1 de Novembro de 2016   Dicionário Escolar de Filosofia

Dicionário escolar de filosofia

Organização de Aires Almeida

H

Hare, R. M. (1919-2002)

Filósofo inglês que exerceu uma grande influência na ética. No domínio da metaética, Hare rejeitou o realismo moral, mas, influenciado por Kant, defendeu a racionalidade e objectividade do pensamento ético propondo o prescritivismo universal. De acordo com esta perspectiva, os juízos morais não são simples descrições de factos, pois parte do seu significado é irredutivelmente prescritivo ou normativo (ver normativo / descritivo). Por exemplo, quem afirma “Deves dizer a verdade” ou “Não dizer a verdade é errado”, está a dizer algo como “Diz a verdade!”. No entanto, as prescrições morais não são arbitrárias, pois têm de ser universalizáveis — quando prescrevemos moralmente que alguém diga a verdade, estamos a prescrever que todas as pessoas em circunstâncias semelhantes nos aspectos relevantes digam a verdade. Hare sustentou que esta maneira de conceber os juízos morais conduz a uma versão de utilitarismo segundo a qual devemos satisfazer tanto quanto possível os desejos ou preferências dos que poderão ser afectados pela nossa conduta. Entre as suas obras mais importantes contam-se Moral Thinking (1981) e Sorting Out Ethics (1997). Ver imperativo categórico, Singer. (Pedro Galvão)

hedonismo

Doutrina segundo a qual o prazer é o único verdadeiro bem. Há três tipos de hedonismo: o psicológico, que sustenta que as pessoas procuram inevitavelmente o prazer; o ético (ver ética), que considera que a obrigação dos seres humanos é procurar o prazer; e o reflexivo, que afirma que aquilo que dá valor a qualquer ocupação é o prazer. Nalgumas teorias consequencialistas, como o utilitarismo de Jeremy Bentham (1748-1832) e de John Stuart Mill, o prazer constitui o critério para julgar as acções. Na Antiguidade, o hedonismo está sobretudo associado aos Cirenaicos e aos Epicuristas. Ver epicurismo. (Álvaro Nunes)

Hegel, Georg Wilhelm (1770–1831)

Pensador alemão que atribui à filosofia a tarefa de ultrapassar concepções dualistas e parciais da realidade em nome do princípio de que “a verdade é o todo”. Para a filosofia ser “sistema do Absoluto" importa negar a separação entre o Infinito (Espírito absoluto) e o finito (o mundo e o homem). Para tal, o Absoluto assume a condição finita, primeiro na Natureza e depois na História humana. Ultrapassando cada forma espácio-temporalmente limitada da sua odisseia histórica, o Absoluto transforma o finito em momento da sua vida infinita, em auto-limitação momentânea. Nada existe ou é verdadeiro fora do Absoluto. A filosofia é a forma superior de exposição do movimento dialéctico mediante o qual o Espírito divino se diz absoluto ao negar que o finito exista fora de si. Ser absoluto é fazer-se absoluto. Na Fenomenologia do Espírito e em A Razão na História (trad. 1995, Edições 70), entre outras obras, é exposta esta visão do Espírito como auto-realização. (Luís Rodrigues)

Heidegger, Martin (1889-1976)

Filósofo alemão, cuja reflexão, centrando-se na questão do sentido do ser, desenvolve essencialmente um tema: o esquecimento ou olvido do Ser. Acusa a filosofia ocidental de, a partir de Platão, ter esquecido o sentido original do Ser: para os primeiros filósofos gregos o Ser era desocultação, luz e abertura que torna possível que as coisas (os entes) sejam ditas e pensadas. Não sendo um ente, não sendo isto ou aquilo, o Ser manifesta-se em todos os entes ocultando-se. Esquecendo a diferença ontológica (a diferença Ser-ente) e o sentido original do Ser, a metafísica ocidental concebeu este como a causa ou a explicação da totalidade dos entes. Na maioria dos casos, a causa dos entes seria Deus, o ente supremo. Preocupada com a explicação dos entes, a metafísica ocidental desenvolveu uma concepção instrumental do Ser reduzindo-o a entidade que produz ou causa algo quando o que o Ser faz é “deixar ser” o ente. O momento culminante de tal concepção é a transformação dos entes em objectos a manipular, consumir e explorar. A principal consequência do olvido do Ser é a submissão do mundo e da natureza aos imperativos da técnica. Em Sobre a Essência da Verdade (1943; trad. 2001, Porto Editora), O Que é a Metafísica? (1929) e A Questão da Técnica (1949), por exemplo, são expostas estas ideias. (Luís Rodrigues)

hermenêutica

Originalmente, teoria ou método de interpretação da Bíblia e de outros textos religiosos. Friedrich Schleiermacher (1768-1834) formulou uma teoria da interpretação dos textos e do discurso, que Wilhelm Dilthey (1833-1911) aplicou a todos os actos e produtos humanos e Heidegger estendeu ao ser humano (Dasein). Associada à hermenêutica está a ideia de círculo hermenêutico: não podemos compreender completamente um todo (por exemplo, um texto filosófico) a menos que entendamos as suas partes, ou completamente as partes a menos que entendamos o todo. Heidegger e Hans-Georg Gadamer (1900–2002) fizeram disto uma característica de todo o conhecimento e actividades humanos. Ver interpretação. (Álvaro Nunes)

heteronomia

Ver autonomia/heteronomia.

hipotética, proposição

Ver proposição hipotética.

história da filosofia

Ver filosofia, história da.

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Dúvidas?

Hobbes, Thomas (1588-1679)

Filósofo inglês. Na sua obra mais influente, Leviatã (1650; trad. 1995, Imprensa Nacional), Hobbes propôs uma visão materialista do universo e da natureza humana (ver fisicismo), advogou o determinismo e apresentou uma teoria contratualista para justificar o poder político do soberano. O seu contratualismo parte da ideia de estado da natureza. Nessa condição, não há qualquer poder político e os seres humanos, tendo uma força aproximadamente igual, vivem numa permanente guerra de todos contra todos. Para ultrapassar este estado de coisas, sustentou Hobbes, precisamos de concordar ser governados por um monarca com poder absoluto, pois só ele será capaz de garantir uma coexistência pacífica. (Pedro Galvão)

holismo

A ideia de que o todo tem prioridade sobre as partes. Na filosofia da ciência, a perspectiva segundo a qual as diversas hipóteses que constituem uma teoria científica não podem ser testadas uma a uma. Testar uma teoria científica implica confrontá-la com a observação. Para fazer isso é preciso deduzir (ver dedução) da teoria certas previsões observacionais. O holista sustenta que não se pode deduzir tais previsões de hipóteses isoladas — na verdade, deduz-se a previsão de todo um conjunto bastante vasto de hipóteses. Assim, se a previsão fracassar tudo o que podemos inferir é que pelo menos uma dessas hipóteses é falsa — não podemos concluir que uma certa hipótese específica foi refutada. Esta perspectiva, também conhecida por tese de Duhem-Quine, sugere que não é fácil falsificar conclusivamente hipóteses científicas. Em epistemologia o coerentismo é um exemplo de holismo. Ver falsificacionismo, método científico. (Pedro Galvão)

homem de palha, falácia do

Ver falácia do homem de palha.

Hume, David (1711–76)

Filósofo, ensaísta e historiador escocês, pertence à tradição empirista britânica, cujos antecessores foram Locke e Berkeley. É talvez o primeiro filósofo a procurar trazer para a filosofia o tipo de atitude que tantos resultados produziu nas ciências da natureza do seu tempo. Ficou famoso o seu conselho de que devemos deitar à fogueira tudo o que não for ciência empírica ou disciplinas matemáticas. Este tipo de atitude voltaria a ser popular, sobretudo junto dos filósofos do positivismo lógico. Para não correr o risco de ser ele próprio deitado à fogueira, pelo menos metaforicamente, só permitiu que os Diálogos sobre a Religião Natural (1779) fossem publicados depois da sua morte. Nesta obra, Hume apresenta uma análise hoje clássica dos argumentos contra e a favor da existência de Deus. O seu argumento contra os milagres foi exposto também no Ensaio sobre o Entendimento Humano.

A sua primeira obra, o Tratado da Natureza Humana (1739-40), procura ambiciosamente estabelecer os fundamentos de uma teoria empírica da natureza humana. Nesta obra encontram-se algumas das ideias que mudaram a face da filosofia moderna, nomeadamente no que respeita à epistemologia e à ética. Porque os seus contemporâneos não lhe prestaram grande atenção, Hume tentou apresentar aproximadamente as mesmas ideias, de forma mais clara, nas obras Investigação sobre o Entendimento Humano (1748) e Investigação sobre os Princípios da Moral (1751).

No que respeita à epistemologia, Hume introduz de forma clara a distinção entre conhecimento a priori e a posteriori, a que ele chamou, respectivamente, “relações de ideias” e “questões de facto”. O conhecimento a priori tem por objecto unicamente as matemáticas; todo o conhecimento do mundo é baseado na experiência, não sendo possível estabelecer a priori nem mesmo os princípios mais gerais que regulam as verdades empíricas, como o princípio de causalidade. A teoria da causalidade de Hume baseia-se na projecção psicológica: perante sucessões repetidas de acontecimentos do mesmo tipo, os seres humanos são levados a inferir fantasiosamente a existência de uma conexão causal entre esses acontecimentos.

Hume adopta a mesma estratégia projectivista em ética. Traçando uma distinção profunda entre factos e valores, declara que não se podem extrair os últimos dos primeiros, e que a ética é apenas o resultado da projecção de valores humanos sobre os factos do mundo, valores estes ancorados no sentimento e não na razão. O seu argumento baseia-se na ideia de que os factos são objecto de crença e que as crenças não são motivadoras, isto é, não têm o poder de nos levar a agir; só os desejos têm esse poder. Tanto no âmbito da epistemologia como da ética, as ideias de Hume foram das mais influentes de sempre na história da filosofia. (Desidério Murcho)

Hume, David, Investigação sobre os Princípios da Moral (Lisboa: INCM, no prelo).
Hume, David, Obras de Filosofia da Religião (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, no prelo).
Hume, David, Tratado da Natureza Humana (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002).
Hume, David, Investigação sobre o Entendimento Humano (Lisboa: INCM, 2002).
Kenny, Anthony, História Concisa da Filosofia Ocidental, cap. 14 (Lisboa: Temas e Debates, 1999).
Magee, Bryan, Os Grandes Filósofos, cap. 7 (Lisboa, Presença, 1989).

Husserl, Edmund (1859-1938)

Filósofo e matemático alemão fundador da fenomenologia, a corrente filosófica cujo objectivo era transformar a filosofia numa ciência rigorosa, mediante a descrição do modo como as coisas surgem na consciência, independentemente de quaisquer pressupostos teóricos ou metafísicos. A ideia central é a de descrever os fenómenos (ver fenómeno) na sua pureza; descrever o que aparece na consciência, suspendendo as nossas crenças de senso comum sobre a natureza e até sobre a existência de objectos exteriores. Esta atitude opõe-se à “atitude natural”, pois trata-se de “pôr entre parênteses" tudo o que vai além da experiência subjectiva. Há, assim, uma “redução fenomenológica" — uma redução aos fenómenos, também chamada epochê — através da qual seja possível fazer uma descrição rigorosa e objectiva do conteúdo da consciência; o que interessa para a fenomenologia não são as coisas do mundo e muito menos saber se os conteúdos da consciência correspondem a algo real ou irreal no mundo exterior. A fenomenologia é, assim, caracterizada como uma ciência da consciência, que se demarca quer do naturalismo, ao exigir a suspensão de quaisquer crenças acerca do mundo exterior e dispensar os dados empíricos nos quais elas se baseiam, quer do psicologismo, dado o seu alegado carácter rigoroso e obejctivo. Neste aspecto, a fenomenologia de Husserl aproxima-se, por um lado, do subjectivismo cartesiano (ver Descartes) e, por outro lado, do idealismo transcendental de Kant. Outra das ideias centrais da fenomenologia de Husserl deve-se ao filósofo austríaco Franz Brentano — de quem Husserl foi aluno em Viena e que o fez interessar-se decisivamente pela filosofia. Trata-se da ideia de intencionalidade: toda a consciência é consciência de algo, sendo este um dos factos mais importantes acerca dos nossos conteúdos mentais. A filosofia é considerada por Husserl como uma ciência de rigor porque se atém ao essencial — a experiência da consciência — afastando-se da atitude natural e de todo o tipo de preconceitos e de interesses práticos ou teóricos que lhes estão associados. Isto consegue-se não através da indução nem na dedução, mas da redução, que constitui o método desta ciência de rigor. A fenomenologia de Husserl influenciou muitos filósofos, entre os quais se contam Heidegger, Merleau-Ponty, Sartre, Gadamer e Lévinas, sendo, por isso, um dos mais influentes filósofos do séc. XX. As suas obras mais importantes são Investigações Lógicas (1900–01), Ideias Directrizes para uma Pura Fenomenologia e para uma Filosofia Fenomenológica (1913) e Meditações Cartesianas (1931). (Aires Almeida)

hylê

Termo grego que significa “substrato” ou “matéria”. Aristóteles usava o termo para falar do que permanece para lá da mudança: quando se faz uma estátua de um pedaço de barro, por exemplo, muda a forma, mas não a matéria ou substrato. Berkeley chamou Hilas a uma das personagens dos seus Diálogos — o defensor da teoria aristotélica da existência da matéria. Husserl usou o mesmo termo para falar do tipo de experiências perceptivas que podem ser enganadoras, como quando parece que vemos uma pessoa à distância e afinal era um boneco. (Desidério Murcho)

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