natureza como um todo, ou acerca dos tipos de causas que poderá ter. David Hume discute este argumento nos Diálogos Sobre a Religião Natural, e pergunta:
Será que uma parte da natureza é uma regra para o todo? [...] Pensa [como é] enorme o passo que deste, quando comparaste casas [...] com o Universo, e da sua semelhança em algumas circunstâncias inferiste uma semelhança nas suas causas. [...] Não será que a grande desproporção afasta qualquer comparação e inferência?8
O mundo é diferente de uma casa pelo menos nisto: uma casa faz parte de um todo mais vasto, o mundo, ao passo que o próprio mundo (o Universo) é esse todo mais vasto. Por isso, Hume sugere que o Universo não é semelhante a uma casa num sentido relevante. As casas implicam realmente criadores além delas próprias, mas — tanto quanto sabemos — o Universo como um todo poderá ter a sua causa em si próprio. Esta analogia produz, portanto, um argumento fraco.
Precisamos muitas vezes de apoiar-nos noutras pessoas para descobrir e dizer-nos o que não podemos descobrir por nós próprios. Não podemos testar todos os novos produtos que surgem no mercado, por exemplo; não podemos saber em primeira mão como foi o julgamento de Sócrates; a maior parte das pessoas não podem saber se os presidiários de outros países são maltratados. Somos por isso forçados a argumentar da seguinte forma geral:
X (uma pessoa qualquer ou uma organização que sabe) diz que Y. Logo, Y é verdadeiro.
Os argumentos desta forma são argumentos de autoridade. Por exemplo:
As organizações de defesa dos direitos humanos dizem que alguns presidiários são maltratados no México. Logo, alguns presidiários são maltratados no México.
No entanto, por vezes é arriscado apoiarmo-nos noutras pessoas. Nem todos os novos produtos que surgem no mercado são bem testados, as fontes históricas são por vezes tendenciosas, tal como as organizações de defesa dos direitos humanos. Uma vez mais, temos de ter em consideração uma lista de exigências que qualquer bom argumento de autoridade tem de observar.
As asserções factuais que não sejam defendidas de outra forma podem apoiar-se fazendo referência a fontes apropriadas. É claro que algumas asserções factuais são tão óbvias que não precisam de apoio. Habitualmente, não é necessário provar que a população de Portugal é de cerca de dez milhões de pessoas, ou que Julieta amava Romeu. Todavia, se desejamos oferecer um número mais preciso para a população portuguesa, ou para a sua taxa de crescimento, precisamos de citar fontes. Similarmente, a afirmação de que a Julieta tinha apenas catorze anos deve citar algumas linhas de Shakespeare.
As citações têm dois propósitos. O primeiro é ajudar a estabelecer a verdade da premissa — lembre-se da Regra 3. Há menos hipóteses de uma pessoa ou organização ser erradamente citada se for dada a referência exacta: o autor sabe que os seus leitores podem verificar a citação. O outro propósito da citação é precisamente permitir ao leitor ou ouvinte encontrar a informação por si. As citações devem, portanto, incluir toda a informação necessária.
As organizações de defesa dos direitos humanos dizem que alguns presidiários são maltratados no México. Logo, alguns presidiários são maltratados no México.
A Amnistia Internacional revela no número de Janeiro de 1985 da Amnesty International Newsletter (volume XV, número 1, p. 6) que alguns presidiários são maltratados no México. Logo, alguns presidiários são maltratados no México.
As fontes têm de ter qualificações para fazer as afirmações que fazem. O Instituto Nacional de Estatística tem qualificações para fazer afirmações acerca da população portuguesa. Os mecânicos de automóvel têm qualificações para discutir os méritos de diferentes automóveis, os médicos têm qualificações em matérias médicas; ecologistas, biólogos e demais cientistas que estudam o nosso planeta têm qualificações acerca dos efeitos da poluição sobre o meio ambiente, e assim por diante. Estas fontes têm qualificações, porque têm a informação e as bases apropriadas.
Quando as bases ou a informação de uma autoridade não são imediatamente claras, é necessário um argumento conciso que as prove. O argumento citado na Regra 13, por exemplo, tem de ser expandido:
A Amnistia Internacional revela no número de Janeiro de 1985 da Amnesty International Newsletter (volume XV, número 1, p. 6) que alguns presidiários são maltratados no México. A Amnistia Internacional revela que ouviu falar de maus-tratos policiais a suspeitos, no estado de Sinaloa, durante vários anos, e o artigo citado mostra em detalhe o testemunho de um suspeito. Jose Antonio Nunez Villareal foi torturado pela polícia depois de ter sido preso, acusado de crimes de delito comum, e desde que foi libertado teve de ser submetido a duas grandes intervenções cirúrgicas; os médicos disseram-lhe que a sua vida esteve seriamente em risco.
Uma fonte informada não precisa de se coadunar com nosso estereótipo geral de uma autoridade — e uma pessoa que se coaduna com o nosso estereótipo de uma autoridade pode não ser uma fonte informada.
O reitor da Universidade Portugal disse a pais e jornalistas que as aulas naquela Universidade promovem uma troca de ideias viva e livre. Logo, as aulas na Universidade Portugal promovem de facto uma troca de ideias viva e livre.
O reitor de uma universidade pode saber pouquíssimo acerca do que se passa nas aulas da sua instituição.
Uma sondagem realizada ao longo dos três últimos anos a todos os alunos da Universidade Portugal, revela que só 5 % dos alunos responderam “Sim” quando interrogados sobre se as aulas naquela universidade promoviam uma troca de ideias viva e livre. Logo, as aulas na Universidade Portugal raramente promovem uma troca de ideias viva e livre.
Neste caso, os estudantes são as fontes mais bem informadas.
Além disso, as autoridades num assunto não estão necessariamente informadas acerca de todos os assuntos acerca dos quais oferecem uma opinião.
Einstein era um pacifista; logo, o pacifismo tem de ser uma posição correcta.
O génio de Einstein em física não o estabelece como génio em filosofia política.
É claro que por vezes temos de apoiar-nos em autoridades cujo conhecimento é melhor do que o nosso, mas que está ainda longe de ser perfeito. Os países que maltratam os presidiários, por exemplo, tentam usualmente escondê-lo; por isso, as organizações como a Amnistia Internacional têm por vezes de se apoiar em informações fragmentárias. Se tiver de se apoiar numa autoridade com informação incompleta, mas ainda assim com melhor informação do que a sua, admita o problema. Muitas vezes, a informação incompleta é melhor do que nenhuma.
Finalmente, tenha cuidado com supostas autoridades que afirmam saber o que não têm a possibilidade de saber. Se um livro afirma ter sido “escrito como se o autor fosse uma mosca na parede da mais bem guardada sala do Pentágono”,9 pode razoavelmente adivinhar que se trata de um livro cheio de conjecturas, boatos, rumores, e outras informações sem qualquer crédito (a não ser, é claro, que o autor fosse de facto uma mosca na parede da mais bem guardada sala do Pentágono). Muitos moralistas religiosos têm igualmente declarado amiúde que certas práticas são imorais, porque são contrárias à vontade de Deus. Devemos responder que Deus devia ser invocado com um pouco mais de cautela. Não é fácil estabelecer qual é a sua vontade, e, falando Deus tão baixinho, é fácil confundi-la com os nossos próprios preconceitos.
As pessoas que têm algo a ganhar ou a perder num assunto em disputa não são habitualmente as melhores fontes de informação acerca desses assuntos. Por vezes, podem nem sequer dizer a verdade. Uma pessoa acusada num julgamento é considerada inocente até se provar que é culpada, mas raramente acreditamos completamente na sua declaração de inocência sem alguma confirmação de testemunhas imparciais. Mas mesmo a vontade de dizer sinceramente o que acreditamos ser verdadeiro não é sempre suficiente. Aquilo que alguém acredita honestamente ser a verdade pode também ser tendencioso. Temos tendência para ver o que temos a expectativa de ver; reparamos, recordamos e fazemos circular informações que apoiam o nosso ponto de vista, mas não temos essa mesma vontade quando os dados apontam noutra direcção.
Não se apoie, pois, no primeiro-ministro se o assunto em discussão é a eficiência das políticas do governo. Não se apoie no governo para obter a melhor informação acerca da situação dos direitos humanos em países que são apoiados ou combatidos por esse governo. Não se apoie em qualquer dos grupos de interesse (a favor ou contra) numa questão pública para obter a informação mais precisa acerca do que está em causa. Não se apoie no fabricante de um produto para obter a melhor informação acerca desse produto.
A Epson afirma que a sua impressora de agulhas FX80 imprime à velocidade de 160 caracteres por segundo. Logo, a impressora de agulhas Epson FX80 imprime realmente à velocidade de 160 caracteres por segundo.
As fontes devem ser imparciais. A melhor informação sobre os produtos de consumo vêm de revistas de consumidores e associações de consumidores, porque estas associações não pertencem a qualquer fabricante e têm de responder perante consumidores que desejam a informação mais precisa possível.
A revista Consumer Reports testou a impressora de agulhas Epson FX80 e concluiu que imprime à velocidade de 19 caracteres por segundo. Logo, a impressora de agulhas Epson FX80 imprime à velocidade de 19 caracteres por segundo.10
Os mecânicos e os serviços de reparações independentes são fontes de informação relativamente independentes. A Amnistia Internacional é uma fonte imparcial sobre a situação dos direitos humanos noutros países, porque não está a tentar apoiar ou combater qualquer governo específico. Em questões políticas, quando a disputa é basicamente sobre estatísticas, apoie-se em agências governamentais independentes (se houver), ou em estudos universitários ou noutras fontes independentes. Para estatísticas sobre o desemprego, por exemplo, apoie-se em organismos independentes, e não em agências controladas directa ou indirectamente pelo governo.
Assegure-se de que a fonte é genuinamente independente, e não apenas um grupo de interesses que se disfarça com um nome que soa a independente. Verifique as fontes de financiamento dessas entidades; verifique que outros trabalhos publicam; verifique o tom do relatório ou livro citado. Pelo menos, tente confirmar por si alguma afirmação factual citada de uma fonte potencialmente tendenciosa. Os bons argumentos citam as suas fontes (Regra 13); verifique-as. Certifique-se de que os dados são citados correctamente e não descontextualizados, e verifique se existem outras informações relevantes. Estas fontes podem ser citadas por si.
Quando os especialistas discordam, não pode apoiar-se neles. Antes de citar qualquer pessoa ou organização como autoridade, deve verificar se outras pessoas ou organizações igualmente imparciais e qualificadas concordam. O que faz a credibilidade dos relatórios da Amnistia Internacional, por exemplo, é o facto de serem usualmente corroborados por outras organizações independentes de defesa dos direitos humanos. (Claro que estes relatórios entram muitas vezes em conflito com relatórios governamentais, mas os governos raramente são imparciais.)
As autoridades concordam principalmente em questões factuais específicas. Se um presidiário foi ou não torturado é uma questão factual específica, e é muitas vezes possível verificá-lo. Mas conforme os temas se vão tornando mais complexos e menos tangíveis, torna-se difícil encontrar autoridades que concordem entre si. Em muitas questões filosóficas é difícil citar quem quer que seja como um especialista incontestado. Aristóteles discordou de Platão, Hegel discordou de Kant. Pode usar os argumentos dos filósofos, mas nenhum outro filósofo ficará convencido caso se limite a citar as suas conclusões.
As autoridades podem ser desqualificadas se não forem informadas, imparciais, ou se não estiverem de acordo. Outros tipos de ataques às autoridades não são legítimos. Ludwig von Mises descreve uma série de ataques ilegítimos ao economista Ricardo:
Aos olhos dos marxistas, a teoria ricardiana é espúria porque Ricardo era burguês. Os racistas alemães condenaram a mesma teoria, porque Ricardo era judeu, e os nacionalistas alemães, porque era inglês. [...] Alguns professores alemães usaram conjuntamente os três argumentos contra o valor das doutrinas de Ricardo.11
Esta é a falácia ad hominem: atacar a pessoa de uma autoridade, em vez de atacar as suas qualificações. A classe social de Ricardo, a sua religião e nacionalidade são irrelevantes para a possível verdade das suas teorias. Para o desqualificar como autoridade, esses professores alemães teriam de mostrar que os dados de que Ricardo dispunha eram incompletos isto é, teriam de mostrar que os seus juízos não estavam estavam bem informados, ou que Ricardo não era imparcial, ou que outros economistas igualmente reputados discordavam das suas descobertas. De outra maneira, os ataques pessoais só desqualificam quem ataca!
Por vezes, tentamos explicar por que razão acontece qualquer coisa argumentando acerca da sua causa. Suponha, por exemplo, que se sente intrigado com o facto de alguns dos seus amigos terem mais abertura de espírito do que outros. Ao falar com eles, descobre que a maior parte dos que têm mais abertura de espírito são igualmente os que mais lêem — estão a par dos jornais, lêem livros, etc. — enquanto a maior parte dos que têm menos abertura de espírito não costumam ler. Por outras palavras, descobre que há uma correlação entre ter abertura de espírito e ser um leitor habitual. Logo, porque ser um leitor habitual parece estar correlacionado com uma maior abertura de espírito, poderá concluir que a leitura conduz à abertura de espírito.
Os argumentos que partem de correlações e chegam a causas são largamente usados nas ciências médicas e sociais. Para saber se comer pequenos-almoços completos faz bem à saúde, os médicos podem fazer um estudo para saber se as pessoas que habitualmente comem pequenos-almoços completos vivem mais tempo do que as pessoas que habitualmente não o fazem. Para saber se a leitura tende realmente a tornar as pessoas mais tolerantes, um psicólogo pode projectar um teste para a tolerância, conjuntamente com um levantamento de hábitos de leitura, fazer depois os testes a uma amostra representativa da população, e verificar por fim se uma proporção mais elevada dos leitores habituais são mais tolerantes.
Testes formais como estes entram habitualmente nos nossos argumentos como argumentos de autoridade: apoiamo-nos na autoridade das pessoas que fizeram os testes, baseados nas suas credenciais e nos seus colegas de profissão, para assegurar que são fontes informadas e imparciais. Contudo, temos a obrigação de ler e referir os seus estudos com cuidado, assim como de tentar avaliá-los o melhor que soubermos.
Os exemplos dos nossos próprios argumentos acerca de causas não são habitualmente seleccionados de forma tão cuidadosa. Podemos argumentar a partir de alguns casos particularmente significativos da nossa própria experiência, ou a partir do conhecimento que temos dos nossos amigos ou da história. Estes argumentos são muitas vezes especulativos — mas o mesmo acontece com os seus primos mais formais, que vêm dos médicos e dos psicólogos. Por vezes, é muito difícil saber o que causa o quê. Esta secção oferece várias questões que devem ser colocadas a quaisquer argumentos causais, seguidas de um conjunto de advertências acerca das ciladas que surgem quando se passa da correlação para a causa.
Quando pensamos que A causa B, pensamos habitualmente não apenas que A e B estão correlacionados, mas também que faz sentido que A cause B. Logo, os bons argumentos não apelam unicamente para a correlação entre A e B; explicam também por que razão faz sentido que A cause B.
A maior parte dos meus amigos que têm mais abertura de espírito costumam ler; a maior parte dos meus amigos que têm menos abertura de espírito não costumam ler. Logo, a leitura parece conduzir à abertura de espírito.
A maior parte dos meus amigos que têm mais abertura de espírito costumam ler; a maior parte dos meus amigos que têm menos abertura de espírito não costumam ler. Parece que quanto mais se lê, mais se encontram ideias novas e estimulantes, ideias que nos fazem ter menos confiança nas nossas próprias ideias. Além disso, a leitura tira-nos do mundo quotidiano e mostra-nos o quanto a vida pode ser diferente e multifacetada. Logo, a leitura parece levar à abertura de espírito.
Este argumento podia ser mais específico, mas estabelece algumas conexões importantes entre causa e efeito.
Os argumentos mais formais e estatísticos acerca de causas — em medicina, por exemplo — têm também de estabelecer conexões entre as causas e os efeitos que supostamente ocorrem. A investigação dos médicos não acaba com a apresentação dos dados que se limitam a demonstrar que comer pequenos-almoços completos está correlacionado com uma saúde melhor; querem igualmente saber por que razão comer pequenos-almoços completos resulta numa saúde melhor.
Os médicos N. B. Belloc e L. Breslow, respectivamente do Laboratório de População Humana do Departamento de Saúde Pública da Califórnia e do Departamento de Medicina Social e Preventiva da Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA), acompanharam sete mil adultos durante cinco anos e meio, relacionando a saúde e a esperança de vida com determinados hábitos alimentares. Descobriram que comer pequenos-almoços completos está correlacionado com uma maior esperança de vida. (Veja-se Belloc e Breslow, “The Relation of Physical Health Status and Health Practices”, Preventive Medicine, volume 1 (Agosto de 1972), pp. 409–421). Parece provável que as pessoas que comem pequenos-almoços completos obtenham uma maior quantidade dos nutrientes necessários do que as pessoas que não tomam pequeno-almoço ou que durante a manhã só ingerem café e pequenos nadas. É também natural que o corpo metabolize melhor as refeições ao longo do dia se começar por digerir uma boa refeição pela manhã. Logo, parece que comer pequenos-almoços completos conduz a uma saúde melhor.
Repare-se que este argumento não só explica como a causa pode conduzir ao efeito, como cita igualmente a fonte e explica por que razão essa fonte é informada.
A maior parte das coisas que acontecem têm muitas causas possíveis. Logo, encontrar apenas uma causa possível não é suficiente; é preciso mostrar que é a causa mais provável. É com certeza possível que o Triângulo das Bermudas seja realmente habitado por seres sobrenaturais que protegem o seu domínio da interferência humana. É possível. Mas a explicação sobrenatural é pouquíssimo razoável, em comparação com as outras explicações prováveis para o desaparecimento de navios e aviões: tempestades tropicais, ventos e vagas imprevisíveis, etc. (Isto se há sequer realmente algo de anormal no Triângulo das Bermudas: lembre-se da Regra 10.) Só se estas explicações habituais não conseguirem dar conta dos factos é que devemos começar a considerar hipóteses alternativas.
Do mesmo modo, é com certeza possível que as pessoas ganhem abertura de espírito, ou que no mínimo se tornem menos intolerantes, só por estarem cansadas de discutir. Talvez desejem que “cesse a longa disputa”, como afirmou Matthew Arnold. É possível. Mas também sabemos que não há muitas pessoas assim. A maior parte das pessoas que têm opiniões dogmáticas mantêm-nas; custa-lhes deixar que as outras pessoas andem perdidas. Logo, parece mais razoável pensar que as pessoas que se tornaram tolerantes ganharam verdadeiramente abertura de espírito, e a leitura continua a ser uma causa razoável.
Como sabemos quais são as explicações mais prováveis? Uma regra de ouro é preferir explicações compatíveis com as nossas crenças mais bem fundamentadas. As ciências naturais estão bem fundamentadas, tal como a nossa compreensão corrente acerca de como as pessoas são em termos gerais. É claro que, por vezes, a explicação mais razoável pode, no entanto, estar errada, mas temos de começar com as hipóteses mais prováveis.
Por vezes, são necessários alguns dados adicionais antes de se poder aceitar com muita confiança qualquer explicação. É necessário procurar mais dados a favor de uma ou de outra explicação, quando várias explicações naturais alternativas concordam com os dados já disponíveis. As Regras 20–23, apesar de não serem exaustivas, apresentam alguns dos tipos mais comuns de explicações alternativas.
Alguns acontecimentos aparentemente correlacionados são apenas coincidências.
Dez minutos depois de ter tomado os comprimidos contra a insónia do Doutor Amoníaco, já estava profundamente adormecido. Logo, os comprimidos contra a insónia do Doutor Amoníaco provocaram-me o sono.
O que se pretende aqui explicar é o facto de ter caído no sono. Porque ter caído no sono está aparentemente correlacionado com a ingestão dos comprimidos contra a insónia do Doutor Amoníaco, o argumento conclui que os comprimidos foram a causa de ter caído no sono. No entanto, apesar de os comprimidos poderem ter provocado o sono, posso ter adormecido devido a outras causas. Talvez o facto de ter caído rapidamente no sono nada tenha a ver com os comprimidos. Talvez estivesse muito cansado, e tivesse tomado os comprimidos pouco antes de ter adormecido devido ao cansaço.
Para estabelecer que os comprimidos provocam o sono seria necessário fazer uma experiência, com um grupo de pessoas que toma os comprimidos, e um grupo de controlo que não os toma. Se a maioria das pessoas que os tomarem adormecerem mais depressa do que as pessoas do grupo de controlo, então pode ser que os comprimidos do Doutor Amoníaco tenham afinal algum valor médico. Mas uma mera correlação aparente, por si mesma, não estabelece uma relação de causa e efeito. Durante anos, as bainhas das saias das mulheres subiam e desciam ao sabor das subidas e descidas do índice industrial Dow Jones, mas quem pensa que qualquer um destes factos causa o outro? O mundo está simplesmente cheio de coincidências.
Alguns acontecimentos correlacionados não são relações de causa e efeito; são dois efeitos de outra causa. É muito possível, por exemplo, que ler muito e ter abertura de espírito sejam ambos efeitos de um terceiro factor: frequentar a universidade, por exemplo. Logo, ler muito pode não conduzir por si à abertura de espírito: pode ser que, em vez disso, frequentar a universidade conduza à abertura de espírito (talvez porque expõe as pessoas a muitos pontos de vista diferentes), e ajude simultaneamente a adquirir o gosto pela leitura. Pode ser necessário analisar uma vez mais os seus amigos: descubra quais dos seus amigos frequentaram a universidade!
A televisão está a arruinar a moral. Os programas televisivos retratam a violência, a insensibilidade e a depravação — e veja como vai o mundo!
A sugestão neste argumento é que a imoralidade na televisão provoca a imoralidade na vida real. Contudo, é pelo menos igualmente provável que a imoralidade televisiva e a imoralidade da vida real tenham ambas, ao invés, causas comuns mais básicas, como o abandono de sistemas de valores tradicionais, a ausência de passatempos construtivos, etc. De novo:
Ao longo dos últimos vinte anos, as crianças viram cada vez mais televisão. Durante o mesmo período, as classificações das provas de admissão às faculdades desceram cada vez mais. Ver televisão parece arruinar o nosso espírito.
A sugestão é que ver televisão provoca classificações mais baixas nos testes. Seria útil, para começar, que o argumento explicasse exactamente como a alegada causa — ver televisão — conduz a este efeito (Regra 18). Em qualquer caso, outras explicações parecem pelo menos igualmente boas. Talvez outra coisa muito diferente seja a causa das classificações cada vez mais baixas nos testes — uma quebra na qualidade do ensino, por exemplo — o que sugere que os dois acontecimentos aparentemente correlacionados não estão de facto relacionados (Regra 20). Por outro lado, é possível que ver televisão e obter notas baixas nos testes sejam ambos efeitos de qualquer outra causa comum. Talvez, por exemplo, a ausência de passatempos mais estimulantes seja uma vez mais o problema.
Os meus pais dizem-me que quando eu era criança pensava que a causa dos incêndios eram os bombeiros. Afinal, havia bombeiros em todos os incêndios que eu via. Era uma associação natural. Só mais tarde descobri que são os incêndios que “causam” os bombeiros, e não o contrário.
Logo, a correlação não estabelece a direcção da causalidade. Se A está correlacionado com B, A pode ser uma causa B — mas B também pode ser uma causa de A. A mesma correlação que sugere que a televisão está arruinando a nossa moral, por exemplo, pode igualmente sugerir que é a nossa moral que está arruinando a televisão. Logo, em geral, é preciso investigar outro tipo de explicação alternativa.
Este problema afecta mesmo os estudos mais avançados de correlações. Os psicólogos podem conceber um teste para averiguar o grau de abertura de espírito, juntamente com um levantamento dos hábitos de leitura, submeter ao teste uma amostra representativa da população, e verificar depois se uma proporção inusitadamente elevada dos leitores habituais têm abertura de espírito. Suponha que há de facto uma correlação. Continua a não se concluir daqui que a leitura conduz à abertura de espírito. Pode ser a abertura de espírito, ao invés, a conduzir à leitura! Afinal, é à partida mais natural que as pessoas que têm abertura de espírito procurem ler livros e jornais. É por este motivo, entre outros, que é importante explicar as conexões entre causa e efeito. Se o leitor consegue estabelecer conexões prováveis de A para B, mas não de B para A, então é natural que A conduza a B mas não vice-versa. Mas se B pode conduzir a A tão provavelmente quanto A conduz a B, então o leitor não pode dizer em que direcção ocorre a relação causal — talvez até ocorra nas duas.
Por vezes, defende-se que as estradas com passadeiras para peões são mais perigosas do que as estradas sem elas, porque as passadeiras parecem estar correlacionadas com um número maior, e não menor, de acidentes. A conclusão que muitas vezes se sugere é que as próprias passadeiras provocam acidentes, talvez porque criam nos peões uma falsa sensação de segurança. No entanto, se recordarmos a Regra 22, devemos também considerar a possibilidade de a conexão causal ser no outro sentido. Talvez, de certa maneira, os acidentes provoquem as passadeiras. Afinal, as passadeiras não surgem num determinado local arbitrariamente: tendem a ser colocadas em locais onde os acidentes acontecem frequentemente. Mas as passadeiras não resolvem necessariamente o problema. Os locais perigosos podem ficar menos perigosos, mas não ficam subitamente seguros.
Além disso, quando uma passadeira é instalada, é natural que ainda mais pessoas passem a usá-la. É por isso de esperar que o número de pessoas envolvidas em acidentes nesses locais aumente, em vez de diminuir, apesar de a taxa de acidentes decrescer.
Esta é claramente uma questão complexa. Um sentimento falso de segurança pode perfeitamente ter algum papel, especialmente se a taxa de acidentes não decresceu tanto quanto poderíamos esperar. Mas é preciso não esquecer, ao mesmo tempo, que as passadeiras são habitualmente colocadas em locais onde os acidentes tendem a acontecer. Uma vez mais, é preciso não esquecer que as causas não têm de ser “ou uma coisa ou outra”: por vezes a resposta é “ambas”.
Muitas conexões causais são complexas. Mais uma vez, talvez a leitura o faça ter mais abertura de espírito, mas é também certamente verdadeiro, como se chama a atenção na Regra 22, que a abertura de espírito leva algumas pessoas a ler mais. Talvez os pequenos-almoços completos sejam saudáveis, mas talvez as pessoas saudáveis tendam a comer pequenos-almoços completos. Não tire uma conclusão excessivamente forte. Raras vezes conseguimos identificar a causa única. Os argumentos causais são importantes, porque muitas vezes já é proveitoso encontrar uma causa. Saber apenas que tomar pequenos-almoços completos está correlacionado com uma saúde melhor, e que provavelmente leva a uma saúde melhor, pode ser uma razão suficiente para começar a tomar pequenos-almoços melhores.
Todos os argumentos que temos até agora considerado têm um certo grau de incerteza, de uma maneira ou de outra. Exemplos novos podem sempre refutar um argumento com exemplos, e mesmo uma fonte informada e imparcial pode estar errada. No entanto, nos argumentos dedutivos bem formados, a verdade das premissas garante a verdade das conclusões.
- Se não há factores de sorte no xadrez, então o xadrez depende unicamente da habilidade dos jogadores.
- Não há factores de sorte no xadrez.
- Logo, o xadrez depende unicamente da habilidade dos jogadores.
Se estas duas premissas forem verdadeiras, então tem também de ser verdadeiro que o xadrez depende unicamente da habilidade dos jogadores. Para discordar da conclusão, o leitor teria que discordar também de pelo menos uma das premissas.
Os argumentos dedutivos oferecem, pois, a certeza — mas só se as premissas forem indubitáveis. Uma vez que as premissas dos nossos argumentos raramente são de facto indubitáveis, as conclusões dos argumentos dedutivos têm ainda assim de ser tomados com algumas reservas (por vezes muitas!). No entanto, quando se consegue encontrar premissas fortes, as formas dedutivas são muito úteis. Lembre-se da Regra 3: tente começar com premissas de confiança.
Mesmo que as premissas sejam dubitáveis, as formas dedutivas oferecem uma maneira eficaz de organizar um argumento, especialmente num ensaio argumentativo. Esta secção apresenta seis formas dedutivas comuns, com exemplos simples. As secções 7–9 voltarão a tratar do seu uso em ensaios argumentativos.
Chama-se válidos aos argumentos dedutivos bem formados. Usando as letras p e q para representar frases, uma das formas dedutivas mais simples é a seguinte:
- Se [frase p], então [frase q].
- [Frase p].
- Logo, [frase q].
Ou, mais sucintamente:
- Se p, então q.
- p.
- Logo, q.
Esta forma chama-se modus ponens (“modo de pôr”: ponha p, fique com q). Fazendo p representar “Não há factores de sorte no xadrez” e q “O xadrez depende unicamente da habilidade dos jogadores”, o nosso exemplo introdutório é um caso de modus ponens. Verifique-o.
Muitas vezes, um argumento desta forma é tão óbvio que não precisa de ser formulado como um modus ponens oficial:
Uma vez que os optimistas têm mais hipóteses de ser bem-sucedidos do que os pessimistas, devias ser optimista.
Este argumento pode escrever-se como se segue:
- Se os optimistas têm mais hipóteses de ser bem-sucedidos do que os pessimistas, devias ser optimista.
- Os optimistas têm mais hipóteses de ser bem-sucedidos do que os pessimistas.
- Logo, devias ser optimista.
No entanto, o argumento é perfeitamente claro sem o pôr nesta forma. Outras vezes, no entanto, escrever o modus ponens é útil:
- Se há milhões de planetas habitáveis na nossa galáxia, parece natural que a vida se tenha desenvolvido em mais de um planeta.
- Há milhões de planetas habitáveis na nossa galáxia.
- Logo, parece natural que a vida tenha evoluído em mais de um planeta.
Para desenvolver este argumento, o leitor tem de defender e explicar as duas premissas, e estas exigem argumentos bastante diferentes (porquê?). É útil formulá-los clara e separadamente desde o início.
Uma segunda forma válida é o modus tollens (“o modo de tirar”: tire q, tire p):
- Se p, então q.
- Não-q.
- Logo, não-p.
Neste caso, “não-q” representa a negação de q, ou seja, da frase “Não é verdadeiro que q”; o mesmo acontece, respectivamente, com “não-p”.
Retomemos o argumento de Sherlock Holmes já discutido:
Estava um cão no estábulo, e no entanto, não ladrou, apesar de ter lá estado alguém e de ter levado um cavalo, [...] É óbvio que o visitante era alguém que o cão conhecia bem [...]
O argumento de Holmes é um modus tollens:
- Se o cão não conhecesse bem o visitante, teria ladrado.
- O cão não ladrou.
- Logo, o cão conhecia bem o visitante.
Para escrever este argumento em símbolos, use-se c para “O cão não conhecia bem o visitante” e l para “O cão ladrou”:
- Se c, então l.
- Não-l.
- Logo, não-c.
“Não-l” representa “O cão não ladrou”, e “não-c” representa “Não é verdadeiro que o cão não conhecia bem o visitante”, ou seja, “O cão conhecia bem o visitante”.12
O astrónomo Fred Hoyle usa um modus tollens interessante. Parafraseando um pouco, é o seguinte:
Se o Universo fosse infinitamente velho, não haveria já hidrogénio, uma vez que o hidrogénio se transforma em hélio em todo o Universo de forma constante, e esta transformação é um processo irreversível. Mas, de facto, o Universo consiste quase inteiramente em hidrogénio. Logo, o Universo teve de ter um começo determinado.
Colocando o argumento de Hoyle em símbolos, use-se i para “O Universo é infinitamente velho” e h para “Não há hidrogénio no Universo”:
- Se i, então h.
- Não-h.
- Logo, não-i.
“Não-h” representa “Não é verdadeiro que não resta hidrogénio no universo” (ou: “O universo tem hidrogénio”); “não-i” quer dizer “Não é verdadeiro que o universo é infinitamente velho”. Hoyle reformula a conclusão: porque o Universo não é infinitamente velho, teve de haver um ponto determinado no qual começou.
Uma terceira forma válida é o silogismo hipotético:
- Se p, então q.
- Se q, então r.
- Logo, se p, então r.
Por exemplo:
- Se estudarmos outras culturas, dar-nos-emos conta da existência de uma enorme diversidade de costumes humanos.
- Se nos dermos conta da existência de uma enorme diversidade de costumes humanos, colocaremos em questão os nossos próprios costumes.
- Logo, se estudarmos outras culturas, colocaremos em questão os nossos próprios costumes.
Usando as letras destacadas para simbolizar as frases que compõem esta afirmação, temos:
- Se e, então d.
- Se d, então q.
- Logo, se e, então q.
O silogismo hipotético é válido para qualquer número de premissas, desde que cada uma tenha a forma “Se p, então q” e o q de uma premissa se torne o p da próxima. Na Regra 5, por exemplo, considerámos um argumento com as duas premissas anteriores, mas também com uma terceira:
Se colocarmos em questão os nossos próprios costumes, tornar-nos-emos mais tolerantes.
Desta premissa e das duas anteriores, usando a regra do silogismo hipotético, pode-se concluir validamente “Se e, então t”.
Note-se que este silogismo hipotético oferece um bom modelo para explicar as conexões entre causa e efeito (Regra 18). A conclusão liga uma causa a um efeito, enquanto as premissas explicam os vários estádios entre a causa e o efeito.
Uma quarta forma válida é o silogismo disjuntivo:
- p ou q.
- Não-p.
- Logo, q.
Considere-se, por exemplo, o argumento de Bertrand Russell discutido na Regra 2:
- Ou temos esperança no progresso por meio do aperfeiçoamento da moral, ou temos esperança no progresso por meio do aperfeiçoamento da inteligência.
- Não podemos ter esperança no aperfeiçoamento da moral.
- Logo, temos de ter esperança no progresso por meio do aperfeiçoamento da inteligência.
Usando mais uma vez as letras destacadas como símbolos, este argumento fica:
- m ou i.
- Não-m.
- Logo, i.
Em português a palavra “ou” pode ter dois sentidos. No seu sentido exclusivo, a palavra “ou” na frase “a ou b” quer dizer que ou a ou b é verdadeira, mas não ambas. No seu sentido inclusivo, “a ou b” quer dizer que ou a ou b é verdadeira, e as duas frases são possivelmente verdadeiras. Os silogismos disjuntivos são válidos independentemente do sentido de “ou” usado. Mas no sentido exclusivo de “ou”, podemos também argumentar como se segue:
- p ou q.
- p.
- Logo, não-q.
Uma vez mais, esta forma só é válida com o sentido exclusivo de “ou”. Suponha o leitor, por exemplo, que alguém argumenta como se segue:
Só o Pedro ou o João poderiam ter cometido tão terrível acção. O João fê-lo; logo, o Pedro não o fez.
A inocência de Pedro depende do que quer dizer a palavra “ou” na primeira frase. Se a terrível acção for algo que só uma pessoa pudesse ter feito, então a palavra “ou” é exclusiva e o argumento é válido. No entanto, se a terrível acção podia ter sido uma produção conjunta, então o “ou” é inclusivo, e a culpa do João não prova a inocência do Pedro.
Uma quinta forma válida é o dilema:
- p ou q.
- Se p, então r.
- Se q, então s.
- Logo, r ou s.
Eis um exemplo de Edmund Burke:
Há um dilema ao qual, pela própria natureza das coisas, está sujeita toda a oposição à iniquidade bem-sucedida. Se nos mantivermos em silêncio, seremos tidos como cúmplices das medidas a que aquiescemos em silêncio. Se resistirmos, seremos acusados de provocar o poder irritável, incitando-o a novos excessos. A conduta de quem foi vencido nunca parece correcta […].
Traduzamos o argumento em termos um pouco mais claros e mais constantes, ao mesmo tempo que o colocamos na forma do dilema. Usemos o para representar “Opomo-nos a uma iniquidade bem-sucedida”; c para representar “Somos considerados cúmplices; e p para “Somos acusados de provocar o poder irritável”. Em símbolos, pode-se formular o argumento da seguinte maneira:
- o ou não-o.
- Se o, então p.
- Se não-o então c.
- Logo, p ou c.
Repare-se que não precisámos de um símbolo separado para a frase “Nada fazemos”: traduzimo-la por “não-o”. Repare-se também que as premissas foram parcialmente reorganizadas, e que tornámos a primeira mais explícita, para se coadunar à forma do dilema.
Burke conclui que “A conduta de quem foi vencido nunca parece correcta”. De certa forma, isto é apenas uma reformulação da conclusão que simbolizámos como “p ou c”. No entanto, podíamos tornar esta conclusão mais explícita, formulando outro argumento em forma de dilema, começando com a conclusão do último:
- Ou somos acusados de provocar o poder irritável ou seremos considerados cúmplices.
- Se formos acusados de provocar o poder irritável, a nossa conduta parece incorrecta.
- Se formos considerados cúmplices, a nossa conduta parece incorrecta.
- Logo, a nossa conduta parece sempre incorrecta.
Em símbolos:
- Ou p ou c.
- Se p, então i.
- Se c, então i.
- Logo, i.
Rigorosamente, a conclusão é “i ou i”, mas não é realmente necessário dizê-lo duas vezes.
Há uma estratégia dedutiva tradicional que merece uma referência especial, apesar de, estritamente falando, ser apenas uma versão do modus tollens. É a reductio ad absurdum, ou seja, a redução ao absurdo:
- Pretende-se provar que p.
- Supõe-se que não-p (isto é, que p é falsa).
- Da suposição conclui-se que q.
- Mostra-se que q é falsa (contraditória, pateta, “absurda”).
- Conclui-se que p.
Assim, os argumentos por reductio, como são muitas vezes chamados, estabelecem as suas conclusões mostrando que a negação da conclusão conduz ao absurdo. Nada mais resta fazer, sugere o argumento, senão aceitar a conclusão.
Recorde-se, por exemplo, o argumento a favor da existência de um criador que discutimos na Regra 12. As casas têm criadores, afirma o argumento, e o mundo é como uma casa — também o mundo tem ordem e é belo. Assim, sugere a analogia, também o mundo tem de ter um criador. Na Regra 12 citou-se David Hume para mostrar que o mundo não é suficientemente semelhante a uma casa, de forma relevante, para que esta analogia seja bem-sucedida. Na Parte V dos Diálogos, Hume sugere também uma reductio ad absurdum da analogia. Parafraseando, é a seguinte:
Supõe que o mundo tem um criador, tal como uma casa tem um criador. Acontece que quando as casas não são perfeitas, sabemos quem devemos culpar: os carpinteiros e os pedreiros que a criaram. Mas o mundo não é também totalmente perfeito. Logo, parece concluir-se daqui que o criador do mundo, Deus, também não é perfeito. Mas tu consideras que esta conclusão é absurda. Contudo, a única maneira de evitar este absurdo, é rejeitar a suposição que a ela conduz. Logo, o mundo não tem um criador.
Formulado na forma da reductio, temos o seguinte:
- A provar: O mundo não tem um criador.
- Supõe-se que o mundo tem um criador, tal como uma casa tem um criador.
- Da suposição conclui-se que Deus é imperfeito (porque o mundo é imperfeito).
- Mas Deus não pode ser imperfeito.
- Logo, o mundo não tem um criador.13
É claro que nem todas as pessoas achariam absurda a ideia de um Deus imperfeito, mas Hume sabia que os cristãos com quem estava discutindo não aceitariam essa ideia.
Muitas formas válidas são combinações das formas simples introduzidas nas Regras 24–29. A título de exemplo, vejamos como Sherlock Holmes faz uma dedução simples, para edificação do Doutor Watson, enquanto tece comentários acerca dos papéis relativos da observação e da dedução. Holmes comentou casualmente o facto de Watson ter ido nessa manhã a um certo posto de Correios, e de ter além disso enviado um telegrama enquanto lá esteve. “Correcto!”, responde Watson, espantado, “tem razão nos dois pontos! Mas confesso que não vejo como chegou aí”. Holmes explica-se:
Não podia ser mais simples [...] A observação diz-me que tem um pouco de terra avermelhada nos sapatos. Mesmo à frente do posto de Correios da Rua Wigmore, o pavimento foi levantado e alguma terra foi para aí lançada, estando de tal forma disposta que é difícil evitar pisá-la quando se entra. A terra tem este tom avermelhado peculiar, que, tanto quanto sei, não se encontra noutras partes do bairro. Tudo isto é observação. O resto é dedução.
[Watson]: Então como é que deduziu o telegrama?
[Holmes]: Bem, é claro que eu sabia que não tinha escrito carta alguma, uma vez que estive sentado à sua frente toda a manhã. Vejo além disso que tem selos e postais na sua secretária. Logo, por que razão iria ao posto de Correios, se não para enviar um telegrama? Elimine todos os outros factores, e o que restar terá de ser a verdade.14
Exprimindo a dedução de Holmes com premissas mais explícitas, temos:
Precisamos agora de dividir o argumento numa série de argumentos válidos segundo as formas simples apresentadas nas Regras 24–29. Podemos começar com um silogismo hipotético:
(Usarei A, B, etc. no lugar de conclusões de argumentos simples, que por sua vez poderão ser usados como premissas para tirar outras conclusões.) Com A e 1 podemos usar agora o modus ponens:
Duas destas três possibilidades podem agora ser afastadas, ambas por modus tollens:
E:
Finalmente, temos o seguinte:
Esta última inferência é um silogismo disjuntivo expandido. “Elimine todos os outros factores, e o que restar terá de ser a verdade”.
Passamos agora das regras para escrever argumentos concisos para as regras que dizem respeito à redacção de argumentos mais longos: de argumentos em parágrafos para argumentos em ensaios. Um ensaio argumentativo é muitas vezes uma elaboração de um argumento conciso, ou de uma série de argumentos concisos ligados por um plano mais vasto. Mas o processo de pensar e planear um ensaio argumentativo torna-o muito diferente de um argumento conciso.
As três secções seguintes correspondem aos três estágios da escrita de um ensaio argumentativo. Nesta secção, trata-se da exploração do tema; na secção 8, de estabelecer os pontos principais do ensaio argumentativo; e a 9 é sobre a actividade propriamente dita de escrever o ensaio. As regras destas secções são prefixadas por A, B ou C.
Na Introdução distinguiu-se dois usos principais para os argumentos: investigar os méritos de uma posição, e defender uma posição depois de a investigação produzir frutos. O primeiro passo é a investigação. Antes de poder escrever um ensaio argumentativo, o leitor tem de explorar o tema e pensar por si nas várias posições possíveis.
Recentemente, houve quem tivesse proposto a criação de um cartão de crédito educativo para o ensino básico e secundário. Neste sistema, o dinheiro dos impostos que agora vai para o sistema de ensino público seria igualmente dividido entre os pais das crianças, na forma de um cartão de crédito, com o qual poderiam transferir para as escolas da sua escolha o respectivo montante, incluindo escolas privadas. O governo regularia as escolas que entrariam em livre concorrência, para assegurar que todas teriam padrões mínimos de qualidade, mas as pessoas poderiam escolher a escola que desejassem, desde que satisfizesse esses padrões.
Suponha o leitor que lhe é pedido um ensaio argumentativo sobre o tópico “O cartão de crédito educativo”. Não comece por se sentar para anotar um argumento a favor da opinião que lhe ocorrer primeiro. O que lhe é pedido não é a primeira opinião que lhe ocorre. Pede-se-lhe que chegue a uma posição bem informada, que possa ser defendida com argumentos sólidos. Isso demora algum tempo.
Primeiro, descubra quais são os argumentos que cada lado considera mais fortes para a sua posição. Leia artigos ou fale com pessoas de diferentes pontos de vista.
O argumento mais forte a favor do cartão de crédito educativo é provavelmente a liberdade de escolha. O cartão de crédito educativo, afirmam os seus defensores, conduziria à existência de mais escolas alternativas, e não penalizaria os pais por escolherem uma delas em vez de outra (como acontece no sistema actual, uma vez que toda a gente tem de pagar impostos para financiar as escolas públicas, mesmo que os filhos não as frequentem). O argumento principal contra o cartão de crédito educativo é, ao que parece, o alegado facto de as escolas públicas serem o espelho do mundo real: temos de aprender a conviver e a apreciar pessoas que não são como nós, e com as quais poderíamos não escolher ir à escola, se tivéssemos escolha. As escolas públicas, afirmam os seus defensores, produzem cidadãos democráticos.
Ao examinar o tema, irá encontrar argumentos a favor e contra estas afirmações. Irá também começar a formular os seus próprios argumentos. Avalie esses argumentos usando as Regras 1–6. Experimente diferentes formas argumentativas, construa argumentos tão bons quanto puder para cada lado, e critique depois estes argumentos usando as regras.
Considere argumentos por analogia. Será que já tentámos qualquer coisa como o cartão de crédito educativo? Talvez: as universidades concorrentes, apesar de não serem pagas pelo sistema do cartão de crédito educativo, parecem oferecer um conjunto de bons cursos, o que sugere que um sistema de escolas básicas e secundárias concorrentes poderia conduzir a resultados similares. Mas não se esqueça de verificar se este é um exemplo similar num aspecto relevante. Presentemente, por exemplo, muitas universidades são financiadas com dinheiro dos impostos. Será que um sistema sem instituições públicas financiadas iria oferecer bons cursos a tantas pessoas como o sistema actual? Iria tal sistema promover o contacto entre pessoas diversificadas, como actualmente?
Talvez existam outras semelhanças relevantes entre as escolas com um sistema de cartão de crédito e as actuais escolas privadas. Nesse caso, são também necessários alguns argumentos com exemplos e/ou de autoridade. Que qualidade oferecem as escolas privadas actuais, comparadas com o sistema público? Formam pessoas que são tão tolerantes quanto as outras? (Qual é o historial das escolas privadas na luta contra a segregação, por exemplo?)
Os argumentos dedutivos podem também ser úteis. Eis um silogismo hipotético:
- Se adoptarmos o cartão de crédito educativo, as escolas irão competir para ter estudantes.
- Se competirem para ter estudantes, irão usar publicidade e diversas promoções para encorajar os pais a experimentar sem compromisso.
- Se os pais forem encorajados a experimentar sem compromisso, irão mudar as crianças de escola para escola.
- Se mudarem os filhos de escola para escola, as crianças não irão poder constituir laços de amizade duradoura nem irão sentir-se seguras no seu meio.
- Logo, se adoptarmos o cartão de crédito educativo, muitas crianças não irão poder constituir laços de amizade duradoura nem irão sentir-se seguras no seu meio.
Como vimos na Regra 26, os silogismos hipotéticos podem muitas vezes ser usados desta forma para explicar as conexões entre causas e efeitos. Podem também ser usados para testar se existem conexões, e quais, nos casos em que o leitor não tem a certeza se existe alguma conexão.
Quando podemos duvidar da verdade das premissas de um argumento, é necessário avaliar também os argumentos a favor ou contra essas mesmas premissas.
Suponha que está avaliando o silogismo hipotético que acabámos de esboçar. O leitor sabe que é um argumento válido; a conclusão resulta realmente das premissas. Mas precisa ainda de estar convencido de que as premissas são verdadeiras. Logo, para continuar a explorar o tema, torna-se necessário outro passo: o leitor tem de tentar encontrar argumentos a favor das premissas de que é razoável duvidar.
Por exemplo, um argumento a favor da segunda premissa (“Se as escolas competirem para ter estudantes, irão usar publicidade e promoções para encorajar os pais a experimentar sem compromisso”) pode usar uma analogia:
Quando os estabelecimentos competem entre si para ter clientes, tentam inventar ofertas e serviços especiais para que pareçam mais atraentes do que os concorrentes, e fazem muita publicidade para conquistar novos clientes e para reaver os antigos. Mas os outros estabelecimentos respondem com as suas próprias ofertas especiais e a sua publicidade. Os consumidores são assim arrastados sem parar de estabelecimento em estabelecimento: acreditam que conseguem o melhor negócio comprando em diversos sítios. O mesmo iria acontecer com as escolas concorrentes. Cada escola iria publicitar e inventar ofertas especiais, e as outras escolas iriam responder. Os pais iriam mudar os filhos de escola para escola, da mesma maneira que agora os consumidores de supermercados e armazéns mudam constantemente.
Nem todas as premissas precisam de ser defendidas. A primeira premissa do silogismo hipotético (“Se adoptarmos o cartão de crédito educativo, as escolas irão competir para ter estudantes”) é suficientemente óbvia para poder ser afirmada sem argumentos: a ideia do cartão de crédito educativo é exactamente essa. A segunda premissa, no entanto, precisa de um argumento, tal como a quarta (“Se os pais mudarem os filhos de escola para escola, as crianças não irão poder constituir laços de amizade duradoura, nem irão sentir-se seguras no seu meio”). Por sua vez, poderá também ter de defender algumas das premissas desses outros argumentos. No argumento sugerido a favor da segunda premissa, poderá oferecer exemplos para mostrar que os estabelecimentos fazem de facto ofertas especiais e muita publicidade em função da forte concorrência.
A regra é: qualquer afirmação sujeita a dúvida razoável precisa pelo menos de alguma defesa. O espaço limita, naturalmente, o que pode dizer. Dado um espaço ou um tempo limitados, argumente sobretudo a favor das suas afirmações mais importantes e/ou mais controversas. Mesmo nesses casos, no entanto, refira pelo menos alguns dados ou alguma autoridade para apoiar quaisquer afirmações discutíveis.
As Regras A1 e A2 esboçam um processo. Mas o leitor pode ter de ensaiar várias conclusões diferentes — incluindo até conclusões opostas — antes de encontrar um ponto de vista que possa ser defendido com argumentos fortes. Mesmo depois de ter estabelecido a conclusão que deseja defender, pode ter de experimentar várias formas de argumentos antes de encontrar uma que funcione bem. É muito provável que os seus argumentos iniciais tenham de ser melhorados. Muitas das regras das secções 1–6 ilustram como os argumentos concisos podem ser melhorados e expandidos: juntando mais exemplos a um argumento com exemplos (Regra 8), citando e explicando as qualificações de uma autoridade (Regras 13 e 14), etc. Por vezes, não conseguirá encontrar exemplos suficientes, e por isso pode ter de mudar a sua abordagem (ou mudar de opinião!). Outras vezes, pode acontecer que só ao procurar uma autoridade que apoie uma afirmação que desejamos fazer descobrimos que a generalidade das autoridades têm a opinião oposta (teremos assim provavelmente de mudar de opinião), ou que as pessoas mais informadas discordam ainda fortemente entre si (nesse caso, não se pode usar um argumento de autoridade: lembre-se da Regra 16).
Estas coisas levam o seu tempo. (Não tenha pressa!) Esta é a fase em que a revisão é fácil e as experiências são baratas. Para alguns autores, é a parte mais criativa e que dá mais satisfação. Use-a bem.
Suponha que chegou a uma conclusão que pensa poder defender adequadamente. Agora precisa de organizar o seu ensaio, para abranger o que for necessário, de modo a conseguir apresentar o seu argumento da maneira mais eficiente. Arranje uma folha grande de papel de rascunho e um lápis: está prestes a começar o seu esboço.
Comece por formular a questão à qual pretende responder. Depois explique-a. Por que é isso importante? O que depende da resposta? Se propõe acções ou políticas, como o cartão de crédito educativo, comece por mostrar que existe um problema. Por que haveriam as outras pessoas de partilhar as suas preocupações ou de estar interessadas nas suas ideias de mudança? O que o fez a si ficar interessado?
Tenha em consideração a sua audiência. Se está escrevendo para um jornal ou para se apresentar em público, a sua audiência pode não ter consciência do assunto, ou não ter consciência do alcance do problema; a sua função é fazê-la passar a ter consciência disso. Voltar a formular o problema pode ser útil mesmo quando não for novidade. Ajuda a situar a sua proposta — que problema está a tentar resolver? — e pode ajudar quem tem consciência do problema mas não lhe deu importância. (No entanto, se está escrevendo um ensaio académico, não tente expor a história do tema que vai abordar. Pergunte ao professor qual é a informação de fundo que se exige.)
Para justificar o seu interesse por uma questão ou tema em particular, pode precisar de invocar valores e padrões comuns. Por vezes, estes padrões são simples e incontroversos. Se tem uma proposta acerca da segurança rodoviária, descobrirá provavelmente que os seus objectivos são óbvios e incontroversos. Ninguém gosta de acidentes rodoviários. Outros argumentos podem invocar padrões comuns de um grupo específico, como códigos de éticas profissionais, ou padrões institucionais, como o padrão de conduta dos estudantes instituído numa escola. Esses padrões podem invocar a Constituição e ideias políticas comuns, como a liberdade e a justiça; ou podem invocar valores éticos comuns, como a santidade da vida e a importância da autonomia e desenvolvimento individual; ou podem invocar valores sociais muito comuns, como a beleza e a curiosidade intelectual.
Se está fazendo uma proposta, seja específico. “É preciso fazer alguma coisa” não é realmente uma proposta. Mas não é preciso que a proposta seja muito complexa. “Toda a gente devia tomar o pequeno-almoço” é uma proposta específica, mas é também muito simples. Por outro lado, se quer defender que se devia instituir um cartão de crédito educativo, é necessário alguma elaboração para explicar a ideia básica, como funcionariam os pagamentos, etc. Se está fazendo uma afirmação filosófica, ou defendendo a sua interpretação de um texto ou de um acontecimento, declare primeiro simplesmente a sua ideia ou interpretação (“Deus existe”; “A guerra civil americana foi provocada sobretudo por conflitos económicos”, etc.); elabore a sua ideia mais tarde, quando for necessário.
O seu objectivo pode ser unicamente avaliar alguns dos argumentos a favor ou contra uma afirmação ou uma proposta; pode não querer fazer uma proposta, nem sequer chegar a uma decisão específica. Por exemplo, pode desejar apenas avaliar uma determinada linha de argumentação de uma certa controvérsia. Nesse caso, torne imediatamente claro que é isto que irá fazer. Por vezes, a sua conclusão pode ser apenas que os argumentos a favor ou contra uma posição ou proposta são inconclusivos. Óptimo! Mas torne imediatamente clara essa conclusão. Comece por dizer: “Neste ensaio, irei defender que os argumentos a favor de X são inconclusivos”. Se não o fizer, é o seu ensaio que irá parecer inconclusivo!
Depois de estar clara para si a importância do tema que está abordando, e depois de ter decidido o que pretende exactamente fazer no seu ensaio, está pronto para desenvolver o seu argumento principal.
Planear é importante. O seu ensaio tem limites: não se proponha fazer mais do que aquilo que pode fazer. Um argumento bem desenvolvido é melhor do que três argumentos apenas esboçados. Não use todos os argumentos que consegue imaginar para defender a sua posição: fazer isto é como preferir dez baldes furados a um único bom. (Além disso, os diversos argumentos nem sempre são compatíveis!) Concentre-se no seu melhor argumento, ou nos seus dois melhores argumentos.
Se está fazendo uma proposta, precisa de mostrar que irá resolver o problema inicial. Por vezes, enunciar a proposta é suficiente. Se o problema consiste no facto de a sua saúde estar a deteriorar-se, porque não come pequenos-almoços completos, então comer pequenos-almoços completos é a solução óbvia. Contudo, se a sua proposta é que devemos adoptar o cartão de crédito educativo, então é necessário argumentar cuidadosamente. Precisa de mostrar que o cartão de crédito educativo iria realmente encorajar a liberdade de escolha, que passaria a existir uma ampla diversidade de escolas à escolha, e que estas escolas seriam bastante melhores do que as actuais. Terá de argumentar em termos de causas e efeitos, terá de usar exemplos, etc., aos quais se aplicam as regras discutidas nas secções anteriores. Use os argumentos que começou a desenvolver na secção 7.
Se está defendendo uma posição filosófica, este é o momento em que deve desenvolver as suas razões principais. Se está argumentando para sustentar uma interpretação de um texto ou de um acontecimento, este é o momento em que deve explicar os detalhes desse texto ou desse acontecimento, e em que deve explicar em detalhe a sua interpretação. Se o seu ensaio consiste na análise crítica de alguns argumentos acerca de uma controvérsia, explique esses argumentos e as razões da sua análise. Uma vez mais, lembre-se das regras das secções anteriores. Se o que defende se baseia num argumento com exemplos, certifique-se de que tem exemplos suficientes, exemplos representativos, etc. Se usar uma forma dedutiva, certifique-se de que é válida e de que defendeu todas as premissas contestáveis.
Antecipe objecções. A sua proposta é realmente exequível? Não demorará demasiado tempo? Já se experimentou essa ideia? Há pessoas para executá-la? Se a sua proposta for difícil de executar, admita-o; e argumente que, apesar disso, vale a pena pô-la em prática.
A maior parte das propostas têm muitos efeitos, e não apenas um. Tem de considerar quais serão as desvantagens que a sua proposta poderá ter. Antecipe as desvantagens que podem ser levantadas como objecções; formule-as e responda-lhes. Defenda que as vantagens ultrapassam as desvantagens (e certifique-se de que realmente as ultrapassam, depois de considerar umas e outras!). É verdadeiro que o cartão de crédito educativo pode tornar as escolas menos estáveis, mas isso poderá parecer um preço que vale a pena pagar para fazer as escolas responder melhor aos desejos de pais e comunidades. Pode também defender que algumas das desvantagens possíveis poderão acabar por não se concretizar. Talvez as escolas não se tornem instáveis: afinal (use um argumento por analogia), o comércio não se torna instável por ter de responder às exigências flutuantes dos consumidores.
Antecipe objecções à sua posição ou interpretação. Se está escrevendo um ensaio académico, procure argumentos desfavoráveis à sua posição ou interpretação na bibliografia da disciplina. Depois de ter explorado cuidadosamente o tema, encontrará também objecções falando com pessoas que têm diferentes perspectivas, assim como nas suas leituras. Examine todas estas objecções, escolha as mais fortes e comuns, e tente responder-lhes.
Esta é uma regra óbvia, mas é constantemente esquecida. Se está defendendo uma proposta, não é suficiente mostrar que vai resolver o problema. Tem também que mostrar que, dadas as circunstâncias, é melhor do que outras maneiras plausíveis de resolver o mesmo problema.
Os computadores de apoio da Associação de Estudantes estão quase sempre ocupados, especialmente no final dos semestres. Logo, devia haver mais computadores de apoio na AE.
Este argumento é fraco em vários pontos: “estar quase sempre ocupado” é vago, tal como a proposta. Mas remediar a sua fraqueza não justifica ainda assim a conclusão. Pode haver outras maneiras mais razoáveis de resolver o congestionamento. Talvez se deva racionar o tempo de que cada pessoa dispõe para usar os computadores, de forma a que as pessoas os usem de forma mais responsável, em vez de deixar tudo para o fim do semestre. Ou talvez a AE deva proibir certos usos dos computadores no fim dos semestres. Ou talvez não se deva fazer seja o que for, deixando que os próprios utentes se ajustem entre si. Se mesmo assim quer propor que a AE devia ter mais computadores, tem de mostrar que a sua proposta é melhor do que qualquer uma destas alternativas.
Do mesmo modo, se está interpretando um texto ou acontecimento, tem de ter em consideração interpretações alternativas. Por mais que explique completamente e de forma perspicaz por que razão determinada coisa aconteceu, outra explicação pode parecer mais plausível. Tem de mostrar que as outras explicações são menos plausíveis: lembre-se da Regra 19. Até as posições filosóficas têm alternativas. O argumento baseado na criação mostra que Deus existe, ou apenas que existe um criador, que não tem necessariamente de ser tudo o que temos em mente quando falamos de Deus? Argumentar dá muito trabalho!
Já explorou o tema e já fez um esboço. Está finalmente pronto para escrever o ensaio propriamente dito. Lembre-se uma vez mais que escrever a versão formal é apenas a última fase. Se acabou de abrir este artigo e saltou para esta secção, repare que há uma razão para esta ser a última secção e não a primeira. Como se costuma dizer, não é a partir daqui que se chega lá.
Lembre-se também que as regras das secções 1–6 se aplicam tanto à escrita de um ensaio como à escrita de argumentos concisos. Reveja as regras da secção 1 em particular. Use uma linguagem precisa, específica e concreta; evite a linguagem tendenciosa; etc. O que se segue são algumas regras adicionais que dizem especificamente respeito à redacção de ensaios argumentativos.
Na secção anterior, desenvolveu um esboço em cinco partes do seu ensaio argumentativo. Siga o seu esboço quando começar a escrever. Não passe de um ponto para outro que deve vir mais tarde. Se ao escrever o ensaio verificar que as suas diversas partes não ficam harmoniosamente juntas, pare e refaça o esboço; depois, siga o novo esboço.
Alguns estudantes usam uma página inteira de um ensaio argumentativo de quatro páginas unicamente para introduzir o ensaio, muitas vezes de maneira bastante geral e irrelevante.
Os filósofos têm debatido durante séculos o problema da existência de Deus...
Isto é “palha”. Não é novidade para o seu professor de filosofia e qualquer pessoa, mesmo que nada soubesse sobre o problema, o poderia escrever. Seja directo.
Vou defender neste ensaio que Deus existe.
Ou:
Defendo neste ensaio que a introdução do cartão de crédito educativo para o ensino primário e secundário conduziria a uma sociedade mais intolerante e ao afastamento entre as pessoas de diferentes classes.
Regra geral, trate de um ponto por parágrafo. Incluir vários pontos diferentes no mesmo parágrafo confunde o leitor e leva-o a si a passar em claro pontos importantes.
Use o seu argumento principal para planear os parágrafos. Suponha que pretende argumentar contra o cartão de crédito educativo com base na ideia de que com esse sistema as crianças não iriam formar amizades duradouras, nem iriam sentir-se seguras no seu meio. Primeiro, torne claras as suas intenções (Regra B2). Depois, pode usar o silogismo hipotético que já esboçámos:
- Se adoptarmos o cartão de crédito educativo, as escolas irão competir para ter estudantes.
- Se as escolas competirem para ter estudantes, irão usar publicidade e diversas promoções para encorajar os pais a experimentar sem compromisso.
- Se os pais forem encorajados a experimentar sem compromisso, irão mudar as crianças de escola para escola.
- Se os pais mudarem os filhos de escola para escola, as crianças não irão poder constituir laços de amizade duradoura nem irão sentir-se seguras no seu meio.
- Logo, se adoptarmos o cartão de crédito educativo, muitas crianças não irão poder constituir laços de amizade duradoura nem irão sentir-se seguras no seu meio.
Primeiro, apresente este argumento num parágrafo, começando com “O meu argumento principal será que...”; pode desejar não incluir os passos todos, mas dê ao leitor uma ideia clara de onde quer chegar. Então, para explicar e defender este argumento, dedique um parágrafo a cada premissa. O primeiro parágrafo pode ser breve, uma vez que a primeira premissa não precisa de muita defesa; explique apenas que essa é a ideia do cartão de crédito educativo. O segundo parágrafo pode ser o argumento conciso a favor da segunda premissa que foi sugerido na Regra A2.
Siga este padrão para todos os argumentos, não apenas para as deduções. Recorde-se este argumento da secção 8:
- As mulheres só conquistaram o direito ao voto depois de lutarem activamente.
- As mulheres só conquistaram o direito de frequentar o ensino superior depois de lutarem activamente.
- As mulheres só estão a conquistar o direito à igualdade de oportunidades no emprego pela luta activa.
- Logo, os direitos das mulheres só são conquistados pela luta activa.
Uma vez mais, um bom ensaio irá primeiro explicar a importância do tema, depois tornará clara a conclusão, após o que dedicará um parágrafo (por vezes vários) a cada premissa. Um parágrafo deve defender a primeira premissa, explicando como as mulheres ganharam o direito ao voto, vários outros parágrafos devem defender a segunda premissa, mostrando com exemplos a luta em que as mulheres tiveram de se envolver para ganhar o direito a frequentar o ensino superior, etc.
Repare, nestes dois argumentos, na importância de usar termos constantes (Regra 6). Mesmo os argumentos concisos considerados na Regra 6 eram difíceis de compreender sem termos constantes, mas quando premissas como estas se tornam as frases principais de diversos parágrafos, é precisamente o facto de se exprimirem de modo paralelo que dá coesão ao argumento como um todo.
Talvez o leitor saiba exactamente o que quer dizer; para si, tudo é claro. A maior parte das vezes, o que o leitor escreve está longe de ser claro para qualquer outra pessoa. Pontos que lhe pareciam ter alguma relação, podem parecer não ter qualquer relação a alguém que leia o seu ensaio. Logo, é essencial explicar as relações entre as suas ideias, mesmo que lhe pareçam perfeitamente claras. Como se relacionam as premissas entre si para sustentar a conclusão?
Poder escolher entre muitas escolas é melhor do que ter só uma. Este é um valor americano tradicional. Por isso, devemos adoptar o cartão de crédito educativo.
Qual é a conexão entre ter muitas escolas para escolher e um valor americano tradicional? À primeira vista, de facto, a afirmação do autor parece falsa: tradicionalmente, a América favoreceu a escola pública única. Explicado mais cuidadosamente, todavia, há aqui uma ideia importante.
Poder escolher entre muitas escolas é melhor do que ter só uma. Os americanos sempre deram valor à possibilidade de escolha: queremos poder escolher entre diferentes tipos de carros ou comidas, entre diferentes candidatos ao governo, entre diferentes igrejas. O cartão de crédito educativo limita-se a alargar este princípio às escolas. Logo, devemos adoptar o cartão de crédito educativo.
A clareza é tão importante para si próprio como para os seus leitores. Pontos que lhe pareciam relacionados, podem não estar realmente relacionados; ao tentar tornar claras as relações, irá descobrir que o que lhe parecia tão claro não é realmente claro. Tenho visto muitas vezes estudantes entregar um ensaio que pensam ser preciso e claro, para vir a descobrir, depois de corrigido, que mal conseguem compreender o que eles próprios estavam a pensar quando o escreveram! Uma boa maneira de testar a clareza é pôr a sua primeira versão de lado durante um dia ou dois, e depois lê-lo outra vez: o que parecia claro na segunda-feira à noite pode não fazer muito sentido na quinta-feira de manhã. Outro bom teste é dar o seu ensaio a um amigo ou a uma amiga para ler. Encoraje-os a serem críticos!
Pode também ter de explicar o uso que faz de certos termos centrais. No seu ensaio, pode ter de dar um sentido mais preciso do que o usual a termos comuns. Não faz mal, desde que explique a sua nova definição, e que (claro) se mantenha fiel a ela. (Leia o Apêndice.)
É natural que deseje desenvolver os seus próprios argumentos cuidadosa e completamente, mas tem também de desenvolver cuidadosa e detalhadamente argumentos possíveis do lado contrário, se bem que não de uma maneira tão desenvolvida como os seus próprios argumentos. Suponha, por exemplo, que defende o cartão de crédito educativo. Quando der atenção às objecções (Regra B4) e às alternativas (Regra B5), tenha em consideração o modo como as pessoas poderiam argumentar contra o seu sistema.
Poder-se-ia objectar que o sistema é injusto para os pobres ou para os deficientes. Mas penso que...
Por que razão se pode objectar que o cartão de crédito educativo é injusto? A que argumento (em contraste com a simples opinião), quer responder?
Poder-se-ia objectar que o cartão de crédito educativo é injusto para os pobres e para os deficientes. Os estudantes deficientes requerem geralmente mais apoio escolar do que as outras crianças, por exemplo, mas com o cartão de crédito educativo os pais iriam receber apenas um crédito igual ao de todas as outras pessoas. Os pais não poderiam cobrir a diferença, e a criança seria mal acompanhada.
A objecção acerca das famílias pobres, tal como a compreendo, é esta: as famílias pobres só poderiam mandar os filhos para escolas baratas, que nada cobrassem além do crédito de base, enquanto os ricos poderiam pagar mais e melhores escolas. Logo, poder-se-ia objectar que o cartão de crédito educativo representa liberdade de escolha apenas para os ricos.
A minha resposta a estas objecções é como se segue...
As objecções são agora claras, e já pode tentar responder-lhes adequadamente. Pode, por exemplo, propor um crédito especial para estudantes deficientes. Podia até nem ter pensado nesta possibilidade se não tivesse exposto os argumentos da objecção detalhadamente; e os seus leitores com certeza que não teriam compreendido a importância de um crédito especial, mesmo que o tivesse mencionado.
Termine o ensaio sem preconceitos.
Concluindo, todas as razões me parecem favorecer o cartão de crédito educativo, e nenhuma das objecções é sustentável. Obviamente, devemos adoptar o cartão de crédito educativo tão depressa quanto possível.
Argumentei neste ensaio que existe pelo menos uma boa razão para adoptar o cartão de crédito educativo. Apesar de existirem algumas objecções sérias, parece possível modificar o sistema do cartão de crédito educativo para evitá-las. Vale a pena tentar.
Talvez a segunda versão exagere na direcção oposta, mas percebe-se o contraste. Raras vezes irá conseguir responder adequadamente a todas as objecções e, mesmo que o faça, novos problemas poderão surgir amanhã. “Vale a pena tentar” é a melhor atitude.
As falácias são enganos, equívocos em argumentos. Muitos são tão tentadores, e portanto tão comuns, que até têm nome. Isto pode fazê-los parecer um tópico novo e separado. Na verdade, todavia, chamar a algo uma falácia é em geral apenas uma maneira de dizer que se violou uma das regras dos bons argumentos. A falácia da causa falsa, por exemplo, é unicamente uma conclusão discutível acerca de causas e efeitos, cuja explicação se pode encontrar na secção 5.
Portanto, para compreender as falácias, precisa de compreender que regras foram violadas. Nesta secção, começo por explicar duas falácias muito gerais, remetendo-as para uma série de regras. Ofereço depois uma lista e uma explicação de várias falácias específicas, incluindo os nomes latinos, quando são frequentemente usados.
Se o primeiro lituano que encontro for irascível, crio a expectativa de que todos os lituanos serão irascíveis. Quando um navio desaparece no Triângulo das Bermudas, os jornais sensacionalistas concluem que o Triângulo das Bermudas está assombrado. Esta é a falácia da generalização a partir de informação incompleta.
É fácil ver este erro quando os outros o fazem, mas é mais difícil vê-lo quando nós próprios o fazemos. Repare quantas das regras das secções 2–6 visam evitar este erro. A Regra 8 exige mais do que um exemplo: não pode tirar conclusões sobre todo o corpo estudantil da sua faculdade baseado em si próprio e no seu colega. A Regra 9 exige exemplos representativos: não pode tirar conclusões acerca do corpo estudantil de uma faculdade com base nos estudantes que são seus amigos, mesmo que tenha muitos. A Regra 10 exige informação de fundo: se tira uma conclusão acerca do corpo estudantil da sua faculdade baseado numa amostra de trinta pessoas, tem também de ter em consideração a dimensão do corpo estudantil (trinta? Trinta mil?). Os argumentos de autoridade exigem que a autoridade não generalize excessivamente: a autoridade tem de ter a informação e as qualificações que justifiquem o juízo que cita no seu ensaio. A Regra 19 sublinha que uma causa não é necessariamente a causa de um acontecimento. Não generalize excessivamente a partir do facto de ter encontrado uma causa: outras causas podem ser mais prováveis.
As Regras 20–23 insistiram que só porque os acontecimentos A e B estão correlacionados, não se conclui que A causou B. B pode causar A; qualquer outra coisa pode causar ambos, A e B; A pode causar B e B pode causar A; ou A e B podem nem sequer estar relacionados. Estas explicações alternativas podem nem sequer vir a ser consideradas, se aceitar a primeira explicação que lhe ocorre. Não tenha pressa; em geral, há muitas mais explicações alternativas do que pensa.
Considere-se, por exemplo, mais um argumento acerca de causas:
Uma boa maneira de evitar o divórcio é fazer amor frequentemente, porque os números mostram que os casais que o fazem raramente se divorciam.
Fazer amor frequentemente está correlacionado com o casamento feliz, e supõe-se por isso que é a causa (ou uma causa) do casamento feliz. Mas o casamento feliz pode também conduzir a relações sexuais frequentes. Ou qualquer outra coisa (amor e atracção!) pode provocar relações sexuais frequentes e o casamento feliz. Ou qualquer um deles pode causar o outro. Ou pode ser que as relações sexuais e o casamento feliz nem sequer estejam relacionados!
Acontece também que muitas vezes não consideramos alternativas quando estamos tentando tomar decisões. Duas ou três opções podem sobressair, e só a elas damos atenção. No seu ensaio famoso “O Existencialismo é um Humanismo”, o filósofo Jean-Paul Sartre conta que um estudante seu, durante a ocupação nazi da França na segunda guerra mundial, tinha de escolher entre fazer uma viagem arriscada à Inglaterra para lutar com a França Livre e permanecer com a sua mãe em Paris, para tomar conta dela. Sartre pinta o quadro como se o jovem tivesse de arriscar tudo numa viagem à Inglaterra e abandonar assim totalmente a mãe, ou então de se entregar completamente a ela e desistir de toda e qualquer esperança de combater os nazis. Mas havia com certeza outras possibilidades. Poderia ficar com a mãe e mesmo assim trabalhar para a França Livre, em Paris; ou podia ficar com a mãe durante um ano, tentando entretanto garantir-lhe boas condições, preparando gradualmente a sua viagem à Inglaterra. E será de acreditar que a mãe era completamente dependente e avidamente egoísta, ou seria ao invés um pouco patriota e possivelmente também auto-suficiente? É muito possível, pois, que houvesse outras opções.
Também em questões éticas há a tendência para não considerar alternativas. Dizemos que ou o feto é um ser humano com todos os direitos que o leitor e eu temos, ou então que é um bocado de tecido sem importância moral. Dizemos que qualquer uso de produtos de origem animal é imoral, ou que todos os usos correntes são aceitáveis. E assim por diante. Uma vez mais, contudo, há com certeza outras possibilidades. Tente aumentar o número de opções a considerar, e não diminuí-las!
Atacar pessoalmente uma suposta autoridade, e não as suas qualificações. Ver Regra 17.
Defender que uma afirmação é verdadeira só porque não se mostrou que é falsa. Um exemplo clássico é a seguinte declaração do senador americano Joseph McCarthy, quando lhe exigiram provas para sustentar a sua acusação de que uma certa pessoa era comunista:
Não tenho muita informação sobre isso, excepto a declaração genérica da CIA de que nada existe nos seus ficheiros que refute os seus possíveis contactos comunistas.
Este é um exemplo extremo de argumentar a partir de informação incompleta: aqui não há simplesmente informação.
Apelar à compaixão como argumento para um tratamento especial.
Sei que reprovei em todos os exames, mas se não passar este ano, terei de ficar em recuperação. Tem de me deixar passar!
Apelar às emoções da multidão. E também o apelo para que uma pessoa se deixe ir com a multidão. Por exemplo: “Mas toda a gente faz o mesmo!” Ad populum é um bom exemplo de um mau argumento de autoridade: não se oferece razões para mostrar que “toda a gente” é uma fonte informada e imparcial.
Uma falácia dedutiva com a forma seguinte:
- Se p, então q.
- q.
- Logo, p.
Por exemplo:
- Se as estradas têm gelo, o correio está atrasado.
- O correio está atrasado.
- Logo, as estradas têm gelo.
As duas premissas podem ser verdadeiras e a conclusão ser ainda assim falsa. Apesar de o correio se atrasar sempre que as estradas têm gelo, pode também atrasar-se por outros motivos. O argumento não considera explicações alternativas. Repare que esta falácia é parecida ao modus ponens; tenha cuidado!
Termo genérico para uma conclusão discutível acerca de causas e efeitos. Tente saber exactamente por que razão se afirma que a conclusão é discutível, com a ajuda das Regras 20–23.
Pressupor que o todo tem de ter as mesmas propriedades das suas partes; por exemplo: “uma vez que os membros da equipa são excelentes atletas, a equipa tem também de ser excelente”. Apesar de excelentes, os atletas podem funcionar mal em equipa. Opõe-se à falácia da divisão.
Apresentar unicamente a parte dos dados que sustentam a sua afirmação, ignorando as partes que a contradizem; por exemplo, extrair apenas a expressão “tem de ir ao cinema ver o Flames and Glory” de uma crítica cinematográfica que na verdade dizia “se tem de ir ao cinema ver o Flames and Glory, leve um livro”. Não se ria: isto acontece.
Definir um termo de forma que parece correcta mas que é de facto subtilmente tendenciosa; por exemplo, Ambrose Bierce, em Dicionário do Diabo, define “fé” como “crença sem dados favoráveis no diz uma pessoa que não tem conhecimento de coisas improváveis”. As definições persuasivas podem também ser favoravelmente tendenciosas: por exemplo, definir “conservador” como “uma pessoa que tem uma opinião realista dos limites humanos”.
Introduzir um assunto irrelevante ou secundário, desviando assim a atenção do assunto principal. Em geral, para desviar a atenção, usa-se um assunto acerca do qual as pessoas têm opiniões fortes, para que não se note que a atenção está a ser desviada. Numa discussão acerca da qualidade relativa de um produto, a questão de saber quais são os produtos de produção nacional é uma forma de desviar a conversa.
Pressupor que as partes do todo têm de ter as propriedades do todo; por exemplo: “uma vez que esta equipa é excelente, os membros da equipa têm de ser excelentes atletas”. Um grupo de atletas pode funcionar muito bem sem que nenhum deles seja individualmente um excelente atleta. Opõe-se à falácia da composição.
Usar uma única palavra em mais do que um sentido: veja-se a Regra 7.
Caricaturar uma opinião oposta, para que seja fácil de refutar: veja-se a Regra 5.
Veja-se a Regra 10.
Reduzir as opções possíveis a apenas duas, muitas vezes claramente opostas e injustas para a pessoa contra a qual o dilema é colocado; por exemplo, “Portugal: é amar ou sair”. Um exemplo mais subtil retirado de um ensaio de um estudante: “Uma vez que o Universo não poderia ter sido criado a partir do nada, teve de ter sido criado por uma força inteligente”. Será que a criação por uma força inteligente é a única alternativa? Argumentar com um falso dilema é por vezes uma forma de não ser honesto; além disso, como é óbvio, não considera alternativas possíveis.
Veja-se a Regra 5.
Uma falácia dedutiva da forma seguinte:
- Se p, então q.
- Não-p.
- Logo, não-q.
Por exemplo:
- Se as estradas têm gelo, o correio está atrasado.
- As estradas não têm gelo.
- Logo, o correio não está atrasado.
As duas premissas podem ser verdadeiras e a conclusão ser, no entanto, falsa. O correio pode estar atrasado por outras razões além do gelo nas estradas. O argumento não considera explicações alternativas. Repare que esta falácia se parece com o modus tollens; tenha cuidado!
Tirar uma conclusão que “não se segue”, isto é, uma conclusão que não é uma inferência razoável a partir dos dados disponíveis. Termo muito geral para um mau argumento. Procure saber especificamente o que (se afirma que) está errado com o argumento.
Mudar o sentido de uma palavra a meio de um argumento, de maneira a que a sua conclusão se possa manter, apesar de o seu sentido ter mudado radicalmente. Usualmente, é uma manobra realizada debaixo da pressão de um contra-exemplo.
A: Todo o estudo é penoso.
B: Mas então e estudar argumentos? Tu adoras isso!
A: Bem, isso não é bem estudar.
“Estudar” é aqui a palavra ambígua. A resposta de A à objecção de B muda de facto o sentido de “estudar” para “estudo penoso”: assim, a primeira frase de A continua verdadeira, mas à custa de se ter tornado banal (“todo o estudo penoso é um estudo penoso”). Veja-se também a discussão de “egoísta”, na Regra 7.
Colocar uma pergunta ou um assunto de tal forma que uma pessoa não pode concordar nem discordar sem se comprometer com uma outra afirmação que o autor da pergunta quer promover. Eis um exemplo simples: “Continuas a ser tão egoísta como eras?” Responder “sim” ou “não” obriga-o a aceitar que era egoísta. Eis um exemplo mais subtil: “Vai ouvir a sua consciência, em vez de ouvir a carteira, e oferecer um donativo?” Qualquer pessoa que diga “não”, independentemente das suas verdadeiras razões para não oferecer um donativo, parece ignóbil; qualquer pessoa que diga “sim”, independentemente das suas verdadeiras razões para oferecer um donativo, parece nobre. Se quer um donativo, limite-se a pedi-lo.
Usar implicitamente a sua conclusão como premissa.
Deus existe porque é a Bíblia que o afirma, e eu sei que isso é verdadeiro porque foi Deus, afinal, quem a escreveu!
Para escrever este argumento na forma premissa-conclusão, teria de ser:
- A Bíblia é verdadeira, porque Deus a escreveu.
- A Bíblia diz que Deus existe.
- Logo, Deus existe.
Para defender a afirmação de que a Bíblia é verdadeira, afirma-se que Deus a escreveu. Mas, como é óbvio, se Deus escreveu a Bíblia, existe. Logo, o argumento pressupõe precisamente o que está tentando provar.
“Petição de princípio” em latim.
Usar uma linguagem tendenciosa para denegrir um argumento ainda antes de este chegar a ser mencionado.
Não acredito que te tenhas juntado a esses poucos casmurros que ainda não ultrapassaram a superstição de que [...]
Mais subtil:
Nenhuma pessoa sensata pensa que [...]
Pressupor uma relação causal demasiado depressa com base na mera sucessão temporal. Uma vez mais, é um termo muito geral para o que a secção 5 tenta tornar preciso. Tente saber especificamente por que razão o argumento pressupõe incorrectamente uma relação causal, com a ajuda dessa secção.
Tomar um facto local por um facto universal. Já ouvi defender seriamente, por exemplo, que comer três refeições por dia é um comportamento humano universal.
A maior parte dos nossos argumentos usam palavras cujo sentido se compreende à partida. Estas palavras não precisam de ser definidas nos próprios argumentos. Por exemplo, na secção 2 argumentou-se que no passado as mulheres casavam muito novas, sem definir “muito novas” (nem “no passado”, aliás). Os exemplos usados no argumento explicam suficientemente bem como estes termos são usados.
Alguns argumentos, contudo, exigem mais atenção ao significado das palavras. Neste caso, torna-se necessário algumas definições explícitas. Acontece por vezes que podemos não saber o significado de uma palavra, ou que o seu significado pode ser especializado. Se a conclusão do seu argumento for que os wejacks são herbívoros, precisa de definir os termos, a menos que se dirija a um ecologista algonquino.15 Se encontrar este argumento em qualquer lado, a primeira coisa de que precisa é um dicionário.
Outras vezes, pode não haver qualquer sentido bem assimilado ou preciso para uma palavra. Por exemplo, os defensores da eutanásia falam da “morte com dignidade”. Contudo, muitas vezes não é claro como decidir se uma forma particular de morrer é dignificante ou não. Este é um verdadeiro problema médico e legal. Mas aqui o dicionário não ajuda seja no que for. “Dignidade” é definida unicamente com abstracções igualmente vagas. Ficamos com a tarefa de tentarmos nós mesmos formular uma definição mais clara.
É necessária ainda outra forma de definição, quando procuramos a característica comum que une um conjunto de coisas às quais uma única palavra se aplica. “Ave”, por exemplo, inclui de colibris a avestruzes e condores. Podemos ter de perguntar: que característica identifica todas e apenas as aves? (Não diga “a capacidade para voar”, porque as avestruzes e os pinguins não voam — e os morcegos e os abelhões voam.) É muitas vezes difícil dizer que característica ou características devemos seleccionar.
Por vezes, precisamos de consultar o dicionário unicamente para compreender a escrita de outras pessoas. Ao escrever os seus próprios argumentos, tente evitar fazer esta exigência. Explique todas as palavras especializadas ou difíceis que ocorrem no seu argumento, mesmo que esteja apenas a usar essas palavras no seu sentido corrente, tal como é dado no dicionário. É muito mais fácil prevenir uma compreensão deturpada do que corrigi-la depois!
Certifique-se que só usa a palavra no sentido em que a definiu. Lembre-se do diálogo oferecido para ilustrar a Regra 7:
A: As pessoas são todas egoístas!
B: Mas então e o João? Olha como ele é dedicado aos filhos!
A: Ele está unicamente a fazer o que realmente quer fazer — e isso é ainda egoísmo!
O Grande Dicionário da Língua Portuguesa define “egoísta” como “aquele que trata só dos seus interesses”. Presumivelmente, isto é o que A quer dizer com a primeira afirmação. Depois de posta em questão por B, contudo, A esconde-se numa segunda definição, muito diferente da anterior: “fazer o que realmente se quer fazer”. Na verdade, A devia ter consultado o dicionário — e depois devia ter-se mantido fiel à definição do dicionário. Em qualquer caso, B devia fazê-lo! (Veja-se também a falácia da palavra ambígua, na secção 10.)
Repare-se que as definições de dicionário podem ajudar-nos a evitar a linguagem tendenciosa (Regra 5). O Grande Dicionário da Língua Portuguesa define “aborto” como “parto antes de se completar a gestação do feto”. Esta é uma definição apropriadamente neutra. Não compete ao dicionário decidir se o aborto é moral ou imoral. Compare-a com esta outra definição, comummente apresentada por um dos lados do debate sobre o aborto:
“Aborto” significa “homicídio de bebés”.
Esta definição é tendenciosa. Na verdade, os fetos não são bebés, e o termo “homicídio” imputa injustamente intenções malévolas a pessoas bem intencionadas (por mais erradas que o opositor possa achar que elas estão). Pode-se argumentar que pôr fim à vida de um feto é comparável a terminar a vida de um bebé, mas mostrar isso num argumento é muito diferente de o pressupor simplesmente, por definição. Tal como qualquer argumento, são as suas razões, e não a sua linguagem, que tem de persuadir. (Veja-se também a falácia da definição persuasiva, na secção 10.)
Não esqueça, todavia, que as definições de dicionário têm os seus limites. Em primeiro lugar, o dicionário está por vezes simplesmente errado. O dicionário Webster define “dor de cabeça” como “uma dor na cabeça”. Esta definição é excessivamente abrangente. Determinadas dores na cabeça não se chamam “dores de cabeça”: nem todas as dores que podemos ter na cabeça são dores de cabeça.
Os dicionários podem também ser demasiado vagos para poderem ser úteis. “Morte com dignidade”, uma vez mais, não é definida no dicionário, e “dignidade” não é definida de forma suficientemente específica para nos ajudar nos casos difíceis. Nestes casos, temos de perguntar o que deveríamos querer dizer com essa expressão. Precisamos de um dos tipos de definições discutidas nas secções seguintes.
Uma última limitação das definições de dicionário, relacionada com as já expostas, é a tendência que têm para se basearem em sinónimos. Por exemplo, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa define “feliz” como “ditoso” ou “afortunado”. As definições à custa de sinónimos são úteis se simplesmente não soubermos qual é o uso corrente da palavra. Esse é o grande valor que têm os dicionários. Mas as definições por meio de sinónimos raramente são úteis em argumentos, onde se exige algo bastante mais preciso. Se estamos discutindo a democraticidade de um determinado sistema político, por exemplo, definir “democracia” em termos de “liberdade”, digamos, não é de grande ajuda. “Liberdade” não é um termo mais claro ou mais específico do que o próprio termo “democracia”.
Há vários tipos de definições que têm por objectivo tornar uma palavra mais precisa; chamam-se por isso definições de precisão. Muitas destas definições começam onde o dicionário acaba: quando as palavras correntes estão definidas de uma forma demasiado vaga para poderem ser úteis para os nossos propósitos, ou quando introduzimos um novo termo e temos de especificar o que significa.
Nas definições de precisão temos de dar especial atenção à Regra 4: use uma linguagem precisa, específica e concreta. Se tivéssemos de oferecer uma definição de precisão de “democracia”, por exemplo, teríamos de ser tão específicos quanto possível, sem, no entanto, tornar a definição excessivamente restritiva:
A democracia é o sistema político no qual as decisões são em última análise tomadas pelo povo no seu conjunto.
Esta definição dá-nos um critério claro pelo qual podemos decidir se um determinado sistema político é ou não democrático. Se quer defender que um dado sistema político é democrático, tem agora de mostrar que, de alguma maneira, as decisões nesse sistema são, em última análise, tomadas pelo povo no seu todo.
Quando introduzimos um termo novo, podemos estipular o seu sentido. Esta é uma forma especial de definição de precisão, chamada definição estipulativa. Uma vez mais, é crucial usar uma linguagem precisa, específica e concreta:
“Ecojardinagem” significa aqui o uso de técnicas de jardinagem com um impacto baixo ou positivo no meio ambiente, como o controle natural das pragas e o uso de estrume para fertilizar as terras.
Esta definição oferece uma ideia clara, que pode ser avaliada, criticada ou defendida.
Repare o leitor que não consegue fazer um termo como “ecojardinagem” significar qualquer coisa que deseje. A palavra “jardinagem” e o prefixo “eco” já têm um determinado significado — apesar de ser talvez vago — que tem de ser respeitado. “Ecojardinagem” não poderia ser definido como “tocar Beethoven num sintetizador”. Só pode especificar qualquer definição que deseje com uma palavra que previamente não tenha qualquer significado (como “heoytuv”).
Outra forma de definição de precisão é a definição operativa, em que um termo é definido por meio da especificação de certos testes ou procedimentos que determinam se a palavra se aplica ou não. Por exemplo, a lei estatal de Wisconsin exige que todas as reuniões dos legisladores onde efectivamente se legisle sejam abertas ao público. Quais são exactamente então as reuniões dos legisladores a que os cidadãos de Wisconsin têm acesso garantido? Neste caso, temos de ter um modo de proceder preciso para decidir, com um mínimo de ambiguidade e polémica, o que é uma reunião para os propósitos desta lei. A lei oferece uma definição operativa bastante elegante:
Uma reunião é qualquer assembleia com legisladores suficientes para impedir a acção de medidas legislativas que sejam o assunto da reunião.
Repare que esta definição é excessivamente restritiva para poder definir o uso corrente da palavra “reunião”. Mas consegue realizar o propósito desta lei: impedir que decisões cruciais possam ser tomadas à revelia dos cidadãos.
As definições essencialistas seleccionam a característica comum que une o conjunto de coisas às quais uma palavra se aplica. O que une as aves, afinal, é o facto de terem penas. Podemos portanto definir “ave” como “animal com penas”.
Este tipo de definição tem de abranger todas e apenas as coisas que estão a ser definidas a partir de um conjunto mais vasto de coisas. As definições são demasiado abrangentes se incluem mais do que as coisas específicas que o termo a ser definido abrange.
O amor é uma emoção excitante positiva.
Esta é uma afirmação verdadeira, mas não é uma boa definição, porque o amor não é apenas uma emoção excitante positiva.
As definições são demasiado restritas se incluem menos do que as coisas específicas que o termo a ser definido abrange.
O amor é o sentimento que une duas pessoas no casamento.
Esta afirmação também é verdadeira, mas não inclui todos os tipos de amor. As pessoas podem amar-se sem estarem casadas, e também há muitos outros tipos de amor: o amor pelos filhos, pelos amigos, até mesmo por uma peça musical, ou por uma velha casa, ou pelo mar.
Uma definição pode ser demasiado abrangente e demasiado restrita ao mesmo tempo — como uma mesa que é simultaneamente muito comprida para uma sala, quando colocada numa posição, e muito curta, quando colocada noutra posição. Não podemos definir “ave” como “animal que voa”, por exemplo, porque é simultaneamente demasiado abrangente (não são só as aves que voam) e demasiado restrita (nem todas as aves voam).
Definir as aves como “animais com penas” exemplifica uma forma de definição tradicional chamada definição pelo género próximo e diferença específica. As definições deste tipo são formuladas seleccionando primeiro uma categoria relevante mas muito abrangente à qual as coisas que estão a ser definidas pertencem: neste caso, “animal”. Os lógicos chamam género próximo a essa categoria. Depois, restringimos cuidadosamente a definição, adicionando o que os lógicos chamam diferença específica: o que distingue as coisas que estão a ser definidas de tudo o resto que pertence ao género próximo. No nosso caso, a diferença específica é ter penas.
Terminamos com uma nota de precaução filosófica. Mesmo uma definição em termos de género próximo e diferença específica que abranja todas e apenas as coisas que desejamos pode, apesar disso, não captar o que é verdadeiramente essencial acerca dessas coisas. Há um exemplo clássico. Diz a lenda que os discípulos de Platão, esforçando-se por alcançar a definição de “ser humano”, chegaram finalmente a esta flor:
Um ser humano é um bípede sem penas.
“Bípede” (ou seja, um animal só com dois pés) é o género próximo proposto; “sem penas” é a diferença específica. Lembre-se que os gregos ainda não tinham encontrado símios, de maneira que os filósofos desejavam apenas distinguir os seres humanos das aves, que eram os únicos bípedes conhecidos além destes. “Sem penas” é o truque que consegue fazê-lo. Ou pelo menos conseguia, até Diógenes depenar uma galinha e a atirar, por cima do muro, para dentro da Academia. Olhai: outro bípede sem penas!
A definição dos académicos pode ser ajustada para excluir galinhas depenadas (como?). O verdadeiro desafio de Diógenes é outro, mais profundo. Não ter penas e andar com dois pés não são, ao que parece, características essenciais dos seres humanos. Suponha que tínhamos de facto penas ou que tínhamos perdido uma perna: não seríamos ainda assim humanos?
Mas o que é essencial é difícil dizer. Aristóteles afirmou que é a nossa razão:
Um ser humano é um animal racional.
Desde então que o assunto é controverso. (Não poderia haver, por exemplo, outros animais racionais?) Na verdade, é melhor encarar as definições essencialistas, pelo menos de termos como “ser humano”, como questões sempre em aberto, sempre, naturalmente, filosóficas. Talvez nunca venhamos a conseguir decidir de uma vez por todas onde está a verdade. Os problemas reais levantam-se quando temos de usar definições deste tipo para decidir, por exemplo, se se pode considerar que um ser particular é ainda humano (de maneira a podermos decidir, por exemplo, se lhe podemos retirar apoio médico). Tal como com o tema do aborto, devemos ter consciência de que estas questões não se resolvem unicamente com definições.
- Se não-c, então l.
- Não-l.
- Logo, c.
Estritamente falando, a conclusão seria então “Não-não-c” — “Não é verdadeiro que não é verdadeiro que o cão conhecia bem o visitante” — mas isto é equivalente a c, simplesmente. ↩